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terça-feira, 28 de novembro de 2017

E se não der?



A história do presidente Lula poderia ser narrada em forma de epopeia. O juiz Moro tem ajudado muito no final do enredo. Pensava ele que passaria para a História como a luta do “bem contra o mal”, sendo ele – obviamente – o “bem”. Acontece que a História é uma senhora velha, culta e que não se deixa enganar. Lula já estava nela como um dos três maiores presidentes do Brasil, e pode vir a ser o maior. De fato, Lula é o único com reais possibilidades de se tornar três vezes presidente pelo voto popular. Só não ocorrerá em caso de um segundo golpe sobre a democracia brasileira. Este segundo golpe é aposta de uma parte da elite que nunca estudou à fundo a história do mundo ou do próprio país. Lula, hoje, representa a única forma de reunificação do país. É o único candidato que teria condições de fazer voltar o jogo da democracia, também por isto sua rejeição despenca e é a menor entre todos os candidatos.
Mas e se não der? E se, em algum destes degraus que se tornam cada dia mais perigosos, o presidente ficar retido, certamente contra a sua vontade?

Esta é uma pergunta recorrente que a direita se faz e a esquerda também. E a resposta a ela coloca no mesmo lado posturas políticas antípodas, mostrando como e porque Lula é hoje o único caminho viável para a reconstrução institucional do país.

Existe uma direita doidivana e fascista, que foi apelidada por um jornalista ex-doidivano e fascista de “direita xucra”. Aquela que acha que vai matar, vai bater e vai arrasar com todos aqueles que não pensam como eles. Esta direita nunca leu um livro de História na vida e morre de medo de um dia ter que fazer. Se tivesse lido, veria que nunca a humanidade compartilhou deste pensamento. Mesmo impérios na antiguidade eram forjados em consensos e acordos e todos aqueles que quiseram se impor pela força das armas acabaram mortos. Como recurso didático sugiro procurar na internet a foto do corpo de Mussolini quando de sua morte. Para esta direita Lula não será presidente pela força das armas e da violência. Uma violência mantenedora do status quo, racista, preconceituosa, machista e ignorante. Que parte da ideia de que o mundo é plano, passa pela noção de que armas aumentam a segurança urbana e termina, com chave de ouro, dizendo que o fascismo era de esquerda e que não é bom jogar xadrez com pombos. Eu fico de má-vontade, confesso, em conversar com alguém que já jogou xadrez com pombos e usa esta experiência como argumento. Acho, também, que deveríamos ver com muito cuidado se alfafa não tem algum poder alucinógeno.

O que impressiona é que um ponto de vista semelhante é defendido pela esquerda radical. Aquela para quem o aumento da violência contra a população (seja ela econômica, política ou mesmo jurídica) nos trará a redenção revolucionária. Estes, cometem o mesmo erro de Trotsky em Brest-Litovsky (1917). Em nome de uma teorização para lá de especulativa, acreditam que “quanto pior melhor”. Da violência econômica e política máxima (a fome e a guerra) nasce a consciência de classe revolucionária. Lula seria um “agente da burguesia” por impedir este processo redentor. Trotsky foi indicado para negociar a paz com os alemães em 1917, e tudo o que conseguiu, depois de mais de 30 dias de conferência, foi sacrificar todos os sovietes e trabalhadores ucranianos, quando os generais alemães se cansaram da brilhante retórica trotskysta e mandaram suas tropas avançarem. Lênin e Stalin, que haviam advertido Trotsky do erro desta estratégia, pouco puderam fazer para salvar os ucranianos e quase não salvaram a própria revolução. Acreditar no mito a “fênix” da esquerda, que renasce das próprias cinzas, é muito bonito dentro de um escritório de universidade ou como epílogo de algum livro apologético revolucionário. Mas não passa disto.

Lula é o único candidato capaz de fazer extensas alianças. Alianças, esta palavra que deixa a esquerda ruborizada e a direita moralista desesperada é o que permite que não nos matemos nas ruas. O capital internacional sabe muito bem disto, desde a segunda guerra mundial, quando fez com que comunistas e capitalistas fizessem aliança entre si e com colonialistas para vencer o nazi-fascismo. Se não for Lula o capital no Brasil também sofrerá. Não falo aqui das figuras emblemáticas do grande capital que já estão lucrando com o golpe e provavelmente continuarão a lucrar. Falo da massa de pequenos e médios empresários que serão varridos para a pobreza assim como altos funcionários que terão sua qualidade de vida despencando por conta de uma crise política. A opção inteligente, mesmo para a direita liberal brasileira é Lula. Com pactos exigindo que o presidente ceda em alguns pontos ... enfim, alianças. Sem elas podemos nos preparar para um 2018 que não vai acabar.

“Mas alianças a que preço, Fernando?”. Ora, se você já está pensando em “preço” então é porque já temos um início de negociação. Eu acho que nem eu, nem você podemos ter a petulância de querer colocar um preço moral em alianças. Pergunte àquela mãe que perdeu vários bebês para a fome, nos anos 90, qual o preço de alianças. Pergunte olhando nos olhos dela, e não pensando em algum moralismo difuso que se baseia nos escritos do século XIX de algum europeu branco e gordo. O mundo é aqui e a vida é agora. E são muitos “preços” que devem ser colocados na mesma mesa de negociação. Por que o seu vale mais? Enquanto tiver um brasileiro passando fome ou fora da escola, qualquer coisa que impeça uma aliança é um preço alto demais a se pagar.

Se não der Lula teremos o caos. E é isto o que a esquerda tem hoje de melhor a fazer na “luta contra o golpe”. Evitar o caos.

Se formos olhar com cuidado, os quatro grupos mais atacados pelas medidas golpistas não se levantaram em momento algum. Os sem-terra e os sem-teto, em que pese liderados por pessoas articuladas e cheias de frases de efeito, nada fizeram. As mulheres e os professores, atacados diuturnamente pelo (des)governo Temer, também nada fizeram. Estes quatro grupos mostram que a sociedade brasileira não vai se levantar, não importa o tamanho da sela que lhe coloquem no lombo. Toda a “resistência” ao golpe, descontadas as dancinhas, cânticos e um carnaval fora de hora, se baseia no aumento do custo das medidas indignas ou injustas. E só isto. Tudo o que a esquerda está fazendo é aumentar o custo político para cada ação que Temer toma. Esperando a chegada de um Napoleão, um Fidel, um Lênin ou um Toussaint Louverture ...

Só há dois caminhos para o Brasil, ou a restauração institucional e democrática com um candidato que seja capaz de fazer alianças e que tenha um projeto de Brasil, ou a violência aberta e direta que se apresentará, caso a extrema direita ou a extrema esquerda queiram colocar em prática os seus – identicamente a-históricos – planos e pensamentos. Como o povo brasileiro historicamente não se levanta por coisa alguma (e a farsa de 2013 cada vez mais se mostra como tal), creio que a única solução é um reformismo lento, mas que temos que lutar que seja contínuo. Com as instituições mediando os conflitos políticos e acolhendo a violência para dentro de si evitando que ela se espraie socialmente.

Lula não é “de centro” como uma parte da esquerda está tentando colocar. Também não é “extrema esquerda” como a direita insiste em acusar. Lula, hoje, é o consenso que o Brasil pode ter. Não é Lula que precisa ser presidente. É o Brasil que precisa dele presidente. O centro político brasileiro precisa entender que hoje o consenso institucional possível, capaz de manter o jogo democrático e alguma ordem social com crescimento econômico está um pouco mais à esquerda do que eles gostariam. E a esquerda entender que as teses trostskystas de que a pressão social funda uma consciência revolucionária nunca saíram do papel. Ou peguem em armas, como fizeram Lênin, Trotsky, Stalin, Fidel e tantos outros – arcando com o custo social, psicológico e histórico disto – ou parem de bravatas infantis e passemos a consolidar uma candidatura que possa sim fazer alianças. Que possa chegar a uma agenda mínima aceitável para o país. De forma material e clara, e não idealista, ideológica ou moralista.

Cada vez que vejo alguém criticando “alianças” sem ter um fuzil na mão, penso como não aprendemos nada com a história do século XX. Respeito qualquer um dos caminhos, o do fuzil ou das alianças, mas não um “caminho do meio”. A violência é a base social humana, resta saber se você quer apostar nela aberta e crua ou institucional e cínica. E se você está disposto a pagar pelo preço de uma ou de outra escolha.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

AFINAL... O QUE É A CHINA?

Por Carlos D'Incão

Uma das perguntas mais frequentes que sempre me fazem - como professor e como marxista - é essa: “A China é comunista ou capitalista?”

A minha resposta é simples: A China é comunista. Ou, melhor dizendo, a China é um país socialista dirigido por um Partido Comunista.

A partir daí começo uma explicação mais detalhada para quem se interessa pelo tema...

Segundo a filosofia marxista, o socialismo é um período de transição para o comunismo, um período onde a classe trabalhadora assume o poder político do Estado através de seu partido de vanguarda (o Partido Comunista) e executa ações na direção de superar a sociedade de classes, junto com seus antagonismos e limitações.

O Estado - segundo o marxismo - é um conjunto de instituições burocráticas que serve, hegemonicamente, aos interesses de uma determinada classe social. Quando a classe trabalhadora assume o poder do Estado, ela deve iniciar um processo de superação dessa formação social primitiva, pautada na exploração de uma classe social sobre as demais, cuja sociedade capitalista é sua última expressão.

Esse processo não é nada fácil, pois além de se realizar reformas estruturais no campo econômico, político e administrativo, esse novo Estado precisa implementar uma quantidade enorme de ações que visem a superação de todo um universo que compunha a “antiga sociedade”, como o combate às diferenças de gênero, os preconceitos e aspirações burguesas, as filosofias e crendices do passado, as diversas formas de opressão existentes em âmbitos privados, etc.

Por fim, o Estado socialista ainda viverá por um processo de agressão externa dos demais países capitalistas que visam sua destruição através do boicote, da sabotagem e - se possível - pela intervenção armada. Tudo isso porque a existência de um Estado socialista é, por si só, um péssimo exemplo aos povos oprimidos de todo o planeta.

Após a superação desses desafios, podemos dizer que uma nova sociedade começa a existir. Uma sociedade onde todos os homens e mulheres vivem em paz e são livres para se desenvolverem de acordo com suas aspirações e potencialidades. Aqui já não existirá um Estado a serviço de uma classe, pois não existem mais classes... o que existe é uma sociedade plural e rica, onde ninguém possui o direito de explorar o trabalho alheio.

Nesse momento, o Estado - no conceito marxista - deixa de existir. E a esse novo estágio chamamos de comunismo. Isso não significa, obviamente, que houve a supressão da administração pública e muito menos das numerosas instituições que são fundamentais para a existência de qualquer vida em sociedade.

O Estado deixa de existir no sentido de que já não existe uma sociedade de classes. Diferentemente dos anarquistas, os comunistas não acreditam que a simples existência de instituições constituídas de divisões e hierarquias “corrompem a alma dos Homens”. O comunismo é a superação do capitalismo por apropriação, é uma sociedade simplesmente mais evoluída.

A rigor nenhum país no Mundo é ou já foi comunista. A URSS, por exemplo, viveu ao longo de toda a sua existência sitiada pelos países capitalistas. Sofreu com uma guerra civil, com a invasão de mais de dez países sobre seu território, com uma série de boicotes e sabotagens, com um ataque monstruoso da Alemanha nazista e com uma guerra fria bilionária contra os EUA. Enfim, nunca teve condições de sonhar em evoluir para o comunismo...

E a China também não chegou nesse estágio comunista. É ainda um país socialista.

Mas alguns ainda possuem dúvidas e perguntam: “Como a China pode ser socialista se lá há grandes empresas capitalistas e relações de trabalho também capitalistas? Ainda que isso ocorra apenas em determinadas áreas, isso não retiraria o título ‘socialista’ da China?”

Em hipótese alguma.

Em primeiro lugar, fazer concessões capitalistas dentro do socialismo não é algo inventado pela China. Lênin e o Partido Bolchevique executou esse tipo de ação logo após a Guerra Civil na URSS. Essa experiência ficou conhecida como NEP (Nova Política Econômica) e visou reestruturar a economia da URSS em um período de colapso causado pela guerra.

A NEP acabou ajudando na superação dessa crise, mas acabou sendo substituída pelos planos econômicos planificados conduzidos pelo próprio Estado. Isso ocorreu porque o boicote mundial imposto contra a URSS impedia a entrada de qualquer capital estrangeiro... O Estado socialista soviético teve, enfim, que estruturar novas formas para estabilizar e fazer crescer sua economia...

Aqui podemos chegar a uma conclusão muito importante: para os marxistas, o caminho para o socialismo e para o comunismo não é um trilho, mas uma trilha. Não existe um só caminho e uma só fórmula engessada. Há, na verdade, vários caminhos para se chegar ao socialismo e qualquer teoria revolucionária-mecanicista é necessariamente anti-marxista e fadada ao fracasso, inclusive na análise histórica.

Voltemos agora à China.

A China adotou, a partir da década de 70, reformas econômicas que permitiram a abertura de seu país para investimentos capitalistas. Tudo foi feito de forma organizada e planejada. O que devemos perguntar aqui é: quanto poder ou influência política ganhou o capital estrangeiro na China, desde a sua abertura?

Resposta: Nenhum. Ao longo de todas essas décadas o Estado permaneceu sob o poder da classe trabalhadora chinesa e seu Partido Comunista.

Outra pergunta: Qual foi o impacto social que a entrada desse capital ocasionou?

Resposta: ele financiou a modernização do campo, industrializou gigantescas regiões que são exclusivamente de economia estatal, retirou da miséria mais de 300 milhões de chineses, colaborou para a implementação de um sistema de saúde público universal, ajudou a estruturar, para todos os chineses, um sistema educacional público que vai da educação infantil até a universidade, financiou um sistema habitacional para mais de um bilhão de cidadãos e fez a economia da China crescer 90 vezes até se tornar, no início do século XXI, a segunda maior economia do Mundo.

Bom... Está evidente aqui que o Estado Chinês usou o capital estrangeiro para o desenvolvimento de sua própria força produtiva, isto é, em benefício do seu próprio povo. Antes da Revolução de 1949 a China tinha uma expectativa de vida que não passava dos 60 anos. Hoje é um país onde o povo tem uma das maiores expectativas de vida. E... (pasmem) lá todo mundo se aposenta...

Desde a abertura da economia chinesa, o Mundo capitalista viveu 12 crises e 2 depressões econômicas. A China cresceu ao longo de todo esse período de maneira ininterrupta, sem nunca registrar um único período de recessão. Sua média anual de crescimento é de quase 10%...

Está aqui mais uma prova, nesse caso científica, de que ali não existe capitalismo. O que existe na China é uma economia socialista com concessões ao capital externo.

E não se trata de qualquer capital... É um capital produtivo, que gera emprego, renda, sem especulação e que é regrado por leis e contratos socialistas que o obriga a se tornar estatal após 20 anos, ficando a China inclusive com o direito de uso intelectual de suas invenções.

Por favor... que alguém me aponte no Mundo onde existe um país capitalista com todas essas características até aqui elencadas...

Mas... Alguém poderia perguntar: “Se a China é socialista, por que ela não sofre ataques como a URSS e Cuba? A China é inclusive a maior parceira econômica dos EUA...”

Vejamos. “A China não sofre ataques”... Sim... É verdade... Porém... Talvez isso seja porque ela possui armas nucleares, o maior exército do mundo (2,3 milhões de soldados) e gaste nominalmente 400 bilhões de dólares por ano em armas (o equivalente a quase 50 bilhões de dólares no mercado internacional). Se a China fosse “amiguinha” dos países capitalistas poderia ser tão desarmada como o Japão... Mas a China socialista não é, nunca foi e nunca será amiga do capital.

Agora, no que diz respeito à parceria econômica com os EUA, é preciso salientar que hoje a maior dívida pública dos EUA é com a China e ela fornece aos EUA a maior parte de sua tecnologia de ponta. Em suma, o que existe aqui é a dependência dos EUA em relação à China e não o contrário... Aos poucos a China está engolindo - a olhos nus - a suposta maior potência econômica do Mundo...

Por fim, alguém poderia dizer: “Mas me disseram que o socialismo acabou e na Rede Globo eu assisti que a China na verdade é um país capitalista com um partido comunista de mentirinha...”

Pois é... A questão é: quem é ingênuo a ponto de achar que os meios de comunicação controlados pela burguesia iriam falar outra coisa? Claro que vão dizer que o socialismo fracassou! E se a segunda maior economia do mundo é socialista... Claro que vão dizer que essa economia não é socialista!!! Vão dizer que é capitalista!!! Isso tem um nome: propaganda ideológica.

Afinal, é importante que nos países capitalistas os trabalhadores acreditem que não existe nenhum outro modelo econômico que funcione, que não o capitalista.

É importante que os trabalhadores acreditem que o socialismo não existe mais... E como pode ter alguém que possa achar que a China é pelo menos “em parte socialista”, vão dizer que o socialismo existe lá sob formas desumanas... através da censura, ditadura, opressão, etc... e o lado bom da China - que é a prosperidade econômica - surpresa! é fruto do capitalismo!

Porém, nada disso se sustenta perante os fatos... A China é um país socialista ponto final. E o Mundo capitalista está se curvando, cada dia que passa, um pouquinho mais ao seu poder econômico.

O último Congresso do Partido Comunista Chinês estabeleceu que a partir de 2025 a China não aceitará mais nenhuma forma de capital financeiro e até 2045 pretende ter uma economia 100% estabelecida em riquezas reais. Bem capitalista isso né...?

Mais uma vez, é preciso frisar que existem vários caminhos para o socialismo e para o comunismo. A China está simplesmente trilhando o seu próprio caminho.... Negar o carácter socialista da China só pode ser oportunismo ou ignorância...

O problema é que não é raro ouvir gente da esquerda brasileira falando que a China é capitalista... E sem perceber fazem uma enorme propaganda para o capitalismo... como se esse sistema fosse capaz de atingir as realizações que o sistema socialista chinês alcança todo ano... além disso acabam por desinformar seus interlocutores...

Já é chegada a hora de abrirmos um pouco mais os olhos e vermos o Mundo como ele é de fato: é um Mundo bem diferente daquele que está na televisão... É um Mundo onde os países capitalistas estão agonizando em uma crise infindável enquanto o país mais populoso do Mundo, o “planeta China” cresce economicamente cada vez mais, a cada ano.

Esse Mundo real, que não é mostrado pelos inimigos dos trabalhadores, nos aponta que o socialismo é o futuro de toda a humanidade. E esse é um futuro de prosperidade, paz, liberdade e sabedoria.

sábado, 4 de novembro de 2017

Enquanto Temer escapava de novo, 'liberais' tentavam cancelar palestra

Vladimir Safatle

Nos próximos dias 7, 8 e 9 de novembro, o Sesc Pompeia abrigará um simpósio internacional intitulado "Os Fins da Democracia: Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca pela Soberania Popular".

Resultado de uma associação entre a Universidade da Califórnia - Berkeley e a Universidade de São Paulo, através de seu Departamento de Filosofia, o seminário é fruto das ações de um consórcio internacional composto por acadêmicos dos mais diversos países (EUA, Brasil, Chile, Turquia, França, Argentina, Alemanha, Itália, entre outros) dispostos a discutir e pensar temas centrais para a compreensão dos desafios imanentes a nossas sociedades contemporâneas.

O evento é um exemplo bem sucedido de recusa da universidade em se acomodar à condição de "gueto de luxo" (e não foi por outra razão que decidimos levar o simpósio para fora do campus da USP) e de internacionalização da universidade brasileira.

No entanto, neste exato momento, circula uma petição para o cancelamento do simpósio, assinada por centenas de milhares de pessoas (além de vários robôs, como é de praxe). O motivo principal é a presença de Judith Butler entre os organizadores. Notem que a petição não conclama a manifestação na porta do Sesc, ela pede o puro e simples cancelamento do evento.

Entre os signatários e estimuladores estão vários movimentos que se dizem "liberais". Bem, para um país onde, até pouco tempo, era possível ser liberal e escravocrata, não é estranho descobrir liberais que não levam a sério princípios elementares de liberdade de expressão e pensamento. Mais uma prova de que "liberal brasileiro" é como, segundo Marx (não Karl, mas Groucho), "inteligência militar": uma contradição em termos.

Mas por que Judith Butler não deveria falar? Por acaso ela elogiou torturador, afirmou que só não estuprava uma mulher porque ela não merecia, justificou terrorismo de Estado ou comparou negros a animais que se pesam por arroba? Não, até porque nada disso é realmente um problema para os assinantes de tal petição.

O problema é ela discutir a naturalidade de identidades de gênero, lembrar —à sua maneira—, que a anatomia não é o destino, auxiliar a mudança de percepção social em relação àqueles que não encontram lugar em um binarismo estrito.

Agora, nossas famílias serão destruídas (como se elas não se destruíssem sozinhas), nossas crianças serão pervertidas (como se as crianças já não fossem, como lembrava Freud, perversos polimorfos) e teremos que conviver com pessoas que não temerão afirmar suas formas de gozo (suprema afronta).

A primeira reação diante de tal disparate foi ver nela uma clássica manobra diversionista.

Todos esses grupos e indivíduos saíram às ruas para "protestar contra a corrupção" e prometer um país em franco crescimento, reconciliado com os "mercados" após o impeachment do antigo governo.

E eis que no dia em que Temer, governando sob os escombros da pauperização social, escapava de seu segundo processo graças à compra de votos no Congresso Nacional, todos eles se mobilizam novamente para... pedir o cancelamento de uma palestra de Judith Butler. Fantástico, não?

Ou seja, diante da clara expressão de terem levado o Brasil a um embuste, de terem zombado do povo brasileiro quando gritavam contra a corrupção, eles agora procuram se associar à nata do conservadorismo religioso para jogar uma cortina de fumaça e apontar o dedo contra intelectuais e artistas.

Mas então veio a segunda reação, pois, mesmo que o diversionismo seja real, ele não explica tudo.

De fato, uma sociedade na qual sujeitos não se submetem mais ao controle de suas expressões de gozo e de identidade, uma sociedade na qual a visibilidade dos corpos e do desejo não se dobra mais à culpa tem algo de intolerável para alguns.

A consciência da contingência de nossas normas sociais e a quebra da ilusão de que a natureza fundamenta nossas formas de vida: não é este o início de toda liberdade efetiva?

Nesse sentido, estas pessoas sabem muito bem o que fazem. Pois elas sabem que a paralisia da força de transformação nos modos de existência é a chave para a preservação das estruturas macroinstitucionais, mesmo que estas estejam degradadas.

De toda forma, gostaria de aproveitar essa oportunidade e agradecer a eles, do fundo do coração. O que mais poderíamos querer como prova da pertinência de discutir "os fins da democracia" do que uma manifestação, vinda dos setores mais obscurantistas da sociedade e suas redes internacionais, contra a própria realização de nosso simpósio?

Aqueles que se compraziam em dizer que a universidade vive de costas para a sociedade, que ela perdeu toda a relevância e é habitada por nefelibatas, deveriam nuançar suas avaliações.