Total de visualizações de página

domingo, 15 de maio de 2016

Leandro Karnal: Cheios de fome

Não existe contradição em termos porque não existem termos no PMDB. Não há negação de valores porque isto implicaria a existência deles.


Escrevo com o Brasil já sob nova administração. Crônica de uma morte longamente anunciada, a presidente Dilma foi afastada do cargo e o vice, Michel Temer, assumiu o posto máximo do Executivo.

Vices são fundamentais no Brasil. A história da República tem tantos que seria prudente colocar em primeiro plano, nas próximas eleições, as ideias e a biografia do eventual substituto.

Deodoro foi nosso primeiro presidente, mas renunciou meses após ter sido eleito. Seu vice- Floriano Peixoto, trouxe energia e ideologia ao cargo, e é chamado de “consolidador da República”.

Nosso primeiro presidente civil, Prudente de Morais, tinha saúde frágil e o vice, o médico Manuel Vitorino Pereira, teve oportunidade de substituí-lo. A morte do presidente Afonso Pena, em 1909, levou o vice Nilo Peçanha ao poder. A gripe espanhola levou o eleito Rodrigues Alves e seu vice, Delfim Moreira, assumiu entre 1918 e 1919.

O assassinato de um vice, João Pessoa, em 1930, foi o estopim de um movimento que levou Getúlio Vargas ao Catete. Sem vice ao subir, Getúlio caiu sem vice em 1945, levando o presidente do STF (José Linhares) a se tornar a alternativa possível. Outro vice, Café Filho, assumiu quando do suicídio de Vargas, em 1954, sendo o primeiro protestante a subir à presidência do Brasil. Outro vice, João Goulart, tornou-se presidente em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros. Pedro Aleixo foi impedido de assumir quando o marechal Costa e Silva teve um problema de saúde. Daqui em diante a memória de muita gente ajuda: desde a redemocratização, 3 vices (Sarney, Itamar e Temer) tornaram-se presidentes.

Os três últimos apresentam em comum serem membros do PMDB. Partido surgido com o Ato Institucional número 2 (outubro de 1965) que dissolveu o pluripartidarismo e criou MDB e ARENA, uma oposição confiável e um partido da situação.

Curiosamente, nas justificativas para o ato institucional, os militares usaram um argumento que, de alguma forma, foi repetido por muitas pessoas nas votações da Câmara e do Senado recentes. Dizia o texto : “A Revolução é um movimento que veio da inspiração do povo brasileiro para atender às suas aspirações mais legítimas: erradicar uma situação e um Governo que afundavam o País na corrupção e na subversão.”

É uma característica quase universal dos movimentos políticos invocarem que falam em nome do povo e não de interesses partidários ou pessoais. Desde que o conceito povo entrou no vocabulário político do Ocidente, com a Revolução Francesa, ele tem sido usado para tudo, menos para os interesses do povo propriamente ditos. O nome povo sempre foi sagrado, mas o povo real sempre foi alvo de gás de pimenta.

O MDB virou PMDB e continuou sendo uma frente ampla, sem uma posição clara sobre a maioria das questões. Acima de tudo, o partido virou peça estratégica. Por quê? Ele é suficientemente variado e amplo para poder estar associado a qualquer projeto político mais claro. Pode estar ao lado de um político tradicional como Tancredo Neves ou ao lado de um emergente da política como Collor. Também não faz má figura ao lado de um ex-operário socialista como Lula. Não existe contradição em termos porque não existem termos no PMDB. Não há negação de valores porque isto implicaria a existência deles.

Eventualmente, críticos do governo FHC podem levantar pontos e medidas que contrariam a tradição sociológica do ex-presidente ou a alegada social-democracia do seu partido. Da mesma forma, inimigos da era Lula-Dilma podem demonstrar que o mercado financeiro foi beneficiado de forma estranha para a orientação esquerdista de ambos. Esqueçam o que escrevi ou deletem quem eu fui são frases inerentes ao exercício do poder real no Brasil. Porém, seria injusto alegar qualquer incoerência com o PMDB. Incoerência em relação a qual princípio?

O PMDB foi convidado para estas chapas eleitorais não pelos valores, mas pela sua presença no legislativo federal e nas prefeituras, pela sua imensa atomização e maleabilidade. Sei exatamente o que pensam os deputados Bolsonaro ou Jean Wyllys. E um deputado do PMDB?

O novo presidente da República, Michel Temer, anunciou que constituiria um ministério de notáveis e com cortes no absurdo número daquela esplanada. Retrocedeu nas duas decisões. Lógica da Realpolitik: não é o idealismo da transformação que marca a ação nem de Temer e nem do PMDB, mas da já gasta ideia do príncipe de Salina de Lampedusa, da mudança superficial para garantir a manutenção estrutural. Dilma levou tempo para entender que o cão de guarda furioso ajuda o dono, desde que muito bem alimentado.

O curioso é que o PMDB foi escolhido por representar esta segurança. Sarney era o líder do partido que apoiou a ditadura e seu nome deveria acalmar conservadores sobre as intenções da Nova República. Itamar Franco era o contrapeso à ação coruscante de Collor. Temer cumpriu o mesmo papel. O PMDB garantia a blindagem do governo e esta quase autonomia bonapartista que marca Brasília em relação à nação.

O poder dos bastidores, o conchavo de sacristia, as reuniões que decidem tudo antes de levar a questão já acordada para o plenário foram e são as marcas dos políticos profissionais. A política assim concebida, só entende valores como “clamor das ruas”, “respeito à constituição”, “bandeira da ética” ou outra qualquer como óleo a ser usado para lubrificar as engrenagens do poder. Democracia e povo são fundamentais, desde que, claro, não contrariem o objetivo prático e imediato do interesse político.

Mas há um risco em passar de vice a titular. É o risco inerente a toda amante que deseja ser esposa. A vida alternativa tinha quase todos os benefícios e pouca exposição. Agora, a vidraça está exposta ao sol e ao alcance dos estilingues. Poderíamos inverter a frase de Jesus no Calvário: “Pai, eles podem ser perdoados? Não sei, mas eles sabem exatamente o que fazem”. Não duvide disto, leitor!

domingo, 8 de maio de 2016

O veneno neoliberal concentrado que vamos ter que engolir



É uma sorte histórica que tenhamos Henrique Meirelles e Armínio Fraga para tomarem conta da economia depois do golpe. Como mandam as leis dialéticas, é inevitável, para o progresso político, que os contrários se sucedam a fim de produzirem sínteses históricas progressivas. No nosso caso, depois de um período morno, conciliatório de classes, dos governos do PT tivemos o gosto amargo da radicalização neoliberal de Joaquim Levy e Nélson Barbosa. Foi um fracasso retumbante, mas não inteiramente compreendido pela sociedade. É preciso algo mais forte para se tornar convincente.


Agora teremos o veneno neoliberal concentrado. Meirelles e Armínio prometem um ataque frontal ao desequilíbrio orçamentário a fim de criarem mecanismos para a restauração da “confiança” do empresariado na economia assim como condições para a retomada do investimento e do crescimento. Há um problema com essa retórica. É pura ideologia. Uma baboseira que está liquidando as economias do sul da Europa. No mundo real, empresários só investem se há perspectiva de demanda para seus produtos, o que, na economia em contração, só é possível com gastos deficitários do governo, e não equilíbrio orçamentário.


Entretanto, o lado bom da história é o veneno concentrado. Ninguém espera de Temer uma interferência pessoal na administração econômica, do tipo da que acontecia com Dilma, de forma que a responsabilidade pelo fracasso certo da estratégia cairá no colo de Meirelles e Armínio, prometidos como os czares da economia. Isso é ótimo. Na medida em que esses próceres neoliberais se confrontarem com o desastre acentuado que eles próprios aprofundarem, será o momento de se entrar, finalmente, com a alternativa política que o governo Dilma não teve vontade ou competência de propor à sociedade depois de Levy.


Infelizmente, haverá milhões de pessoas sacrificadas nesse processo. Serão milhões de trabalhadores da iniciativa privada que perderão seus empregos ou parte de sua renda, e centenas de milhares de funcionários públicos que perderão seus cargos e vencimentos. A economia, já em contração de 4% no segundo ano consecutivo, se contrairá ainda mais. No conjunto, segundo me informou um dirigente empresarial nesta semana, no último ano fecharam nada menos do que 98 mil pequenas e médias empresas, o que é uma tragédia sem precedentes. É sobre essa realidade que recairá o veneno de Meirelles e Armínio.


Obviamente, a sociedade não ficará paralisada. A divisão que ainda ocorre sobre o impeachment de Dilma cairá brevemente no esquecimento, tendo em vista o aprofundamento da crise. Muito provavelmente seremos arrastados para a síndrome de De La Rúa, na Argentina: uma sucessão de presidentes em curto espaço de tempo, cada um se revelando mais incapaz que o outro para superar a crise. Em algum momento, teremos alguém ou uma organização com compacidade para resolver a situação. Então Meirelles e Armínio provarão do contra-veneno provocado por suas ações, voarão para sua primeira pátria, os EUA, deixando Temer como o primeiro de uma série de presidentes de crise a perder o cargo.


J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ.