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domingo, 29 de janeiro de 2017

100 anos da Revolução de Outubro





A Revolução de Outubro, cujo centenário será comemorado em alguns meses, pode ser analisada pelo que produziu concretamente e também pelo que simboliza.

A tomada do poder pelos bolcheviques abriu espaço para um momento extraordinário de efervescência cultural e de experimentação de novas e melhores relações sociais. Não apenas no que se refere às relações de produção e à posição social dos trabalhadores, como se pensaria a partir da ideia estereotipada de que "marxistas só olham para classe". Houve um intenso debate sobre a maneira efetiva de promover a emancipação feminina, socializando as tarefas domésticas e minimizando o papel social da família. O aborto foi legalizado e o divórcio, facilitado ao extremo, a partir da compreensão de que as relações deviam ser mantidas apenas pela vontade livre dos participantes. As relações homoafetivas foram descriminalizadas.

Ninguém está à frente do próprio tempo, mas os bolcheviques se encontravam na vanguarda de sua época no que se refere aos múltiplos eixos da luta pela emancipação humana. Em outro momento histórico, com as limitações decorrentes, a agenda de gênero dos revolucionários russos incluía muito daquilo pelo qual continuamos lutando cem anos depois.

Muito do que foi pensado não foi posto em prática, em grande medida pelas circunstâncias dramáticas do cerco à revolução e pelo atraso gigantesco da Rússia. A guerra civil também estimulou tendências autoritárias que já estavam presentes no próprio bolchevismo. A crença, que se revelou profundamente equivocada, no rápido desaparecimento do Estado, levou ao desinteresse pela produção de mecanismos de controle da autoridade. Com Stálin, o exercício do poder se tornou plenamente discricionário.

Ainda que a propriedade dos meios de produção tenha sido socializada, permaneceu a desigualdade quanto ao controle destes meios e também quanto aos padrões de consumo. Lembro de um trecho, acho que n'A revolução traída, em que Trótski extrai esta conclusão a partir da informação de que estava sendo construída uma fábrica de margarina na União Soviética: a revolução estava dando origem a uma sociedade segmentada entre aqueles que comeriam manteiga e aqueles que teriam que se contentar com margarina! (Eu, que odeio margarina com todas as forças do meu ser, entendo perfeitamente o que Trótski estava dizendo.)

A deriva autoritária do stalinismo permitiu que, após a Segunda Guerra Mundial, prosperasse a categoria do "totalitarismo", para a qual contribuíram desde filósofas brilhantes como Hannah Arendt até ideólogos vulgares como Zbigniew Brzezinski. A noção de totalitarismo permitia que se recusasse o entendimento de que o fascismo e os regimes liberais eram formas alternativas de dominação burguesa em favor de uma nova linha divisória, segundo a qual a União Soviética e a Alemanha hitlerista ficariam de um mesmo lado, o lado oposto às "democracias liberais". A partir daí, de Raymond Aron a François Furet, muitos vão tentar afirmar que a simpatia pelo comunismo, que cativou as melhores mentes de várias gerações, seria equivalente à adesão ao fascismo. Nada mais longe da realidade. A despeito dos múltiplos problemas da União Soviética, o sonho comunista sempre foi o de uma sociedade igualitária, livre e solidária, o oposto do culto à violência, do racismo e da exaltação da hierarquia, próprios dos fascismos.

A herança do stalinismo inclui a burocratização, o autoritarismo e também a perda da imaginação revolucionária. A União Soviética passou a ter como objetivo vencer o Ocidente de acordo com os critérios capitalistas da sociedade de consumo - a "ultrapassagem", para usar o termo de Nikita Kruschev, seria a comprovação da superioridade do socialismo. Mas a lógica da obsolescência, do desperdício e da ostentação serve ao capitalismo, não a uma ordem social que busque superá-lo. A intensificação da corrida armamentista, que levava esta lógica ao paroxismo, desempenhou papel relevante para que os Estados Unidos vencessem a Guerra Fria.

A sina da União Soviética serviu, enfim, como demonstração absoluta da superioridade do "mercado" e do absurdo do planejamento econômico. Para matizar tal veredito, convém lembrar que, em 1917, a Rússia era um país mais atrasado do que o Brasil. Passados 40 anos, os soviéticos estavam colocando na órbita da Terra o primeiro satélite artificial, enquanto nós continuávamos lutando contra a esquistossomose, brincando com ioiôs de plástico trazidos dos Estados Unidos e dependendo das exportações de café e cacau.

A história da Revolução Russa não deve nos mostrar que a transformação do mundo social é impossível ou fadada ao fracasso. Mostra, isso sim, que ela é árdua, que atalhos ou ilusões cobram um alto preço. Mas que vale a pena lutar por ela, mesmo com todas as dificuldades.

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