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sábado, 2 de fevereiro de 2019

A culpa é da esquerda

A culpa é um afeto pouco transformativo. Assim como criticar tornou-se o mesmo que desqualificar e agredir, autocrítica tornou-se sinônimo de admissão de culpa.


Agora que o castelo de areia criado pelo ódio e pela desinformação começa a ser varrido pelas ondas de corrupção e lama que vêm caracterizando as primeiras semanas do governo Bolsonaro, talvez tenha chegado a hora da autocrítica da esquerda. Qual parte lhe cabe nesse latifúndio de miséria, ignorância e regressão? Imagino que vários outros (bem mais qualificados em ciência política e no entendimento de processos institucionais, que efetivamente comandam o chão de fábrica da política) tenham muito mais e melhor a dizer do que eu. Mas aqui vai minha contribuição lateral para esse começo de conversa que teve bons e maus motivos para ser adiada.

Uma das razões para este adiamento decorre do fato de que fazer autocrítica é reconhecer que esta teria sido insuficientemente realizada até então. A tentação de deter o monopólio da crítica tem suas raízes na afinidade histórica entre a esquerda e a invenção de outros modelos de mundo, de vida e de Estado, caracterizando, ainda que provisoriamente, a direita como campo da conservação e manutenção de um determinado estado de coisas. Por isso, reconhecer o atraso nesta matéria não é apenas assunto de correção e ajuste de rota, mas discussão de essências, pertinências e prerrogativas no uso do qualificativo: esquerda. Afinal, o estado natural da esquerda é ou deveria ser a crítica.

A autocrítica, como reverso interno e necessário da crítica, tem também suas patologias. Assim como criticar tornou-se o mesmo que desqualificar e agredir, autocrítica tornou-se sinônimo de admissão de culpa. Desde que certa esquerda chegou ao poder, o afeto político ascendente, neste quadrante, tornou-se a culpa. Culpa por não ser suficientemente representativa e por não estar à altura daqueles a quem se representa. Culpa por representar imperfeitamente aqueles até estão excluídos ou minorizados. Culpa de frequentar universidades, de possuir um pouco ou um muito a mais de capital cultural, social ou econômico. Culpa de pertencer à classe média, de ser elite, ainda que operária, negra, feminista ou LGBTI+. Culpa por sentir que não se está fazendo nada de “realmente relevante” (o que seria isso mesmo?). Culpa porque as mesas de congressos não contemplam proporcionalmente indígenas, ou porque não nos dedicamos de forma mais radical e comprometida à redução do preconceito à da desigualdade social. Culpa porque não exercemos controle crítico do Estado, dos partidos ou grupos que nos são próximos, ou de causas ecológicas e de sustentabilidade. Culpa e sentimento de impostura por invadir o lugar de fala alheio.

A culpa tornou-se afeto característico do sofrimento de classe. Percebe-se, por meio de uma enumeração errática como esta, que isso abriu espaço para a emergência do gozo cínico, que instrumentalizará a culpa alheia dizendo que ela é apenas vitimização, “mimimi” ou ritual narcísico de desimplicação. Creio que Francisco Bosco estava tentando nos alertar para isso. A culpa é um afeto individualizante que trava a ação coletiva. Isso se vê também no fato de que em estado de massa ou de anonimato digital perdemos de vista a função inibidora da culpa, nos tornando assim falsamente corajosos e hipercríticos. O sujeito pode sair orgulhoso do debate ou da reunião de condomínio, por destruir aquele colega que pisou em falso naquela expressão inconveniente ou que se excedeu nos argumentos, mas a disputa em torno da culpa é assim: o que hoje você expurga em cima de outro, amanhã lhe será retribuído em dobro. A anestesia provisória, criada pela superioridade moral vai sendo corroída pela culpa, que precisa cada vez de mais atos de exibição purificadores. Nesse ciclo, quem vence é sempre a culpa. Dois dias depois do #EleNão, perdeu-se a chance de uma virada no discurso, quando embarcamos na conversa da culpa.

Uma determinada culpa existencial, de extração católica, acompanhou a formação da esquerda no Brasil desde a Juventude Universitária Católica (JUC) até as Comunidades Eclesiais de Base. Uma culpa raiz que não servia nem à evasão nem à punição moral. Uma culpa que nos fazia pensar com Antônio Cândido e Alfredo Bosi, com Paulo Freire e Darcy Ribeiro, com João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Gradativamente, o universo dessa “terra em transe” baseada na autocontradição e na angústia que vinha da tomada de consciência sobre o que significa Brasil, derivou para outra economia moral. Mais simples e pragmática, essa nova consciência sedimentou-se na ideia de que culpa é apenas transgressão da norma, e a norma é bem posta, com exemplos claros e distintos. Aqui se diria que estou falando do neopentecostalismo, mas não é este o caso, pois trata-se de um movimento mais amplo e capilar. É a culpa dos professores impotentes porque lhes impingem mais e mais ideais, com menos e menos condições de cumpri-los. É a culpa dos trabalhadores massacrados por sua própria empregabilidade, dos apaixonados pelo compliance de suas corporações, das relações dietéticas e disciplinares com seus corpos, das relações veementes com seus desejos e palavras, dos axiomas de saúde que nos levam a uma série de pequenas resignações e ao recolhimento em uma vida funcional.

Bem antes de inventarem a Lava Jato – aliás, uma benfeitoria de Dilma – já estávamos culpados. Este é o ponto que quero trazer para a discussão. É certo que o chamado campo progressista, a esquerda ampla, partidária ou comunitária, organizada ou “meio intelectual meio de esquerda”, como formulou Antonio Prata, esquerda “caviar” ou popular, organizada em coletivos ou escrevendo textões nas redes sociais, enfim, todos nós (me incluo nisso) que nos engajamos nesse projeto de mudar a face miserável e faminta do Brasil nos vimos, durante todos estes anos, diante de coisas que não considerávamos corretas (deixo a lista para a próxima coluna). Mas a atitude era de aposta. Olhávamos para o lado e víamos a barbárie de sempre no outro lado e dizíamos a nós mesmos: melhor assim, porque outra coisa não dá.

O preço por essa união à base do mal menor foi alto. Quando renegamos nossos desejos, quando deixamos de nos implicar com o que queremos, quando barganhamos nossa responsabilidade com relação às nossas aspirações, o resultado é um só: culpa. Para a psicanálise, este é um ponto inegociável: cedeu de seu desejo, pode esperar que a fatura da culpa virá, cedo ou tarde, clara ou obscura. Uma esquerda culpada só pode operar por divisões cada vez mais fragmentadas de si mesmo, buscando saber quem é mais culpado do que eu e eliminando impurezas até chegar à solidão solipsista final. Quando entrei nesta conversa, esquerda era transgressão, confronto e desafio de normas, como bem colocou Kleber Mendonça, na pele de Sonia Braga, em Aquarius. Trinta anos depois, nos acostumamos a jogar para não perder.

Em determinado momento da história, a direita parece ter descoberto essa fragilidade. A coisa começou pela imputação de culpa e imoralidade generalizada. Traição aos ideais éticos praticada pelos líderes. A resposta, ainda que vacilante, confiava na ideia de que a Lava Jato era parte da autocrítica e que, na roleta geral da culpa, a esquerda ainda tinha farto capital moral para gastar. O erro impercebido foi ignorar que do outro lado emergia um adversário que tinha outra gramática para a culpa. Um adversário que fazia política na base da teologia da prosperidade, e na equação de que: se tenho mais, mais me é devido. Isso não é meritocracia, mas autojustificação do poder. É claro que essa retórica exige massiva repressão da culpa. Se você pensou que isso se faz à base do reforço delirante da convicção de que a culpa é do outro e somente do outro, acertou.

Portanto, há um fragmento de verdade na acusação de que faltou autocrítica. Faltou autocrítica e sobrou culpa. Certamente isso influiu nos julgamentos decisivos nos quais começamos a perceber matizes de vingança e parcialidade, bem como personagens “imunes” a culpa. Há um fragmento de verdade no déficit de autocrítica, na impossibilidade de reconhecer erros e na resistência a voltar a trás. Esse fragmento não foi o pedalinho do Lula, mas a gramática da culpa que se viu revertida e assumida pela direita como máquina de guerra. Foi assim que pessoas imorais, indecentes e com ficha corrida na corrupção puderam elevar-se à condição de acusadores. Isso só foi possível porque o lugar do acusador já estava feito, polido e esperando seu novo ocupante.

Quando dizíamos, generalizando o consenso de uma conversa interna, que o outro era fascista, machista, misógino, preconceituoso e homofóbico, nos vimos, estarrecidos e desprevenidos, diante de um interlocutor que dizia: “Sou sim, sem culpa alguma! Aliás, a culpa é do PT!” O argumento transitivista, próprio a toda narrativa de sofrimento, abriu o flanco para ouvirmos: “Se você é feminista, eu posso ser machista! Se você tem direito de achar que a terra é redonda, minha opinião de que a terra é plana tem que ter o mesmo valor e importância!” Essa parasitagem de argumentos, essa instrumentalização retórica talvez não tivesse acontecido se o afeto político hegemônico na esquerda não fosse a culpa.

A culpa é um afeto pouco transformativo. Em geral, assim que achamos o culpado nos desimplicamos do processo. Confundimos culpa e responsabilidade. Ser responsável é reparar, manter-se fiel ao processo, interessar-se pela sua continuidade. Ser culpado é o que basta para punirmos o outro, ou a nós mesmos, pela nossa própria impotência e cair fora. A lógica da culpa serve para esquecermos de nossa responsabilidade e implicação, por isso ela tem uma função catártica: uma espécie de alívio imediato, mas seguido de um aumento gradual da carga de angústia. No longo prazo, é pela culpa que nos devora o superego, este glutão que sempre quer mais, que nos diz sempre que ainda não está bom e que não chegamos… ainda, na perfeição. Quanto mais respondemos ao superego, mais ele pede e mais nos sentimos inadequados, infelizes e impotentes. Gozam pelo superego estes que se apaixonaram pela correção e pela acusação dos impuros. Gozam com a força da lei e com a humilhação do outro o seu parceiro fantasmático. Uma nova nova esquerda pode beneficiar-se com um deslocamento de afetos, permitindo que a autocrítica se separe da imputação de culpa colocando em sua cúspide o desejo de transformação.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Israel e o uso político de Brumadinho

Por Soraya Misleh, na revista CartaCapital:


Diante da tragédia em Brumadinho (MG), expressões de solidariedade vêm dos lugares mais distantes. Lamentavelmente, as vidas humanas ceifadas pela ganância do capital também despertam oportunismo. Caso do Estado de Israel, cuja violação de direitos humanos fundamentais é praxe. Frente ao espetáculo midiático em torno da ação dos seus mais de 130 soldados na região desde a última segunda-feira (28), pode ser vista por pessoas bem intencionadas com bons olhos. Natural.

Contudo, não é o caso. Nada mais fake do que a “ajuda humanitária” oferecida pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, anunciada por Bolsonaro em declaração à mídia brasileira em 26 de janeiro – dia seguinte à ruptura de quatro barragens de rejeitos na região. Ao contrário da propaganda que vem sendo feita, essa oferta israelense não tem nada de nobre, sequer é necessária. Visa transmitir ao mundo imagem positiva diante das denúncias do contínuo apartheid, colonização e ocupação desumanos a que estão submetidos os palestinos todos os dias, há mais de 70 anos. 

Nos territórios invadidos em 1967 – Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental –, a ocupação israelense ceifou quase 300 vidas palestinas somente em 2018 e coloca 2,5 milhões de pessoas necessitadas de assistência humanitária, além de 1,6 milhão em situação de insegurança alimentar, segundo relatório da Coordenação de Assuntos Humanitários da Organização das Nações Unidas de dezembro de 2018 (confira clicando aqui).

A ação israelense, repleta de “segundas intenções”, é denominada Aid Washing – em português, algo como “lavar de ajuda”. Por essa razão, tem motivado indignação e repúdio. Sem contar que a presença israelense se dá em violação a lei federal (nº 1.079/1950), que determina que o Presidente da República precisa da anuência do Congresso Nacional ao trânsito de tropas estrangeiras em território nacional. A autorização dada por Bolsonaro, passando ao largo do Legislativo, portanto, constitui crime de responsabilidade passível de impeachment.

É a primeira vez que Israel recorre a Aid Washing no Brasil, mas não é novidade no mundo. Entre os exemplos recentes, ação em setembro de 2017 durante o terremoto na Cidade do México que deixou mais de 300 mortos e, em julho de 2018, no resgate dos meninos tailandeses presos em caverna nesse último país – ambas tragédias que causaram comoção mundial, como essa da ruptura das barragens em Brumadinho. Relações públicas a serviço de encobrir crimes contra a humanidade e ampliar seus acordos com os governos cúmplices do apartheid na Palestina, que em nada beneficiam a sociedade local, seus trabalhadores e trabalhadoras.

Israel não é o único na história a usar tragédias: estudos demonstram que o regime de apartheid na África do Sul, que perdurou de 1948 a 1994, fez muita propaganda na intenção de vender imagem positiva ao mundo, antes de a campanha internacional de boicote se consolidar e mesmo na busca por contrapor-se a essa ação poderosa de solidariedade. Segundo reportagem publicada pela BBC em 1º de dezembro de 2017, a África do Sul realizara o primeiro transplante de coração do mundo em 1967, que serviu à campanha de relações públicas para encobrir a segregação que os negros enfrentavam no país. 


“No livro, ‘Cada Segundo Conta: A Extraordinária Corrida pelo Primeiro Transplante de Coração Humano’, publicado em 2006, o escritor sul-africano Donald McRae destaca que, minutos após ser informado do transplante, em 3 de dezembro de 1967, o primeiro-ministro John Vorster escreveu um memorando interno ao seu gabinete: ‘Nós podemos associar esse momento histórico da medicina a uma imagem positiva do país, após toda essa propaganda contrária a nós pelo mundo’(…).” Documentário intitulado “Terra, paz e propaganda” demonstra que, ao lado dos investimentos militares, com a ajuda de bilhões de dólares do imperialismo estadunidense, Israel conta com fortes inversões em relações públicas. Somente em ajuda militar, os Estados Unidos, ainda durante o Governo Obama em 2016, anunciaram o montante recorde de US$ 38 bilhões por dez anos.


Sem eficácia

Tecnologias como as que foram trazidas para Brumadinho são desenvolvidas com tais recursos. Não obstante, como se destinam à limpeza étnica e à manutenção da ocupação ilegal na Palestina, não tem eficácia para salvar vidas. Ao portal Folha/UOL de 28 de janeiro, o tenente-coronel Eduardo Ângelo, comandante das operações de resgate, afirmou que os equipamentos israelenses trazidos a Brumadinho “não são efetivos para esse tipo de desastre”. Ele acrescentou: “O ministro de Israel se pronunciou a respeito das dificuldades que eles tiveram. O imageador que eles têm pega corpos quentes, e todos os corpos [na região] são frios. Então esse já é um equipamento ineficiente.” Do alto da arrogância e falta de sensibilidade de quem representa um projeto colonial, o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley, também à mídia, desqualificou a declaração, dizendo que “há pessoas com ciúmes”. E completou: “Quem estiver frustrado com a melhora no relacionamento entre Israel e Brasil, que se acostume e ‘engula o chapéu’.”

Causa estranheza que o Governo de Minas e a Presidência da República saúdem a vinda israelense como necessária nesse momento, ao mesmo tempo em que recusam ajuda local, seja de bombeiros voluntários de outros estados, como São Paulo, seja de efetivo das Forças Armadas Brasileiras. É o que vem ocorrendo, conforme reportagem da Agência Estado de 28 de janeiro. Segundo a notícia, militares das Forças Armadas estão de prontidão desde dia 25 em Belo Horizonte “para serem empregados, em um primeiro momento, na tentativa de salvamento de pessoas que poderiam estar em áreas isoladas ou em meio à lama por causa do rompimento da Barragem em Brumadinho, e depois para auxiliar no resgate de corpos, para diminuir o sofrimento dos que estão em busca de seus parentes”. Contudo, segundo a matéria, o Governo de Minas não os requisitou, afirmando que há pouco espaço para manobra, a área é restrita e o risco de contaminação, elevado. “Penso que já deveriam ter usado (o pessoal das três Forças). Eu penso que a ajuda dos homens do Exército, da Marinha e da Aeronáutica é muito importante nesta hora. Eles têm experiência. O momento é de unir forças”, declarou ainda à Agência Estado o deputado Fábio Ramalho (MDB-MG).

Logo após a visita do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ao País, a “ajuda” a Brumadinho, ao que tudo indica, vai ao encontro da aproximação explicitada pelos representantes sionistas e por Bolsonaro, como amplamente anunciado já durante a campanha eleitoral. Esse governo declara abertamente seu amor por Israel e promete mais acordos bilaterais. Assim, a ação traduz-se também em publicidade para a venda ao Brasil de mais tecnologias testadas sobre as “cobaias” humanas que Israel converte os palestinos cotidianamente. Na contramão do que reivindica o movimento de BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que traz as reivindicações básicas ao fim da ocupação, entre elas que se cumpra o legítimo direito de retorno dos milhões de refugiados palestinos às suas terras. E algo bem distante da verdadeira solidariedade internacional – expressa às vítimas de Brumadinho também por palestinos em todo o mundo.