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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Greve de ônibus: retrato de um impasse brasileiro


Sociedade quer mais do que lulismo oferece – mas ainda não surgiu projeto alternativo. Direita flerta com caos e retrocesso



Por Antonio Martins

“A esta hora, a cabeça da mulher deve estar fervendo no palácio”, comentou um popular no fim da tarde de ontem, ao entrar, após horas de espera, num dos raros ônibus que circulavam em São Paulo. “Acha que ela pensa em nós?”, respondeu o passageiro ao lado – “está é de olho nas festas da Copa, para os estrangeiros”. A presidente Dilma era, ontem, um dos alvos do desabafo da população, diante da greve inesperada de motoristas e cobradores.

O outro surgiria hoje: segundo pesquisa Datafolha, 73% dos paulistanos acham que a paralisação dos ônibus “produz mais prejuízos que benefícios”. O apoio à onda de protestos iniciada em junho de 2013 voltou a cair. Tendo chegado a 89% há onze meses, está em 52%, à beira de se tornar minoritário. Em meio a novas lutas sociais (hoje, haverá mais uma manifestestação dos sem-teto), São Paulo vive um paradoxo que retrata o impasse político do Brasil. As reivindicações por direitos permanecem vivas e vibrantes. Mas, à falta um projeto sobre como viabilizá-las, correm o risco de alimentar sentimentos conservadores e interesses retrógrados.

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Seria um erro atribuir a força inesperada da greve de São Paulo a uma “conspiração da direita”. Iniciado na manhã de terça-feira, a partir de ações de motoristas, aparentemente coordenadas, em diversos pontos da cidade, o movimento alastrou-se rapidamente. Foi favorecido pela universalização do celular, mas tinha bases reais fortes. Primeiro, a insuficiência do reajuste salarial. Os 10% conquistados estão acima da inflação (7%), mas são incapazes tanto de repor as perdas (salariais e de condições de trabalho) nos governos Serra e Kassab quanto de oferecer tranquilidade, diante da alta dos preços de alimentos. Segundo, a forma bizarra usada pela diretoria do sindicato para “aprovar” o acordo com os patrões: em“assembleia” não convocada, consumada às pressas, sem debate algum, logo após uma passeata por melhores salários.

Além disso, a revolta dos motoristas não é um fato isolado. As greves estão se difundindo, muitas vezes desafiando a acomodação dos sindicatos. É verdade que, antes da era Lula-Dilma, o normal era os trabalhadores sofrerem, a cada ano, novas perdas salariais; o fato de agora serem frequentes os ganhos reais é positivo e relevante. Mas basta?

Um motorista que trabalhava normalmente ontem (mas estava disposto a paralisar, caso não haja revisão do acordo) notava: “A empresa acabou de encher o pátio de ônibus novinhos. Como não tem dinheiro para aumentar o salário mais um pouco?” Felizmente, a pequena redução da pobreza e da desigualdade, registrada na última década, não amorteceu a vontade de lutar das maiorias. Quem superou o patamar da luta pela sobrevivência tem percebido que a riqueza social é muito mais vasta – e precisa ser muito melhor distribuída…

A esquerda no governo não abre perspectivas para este novo desejo – talvez por ter ligações tanto com as maiorias, quanto com o grande poder econômico. Os conservadores percebem a brecha e ensaiam um jogo ousado. Eles, que planejam voltar ao Palácio do Planalto para reduzir direitos, aproveitam-se do descontentamento para atingir quem não parece capaz de ampliá-los. A greve paulistana relaciona-se com isso, também.

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Em São Paulo, como em muitas cidades brasileiras, as ligações entre as diversas correntes que atuam no sindicato dos condutores e o sindicato patronal são notórias. Nas gestões de Luíza Erundina e Marta Suplicy, greves seguidas foram deflagradas quando a prefeitura procurou impor, às empresas de ônibus, obrigações que reduziam sua enorme lucratividade [Ler Os barões do busão andam de Ferrari, emOutras Palavras]. Após as manifestações de junho, o prefeito Fernando Haddad suspendeu a nova licitação do serviço de transporte coletivo paulistano (cujas cartas estavam marcadas) e contratou auditoria para examinar as planilhas de custo das empresas. Além disso, tem manifestado desejo explícito de “deixar de ser refém” das concessionárias de ônibus e de “criar uma empresa pública de transportes”.

Seria tolo não enxergar, na greve, também o desejo dos empresários em encurralar o prefeito; e o da mídia em desgastar a esquerda como um todo. Alguns fatos chamam atenção. Na terça-feira, motoristas abandonaram ônibus em avenidas e jogaram a chave fora. Outros, furaram os pneus de seus veículos. Não foi um ato isolado, causado por revolta súbita – mas algo que se repetiu em diversos pontos da cidade. Alguém ousaria estes atos – que no Brasil resultam em demissão por justa causa – sem saber, antecipadamente, que teria cobertura? Não é estranho que os patrões tenham “exigido”, na quarta-feira, recursos da prefeitura para negociar com os trabalhadores; e que parte dos grevistas tenha ensaiado, no mesmo dia, cobrar do município o aumento dos salários? A população será chamada a pagar pelo reajuste, enquanto os “donos do transporte” pilotam e destroem suas Ferraris, abastecidos de dinheiro público?

Chega a ser ainda mais insólita a postura da PM: sempre pronta a reprimir qualquer greve ou protesto social, deixou até mesmo de garantir o fluxo do trânsito, quando o movimento pareceu interessar aos interesses eleitorais do governador…

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Que estes três dias revelam a respeito do cenário brasileiro? Há Um grito parado no ar. Por um lado, seria tolo e paralisante atribuir a greve e o ascenso de lutas sociais a uma manipulação contra a esquerda no poder. As maiorias deveriam ficar paralisadas, após terem obtido conquistas que não afetaram os donos da riqueza e do poder real? A quem isso serviria?

Por outro lado, parece evidente a tentativa de manipular lutas difusas. Não é um caso apenas brasileiro. No Egito, Ucrânia, Turquia e Tailândia, protestos que fustigam poderes aparentes, mas não enxergam a dominação social mais profunda, foram empregados, nos últimos anos, para restaurar a velha ordem das oligarquias.

No Brasil, constrói-se uma hipótese pesarosa. Se ela avançar, implicará desgastar um governo cheio de contradições, mas aberto à pressão social. Seria instalado, em seu lugar, um outro – cujo ímpeto de retrocesso é evidente. Ao assumir o poder, ele contaria com o cansaço da sociedade diante das lutas, com o desejo de impor a ordem. Seria um cenário devastador.

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