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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Cultura inútil: Para que serve a utopia?

Mouzar Benedito propõe uma reflexão sobre utopia hoje, e faz um fértil apanhado das melhores frases e ditados sobre o tema, de Lamartine a Simone de Beauvoir, passando por Rosa Luxemburgo e Glauber Rocha.



Por Mouzar Benedito.

Para que chorar o que passou?
Lamentar perdidas ilusões,
Se o ideal que sempre nos acalentou
Renascerá em outros corações.
(Trecho da música tema do filme Luzes da Ribalta, de Charles Chaplin.)

Em 1516, o inglês Thomas More publicou o livro Utopia, palavra que significa “não lugar” ou “lugar que não existe”. Neste livro, descreve um lugar uma ilha com uma sociedade perfeita, ideal, harmoniosa, sem guerras, sem poderosos, sem exploração das pessoas umas pelas outras. Segundo li em algum lugar, Thomas Morus baseou suas ideias em informações passadas por Américo Vespúcio sobre o que ele viu no novo continente, principalmente no Brasil. Nossos povos indígenas teriam sido inspiradores da Utopia do escritor e humanista.

E a palavra utopia ganhou um outro significado, além do dado por ele, de sociedade ideal. É também algo irrealizável, ideia generosa mas impraticável, fantasia…

Mas para muita gente (inclusive eu) é algo extremamente necessário para que a vida valha a pena. Maluquice? Pode ser. Mas maluquice das boas. Eduardo Galeano escreveu: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Muitas vezes temos que nos consolar por reconhecer que nossos sonhos são utópicos, quer dizer, irrealizáveis. Eu mesmo tenho como utopia um mundo sem governos, sem fronteiras, sem exploração, em que todos vivam bem e harmoniosamente. Anarquista! Sim, minha utopia é esta. Mas para que o mundo seja assim, é preciso que todas as pessoas sejam boas, a ponto, por exemplo, de não precisar de existir polícia, sistema judiciário e prisões. Isso é pra lá de utópico, pelo menos por uns séculos a virem, né? Mas a gente sonha assim mesmo. No meu caso, enquanto meus sonhos são irrealizáveis, me contentaria com um socialismo real, democrático, mas continuaria com meu sonho anarquista. Sonho. Utopia.

Bom… Um intervalo aqui. Antes de falar mais um pouco sobre utopia (ou ausência dela), quero lembrar que Thomas Morus era um filósofo cristão, influenciou bastante Henrique VIII no início de seu reinado, na Inglaterra. Mas quando desaprovou o divórcio do rei, que pretendia se casar com Ana Bolena, foi afastado do cargo e preso. Condenado à morte, o rei – vejam que bonzinho – lhe deu o privilégio de escolher a forma como queria ser morto: enforcado, afogado, eviscerado (eviscerar é retirar as vísceras) ou esquartejado. Ele preferiu ser decapitado. Canonizado em 1935, com o nome Thomas More, é santo da igreja católica.

Voltemos à utopia.

Algumas pessoas se sentem incomodadas com uma coisa: o sentimento de que estamos vivendo, em certos aspectos, numa situação pior do que durante a ditadura. Tudo na ditadura era pior. Esta é a regra. E eu acredito nela, quase totalmente.

Mas uma questão mexe comigo: a utopia. A utopia estava mais presente nos pensamentos e nas ações das pessoas “do nosso lado”. Ou melhor, tinha mais gente utopista. A primeira meta do nosso sonho não era chegar ao mundo utópico, mas o começo de uma caminhada rumo a ele. Era derrubar a ditadura, depois partir para a demorada construção de uma sociedade ideal, justa, como a da Utopia de Thomas More.

Parece que há um tempo as utopias vem se rareando. Podemos dizer que as pessoas (em seu conjunto – claro que há indivíduos que destoam do conjunto, e nem são poucos) têm uma utopia? Qual é ela?

Aí é que a coisa pega. O individualismo está vencendo e não sabemos até onde vai isso, até quando… As pessoas que vivem uma mesma situação parecem não ter intenção de se unirem para a procura de um bem comum. Elas competem umas com as outras. O modelo de sociedade em que vivemos tem muito a ver com isso. Por exemplo: lá pelos anos cheios de utopia, estudantes que pretendiam fazer vestibular estudavam juntos e colaboravam uns com os outros, torcendo para que todos eles fossem aprovados. Tinha, claro, uma boa porcentagem de gente que queria só “subir na vida”, ganhar dinheiro, enriquecer. Mas tinha também os cheios de utopias, os que queriam fazer juntos o curso universitário e ajudar a construir juntos o mundo com que sonhavam.

A sociedade brasileira (e do mundo todo) mudou muito, e as pessoas acompanham as mudanças, mas tem umas “coisinhas” que é bom lembrar, e que caracterizam um pouco o momento em que se vive. Detalhes reveladores, acho. Por exemplo, isso de estudar juntos, somando conhecimentos. Na época, o vestibular avaliava os conhecimentos dos estudantes, e quem tinha nota acima de 5 estava capacitado para entrar na universidade. Então, se todos nós tirássemos nota acima de 5, todos estávamos aprovados. Claro, houve a questão dos excedentes, quando o número de aprovados era maior do que o número de vagas. Então sobravam alguns dos aprovados. Mas os que eram aceitos e matriculados brigavam juntos com os excluídos, os excedentes, pela inclusão de todos.

Há algum tempo, o vestibular é “classificatório”, o que significa que, por exemplo, um curso que tem 50 vagas para calouros, aprova os primeiros 50 classificados, independente da nota que tiraram. Então, o sujeito pensa: e se meu colega for o número 50 e eu for o 51? Tá aí o pomo da discórdia. O companheiro vira concorrente. E isso parece valer para tudo, empregos inclusive. Então, vivemos num mundo de competição e não de colaboração e companheirismo. Em vez de soma, divisão.

E surgem defensores da tal “meritocracia”, por pessoas que se julgam com mais méritos que as outras. Torna-se comum a indiferença com a miséria alheia, com sofrimentos alheios…

Como tenho feito sobre outros temas, coletei alguns pensamentos sobre este. O que disseram sobre utopia, sonhos utópicos?

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Anatole France: “Sim, o sonho! Sim, a quimera! Sim, a ilusão! Sem os sonhos, sem as quimeras, sem as ilusões a vida não tem sentido e não oferece interesse. A utopia é o princípio de todo o progresso. Sem as utopias de outrora, os homens viveriam miseráveis e nus nas cavernas. Foram os utopistas que traçaram as linhas da primeira cidade… Dos sonhos generosos nascem as realidades benéficas”.

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Anatole France, de novo: “A utopia é o princípio de todo progresso e o direito de um porvir melhor”.

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Agostinho da Silva: “De uma maneira geral, todas as ideias que visam o futuro são utópicas, ainda não estão realizadas em parte alguma, por isso são tanto mais ativas quanto menos realizadas são”.

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Alphonse de Lamartine: “As utopias são, muitas vezes, verdades prematuras”.

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Oscar Wilde: “O progresso não é senão a realização de utopias”.

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Millôr Fernandes: “A maior utopia é a resistência diária”.

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Eugênia Thereza de Andrade (diretora de teatro, comentando a peça “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes, que ela dirigiu): “A utopia não é uma moda, ela não passa. Ela é o desejo do homem de ter e dar afeto”.

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Oscar Niemeyer: “A humanidade precisa de sonhos para suportar a miséria; nem que seja por um instante”.

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Niemeyer, de novo: “A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem”.

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Victor Hugo: “Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã”.

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Marcela Serrano: “Sem uma dimensão utópica, o efêmero rodeia-me, apanha-me e diz-me que a vida é apenas isso: o que vejo e toco. Nada mais. A utopia ainda é possível?”.

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Mário Quintana: “Se as coisas são inatingíveis… Ora! / Não é motivo para não querê-las… / Que tristes os caminhos, se não fora / A presença das estrelas”.

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Helen Keller: “Literatura é minha utopia. Não há barreira que possa tirar esse prazer. Os livros falam comigo em impedimentos de qualquer tipo”.

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Nietzsche: “O filósofo é o homem de amanhã, aquele que recusa o ideal do dia, aquele que cultiva a utopia”.

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Nietzsche, de novo: “É preciso seguir sonhando para não sucumbir”

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Caio Fernando Abreu: “Porque no fundo eu sei que a realidade que eu sonhava afundou num copo de cachaça e virou utopia”.

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Gabriel García Márquez: “Eu acredito que ainda não é tarde demais para construir uma utopia que nos permita compartilhar a terra”

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Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Neste interregno, um monte de sintomas mórbidos aparecem”.

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Glauber Rocha: “O cinema novo ficou com a utopia brasileira. Se ela é feia, irregular, suja, confusa, caótica, é também bonita, desarmônica, iluminante, revolucionária”.

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Paulo Freire: “Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo utiliza toda possibilidade que tenha para não falar da minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes”.

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Afonso Duarte de Barros: “O homem que não sonha embrutece ainda mais o mundo”.

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Maria Lacerda de Moura: “A resposta ao despeito, ao fanatismo, ao sectarismo, às injúrias, às calúnias, será continuar a pensar e a viver nobremente a coragem excepcional de dizer, bem al, o que penso, o que sinto, o que sonho”.

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Simone de Beauvoir: “Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância”.

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Machado de Assis: “Os sonhos antigos foram aposentados e os modernos moram no cérebro da pessoa”.

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Olavo Bilac: “O que realizamos nunca é tão belo como o que sonhamos”.

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Jean-Paul Sartre: “Como todos os sonhadores, confundi o desencanto com a verdade”.

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Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
***
Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar(2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária(1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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