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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Mobilizar e unir

Gente, ontem na assembleia para definir as diretrizes da greve, os caciques do sindicato junto com os associados, ficou acordado para acontecer a partir de março. Cabe lembrar que existia uma grande vontade de iniciar essa greve já. Mas será que teríamos um número bom de docentes para tal desejo? Refleti sobre as propostas apresentas pelo sindicado, e percebi que é a mais coerente. Não adianta no calor da manifestação buscar a radicalização, pois para vencer essa luta necessitamos de diálogo e unificação. É sabido que uma grande parte dos docentes tem uma certa inércia política, e isso tem nos prejudicado para derrotar essa política perversa do Alckmin. Portanto, precisamos nos mobilizar e nos organizar para que a base tenha voz nas decisões e rumo da luta.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Todos à la place. Por quê?

A adesão imediata à manifestação de Paris mostra como é fácil hoje manipular uma opinião pública tolhida para o exercício do espírito crítico

por Mino Carta 


Perguntaria Hamlet: “Ser ou não ser?” Charlie, está claro. A personagem de Shakespeare é o paradigma da dúvida atormentada pela invulnerabilidade do efêmero. Surpreende, porém, e até espanta, a rapidez com que a larga maioria fez sua escolha. Por quê? A que se deve o imediatismo da resposta? Agir às pressas, de impulso, precipita amiúde equívocos, enganos, erros. Não seria o caso de parar para pensar?

Pois é, pensar. Explorar a faculdade que o ser humano tem de constatar sua pessoal existência. O mundo vive uma quadra de enormes incertezas e de graves conflitos, e a situação se apinha de inúmeros por quês. Por que aqui estamos a padecer uma crise econômica que poupa somente banqueiros e especuladores, aliás, a eles aproveita acintosamente? Por que o rentismo grassa enquanto o desemprego aumenta? Por que o desequilíbrio social se aprofunda em todos os cantos? Por que uma centena de multinacionais impõe sua vontade a Estados soberanos? Por que a senhora Merkel e seus banqueiros ditam as regras à inteira Comunidade Europeia e decretam a austeridade em lugar do desenvolvimento? Por que o atual presidente da UE é o ex-premier do Luxemburgo, o aprazível paraíso fiscal?

Interrogações sem conta, propostas pela circunstância. Pode-se, se quisermos, perguntar aos nossos botões por que o mundo carece hoje de poetas, ou por que pagam-se dezenas de milhões de dólares por um tubarão morto mergulhado em uma caixa de vidro cheia de formol, ou por que navegantes da internet divulgam aos quatro ventos o cardápio do seu jantar da noite anterior. Ou por que, de súbito, a humanidade concentra-se na Place de la République, de corpo presente ou em espírito, para manifestar contra o terrorismo.

O espetáculo parisiense assinala, ao mesmo tempo, o triunfo do modismo e da hipocrisia. Fácil identificar o lado de cada qual, a ser clara a desfaçatez das autoridades. Em boa parte, tem responsabilidades em relação ao terrorismo, quando não são seus instigadores, cúmplices, ou até mesmo praticantes, competentes ou não. Conseguiram o que queriam, admitamos. Juntaram o Ocidente em uma praça parisiense para ostentar os seus poderes e cuidar dos seus interesses políticos, sem exclusão de golpes baixos, ações de guerra, assaltos aos cofres públicos e terrorismo de Estado, sem contar as violações dos Direitos Humanos.

Diante deles, incitada pelas frases feitas da propaganda midiática, súcuba dos apelos da retórica globalizada, a grei automatizada. Incapaz de entender se, de pura e sacrossanta verdade, o massacre na redação do Charlie Hebdo configura um ataque sem precedentes à liberdade de imprensa, ou de expressão. Ou à liberdade na acepção total, sem qualificativos.

Resta entender o significado e o alcance das palavras. Sabemos, em primeiro lugar, ou pretendemos saber, que a liberdade de cada um acaba na liberdade do semelhante. Nem todos se dão conta disso. De qualquer forma, a liberdade proclamada pela Revolução Francesa acaba por ser de poucos se não for completada pela igualdade. Livre é realmente uma sociedade de iguais. Se há canto da Terra onde esta simbiose acontece, louvado seja quem fez o milagre. Nem se fale do Brasil, o país de casa-grande e senzala.

Outra questão diz respeito à liberdade de imprensa, que na mídia nativa conta com paladinos aguerridos. A liberdade que defendem é a de fazer o que bem entendem. Não é assim em outros países democráticos e civilizados, onde a mídia é devidamente regulamentada, para impedir, entre outros objetivos, o monopólio e o oligopólio. Na França, é certo, o Charlie Hebdo podia circular à vontade, a despeito dos seus discutíveis propósitos e de certo autoritarismo a vingar na redação. O cartunista Siné, célebre desde o fim dos anos 50, foi despedido porque suas charges não tinham a desejada agressividade e evitavam certos assuntos.

A virulência antimuçulmana, no Charlie Hebdo, não é inferior àquela dirigida contra as religiões monoteístas de cristãos e judeus. Tempos atrás, uma charge mostrava, da forma mais crua, o encontro (seria um rendez-vous?) entre a Virgem Maria e um centurião romano, com o resultado de trazer à vida quem mais, se não Jesus Cristo. Ocorre a lembrança de um Pif-Paf, a seção entregue pelo O Cruzeiro dos Diários Associados a Millôr Fernandes, por mais de duas décadas. O humorista estava disposto a contar a história fracassada de Adão e Eva no Paraíso Terrestre. Jocosa e sem vulgaridade, no traço steinberguiano de Millôr.

ACNBB protestou oficialmente, e Millôr foi despedido com a habitual pusilanimidade. Não houve manifestação na Cinelândia carioca.

Não convém ao Ocidente aceitar a ideia de que a tragédia decorre de uma ação de guerra levada a cabo por um comando bem treinado, mas é assim que pensam os fanáticos arregimentados pela Jihad. Se uma bomba um dia desses explodir, digamos, no Grand Palais, não podemos alegar o atentado contra a liberdade de expressão, como não o foi o ataque às Torres Gêmeas. O objetivo do terrorismo, de resto, é solapar a capacidade de resistência do inimigo designado, de certa maneira é semear o pânico com a humilhação do alvejado.

Não se trata, de todo modo, de buscar explicações, e sim de entender que a liberdade de expressão tem necessariamente limites, bem como a intenção de provocar, desbragada na publicação satírica. O que talvez esclareça quanto ao seu escasso êxito junto ao público francês. Nesta semana, o Charlie Hebdo saltou de uma tiragem de algumas dezenas de milhares de cópias para milhões. Também este é fruto do modismo, a contar, para a manipulação da opinião pública, com instrumentos cada vez mais capilares e eficazes. Vezos e tendências momentâneos assumem a ribalta e tomam conta da plateia de forma avassaladora. Até levá-la, se for o caso, à Place de la République.

É provável que na multidão também figurassem muitos cidadãos franceses de origem árabe, ou africana, e de religião muçulmana, impelidos pela repulsa ao terrorismo, conquanto ofendidos pela charge que visava o Profeta. Que fazer com 6 milhões de muçulmanos franceses donos de todos os direitos de cidadania? Expulsá-los em bloco? Não faltarão aqueles que aprovariam a solução com entusiasmo. Caso se trate de torcedores do futebol, a xenofobia os teria levado a não considerar o triste destino da seleção francesa, privada de muitos entre seus melhores craques.

Deste ponto de vista, o Brasil é um país resolvido, embora não isento do preconceito racial e social. Por aqui pobres e pretos vivem sob suspeita. Manda, porém, o jus soli, pelo qual somos todos brasileiros. Na França, e em toda a Europa, meta de forte migração de áreas subdesenvolvidas, a questão suscita ásperas polêmicas, mesmo porque em muitos países a tradição soletra ojus sanguinis. O sangue determina a cidadania. Eventos como o massacre que abalou o mundo vão excitar o ódio racial na França, na Europa, e alhures, em benefício da direita mais reacionária.

Quem leva vantagem? Na França, Marine Le Pen, que se fortalece como candidata à Presidência da República. Na Itália, crescerá a Lega. Na Alemanha, o Pegida, grupo ultradireitista. Rajoy, na Espanha, reforça seu poder. De todos os líderes, Netanyahu é aquele que, ao carregar sua campanha eleitoral até Paris, exibe com maior clareza seus propósitos. E a orquestração bem trabalhada acaba por acentuar as incompatibilidades, os contrastes, as divergências, os conflitos. A violência e o desvario em geral.

Neste caldo de cultura germinam, como no magma primevo a se esfriar teria nascido a vida do planeta, o fanatismo assassino, a criminalidade nas suas distintas fisionomias. Isto é do conhecimento até do mundo mineral, mas não de todos os homens. Fatos como a chacina parisiense repetem-se à toda hora, provocados pelo fanatismo, pela revolta, pela insanidade, pela desgraça. E pelo terror de Estado. Não cabe justificar o horror. Recomenda-se, entretanto, aquilatar envolvimentos e responsabilidades. E anotar que inomináveis delitos cometidos pelos senhores do mundo ocidental não costumam merecer a repulsa das praças lotadas.

Para evocar fatos próximos, é da incompetência impafiosa da diplomacia norte-americana que eclode a Guerra do Iraque, ou brota a maior ameaça terrorista representada pelo Estado Islâmico. Tal é a inexorável verdade factual. Há culpas em cartório, contribuições transparentes ao descalabro dos dias de hoje, às quais a maioria se presta de pronto porque tolhida fatalmente ao exercício da razão.

O alpiste servido aos incautos, aos desmemoriados, aos crédulos, aos ignorantes, é a versão dos cavalheiros tão bem representados na praça parisiense. Aproveitam-se da eficácia dos instrumentos chamados a entorpecer as consciências e demolir o mais pálido resquício de espírito crítico.

Talvez estejamos no limiar de uma nova Idade Média, contradição apenas aparente do dito progresso tecnológico. Se o homem dispõe de computador e celular de infinitas funções, e vive bem mais do que as gerações precedentes, nem por isso ganha em sabedoria, pelo contrário. O respeito à memória, base de todo conhecimento, dispersa-se na moda contingente. Nesta moldura, o livro tende a se tornar objeto obsoleto. Na mesmice globalizada instalam-se, disfarçados pela banalidade, a ignorância, a indiferença. E os desbordantes porquês não logram resposta.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Boaventura: a Europa à beira do estado de sítio

POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS





A liberdade de expressão e seus limites — inclusive no “Charlie Hebdo”… “Valores ocidentais” ou hipocrisia? EUA alimentam o fundamentalismo islâmico. As vidas festejadas e as vidas esquecidas


O crime hediondo que foi cometido contra os jornalistas e cartunistas do Charlie Hebdotorna muito difícil uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. No entanto, esta análise é urgente, sob pena de continuarmos a atear um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas, as nossas instituições e as nossas consciências. Eis algumas das pistas para tal análise.

A luta contra o terrorismo, tortura e democracia. Não se podem estabelecer ligações diretas entre a tragédia do Charlie Hebdo e a luta contra o terrorismo que os EUA e seus aliados travam desde o 11 de setembro de 2001. Mas é sabido que a extrema agressividade do Ocidente tem causado a morte de muitos milhares de civis inocentes (quase todos muçulmanos) e tem sujeitado a níveis de tortura de uma violência inacreditável jovens muçulmanos contra os quais as suspeitas são meramente especulativas, como consta do recente relatório apresentado ao Congresso norte-americano. E também é sabido que muitos jovens islâmicos radicais declaram que a sua radicalização nasceu da revolta contra tanta violência impune.

Perante isto, devemos refletir se o caminho para travar a espiral de violência é continuar seguindo as mesmas políticas que a têm alimentado, como é agora demasiado patente. A resposta francesa ao ataque mostra que a normalidade constitucional democrática está suspensa e que um estado de sítio não declarado está em vigor, que os criminosos deste tipo, em vez de presos e julgados, devem ser abatidos, que este fato não representa aparentemente nenhuma contradição com os valores ocidentais. Entramos num clima de guerra civil de baixa intensidade. Quem ganha com ela na Europa? Certamente não o partido Podemos, na Espanha, ou o Syriza, na Grécia.

A liberdade de expressão. É um bem precioso mas tem limites, e a verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles que defendem a liberdade sem limites sempre que é a “sua” liberdade a sofrê-los. Exemplos de limites são imensos: se na Inglaterra um manifestante disser que David Cameron tem sangue nas mãos, pode ser preso; na França, as mulheres islâmicas não podem usar o hijab; em 2008 o cartunista Maurice Siné foi despedido do Charlie Hebdo por ter escrito uma crônica alegadamente antissemita. Isto significa que os limites existem, mas são diferentes para diferentes grupos de interesse. Por exemplo, na América Latina, os grandes meios de comunicação, controlados por famílias oligárquicas e pelo grande capital, são os que mais clamam pela liberdade de expressão sem limites para insultar os governos progressistas e ocultar tudo o que de bom estes governos têm feito pelo bem-estar dos mais pobres.

Aparentemente, o Charlie Hebdo não reconhecia limites para insultar os muçulmanos, mesmo que muitos dos cartuns fossem propaganda racista e alimentassem a onda islamofóbica e anti-imigrante que avassala a França e a Europa em geral. Para além de muitos cartuns com o Profeta em poses pornográficas, um deles, bem aproveitado pela extrema-direita, mostrava um conjunto de mulheres muçulmanas grávidas, apresentadas como escravas sexuais do Boko Haram, que, apontando para a barriga, pediam que não lhes fosse retirado o apoio social à gravidez. De um golpe, estigmatizava-se o Islã, as mulheres e o estado de bem-estar social. Obviamente, que, ao longo dos anos, a maior comunidade islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial, mas foi igualmente imediato o seu repúdio por este crime bárbaro. Devemos, pois, refletir sobre as contradições e assimetrias na vida vivida dos valores que alguns creem ser universais.

A tolerância e os “valores ocidentais”. O contexto em que o crime ocorreu é dominado por duas correntes de opinião, nenhuma delas favorável à construção de uma Europa inclusiva e intercultural. A mais radical é frontalmente islamofóbica e anti-imigrante. É a linha dura da extrema direita em toda a Europa e da direita, sempre que se vê ameaçada por eleições próximas (o caso de Antonis Samara na Grécia). Para esta corrente, os inimigos da civilização europeia estão entre “nós”, odeiam-nos, têm os nossos passaportes, e a situação só se resolve vendo-nos nós livres deles. A pulsão anti-imigrante é evidente. A outra corrente é a da tolerância. Estas populações são muito distintas de nós, são um fardo, mas temos de as “aguentar”, até porque nos são uteis; no entanto, só o devemos fazer se elas forem moderadas e assimilarem os nossos valores. Mas o que são os “valores ocidentais”?

Depois de muitos séculos de atrocidades cometidas em nome destes valores dentro e fora da Europa — da violência colonial às duas guerras mundiais — exige-se algum cuidado e muita reflexão sobre o que são esses valores e por que razão, consoante os contextos, ora se afirmam uns, ora se afirmam outros. Por exemplo, ninguém põe hoje em causa o valor da liberdade, mas já o mesmo não se pode dizer dos valores da igualdade e da fraternidade. Ora, foram estes dois valores que fundaram o Estado social de bem-estar que dominou a Europa democrática depois de segunda guerra mundial. No entanto, nos últimos anos, a proteção social, que garantia níveis mais altos de integração social, começou a ser posta em causa pelos políticos conservadores e é hoje concebida como um luxo inacessível para os partidos do chamado “arco da governabilidade”. A crise social causada pela erosão da proteção social e pelo aumento do desemprego, sobretudo entre jovens, não será lenha para a fogueira do radicalismo por parte dos jovens que, além do desemprego, sofrem a discriminação étnico-religiosa?

O choque de fanatismos, não de civilizações. Não estamos perante um choque de civilizações, até porque a cristã tem as mesmas raízes que a islâmica. Estamos perante um choque de fanatismos, mesmo que alguns deles não apareçam como tal por nos serem mais próximos. A história mostra como muitos dos fanatismos e seus choques estiveram relacionados com interesses econômicos e políticos que, aliás, nunca beneficiaram os que mais sofreram com tais fanatismos. Na Europa e suas áreas de influência é o caso das cruzadas, da Inquisição, da evangelização das populações coloniais, das guerras religiosas e da Irlanda do Norte. Fora da Europa, uma religião tão pacífica como o budismo legitimou o massacre de muitos milhares de membros da minoria tamil do Sri Lanka; do mesmo modo, os fundamentalistas hindus massacraram as populações muçulmanas de Gujarat em 2003 e o eventual maior acesso ao poder que terão conquistado recentemente com a vitória do Presidente Modi faz prever o pior; é também em nome da religião que Israel continua a impune limpeza étnica da Palestina e que o chamado califado massacra populações muçulmanas na Síria e no Iraque.

A defesa da laicidade sem limites numa Europa intercultural, onde muitas populações não se reconhecem em tal valor, será afinal uma forma de extremismo? Os diferentes extremismos opõem-se ou articulam-se? Quais as relações entre os jihadistas e os serviços secretos ocidentais? Por que é que os jihadistas do Emirato Islâmico, que são agora terroristas, eram combatentes de liberdade quando lutavam contra Kadhafi e contra Assad? Como se explica que o Emirato Islâmico seja financiado pela Arábia Saudita, Qatar, Kuwait e Turquia, todos aliados do Ocidente? Uma coisa é certa: pelo menos na última década, a esmagadora maioria das vítimas de todos os fanatismos (incluindo o islâmico) são populações muçulmanas não fanáticas.

O valor da vida. A repulsa total e incondicional que os europeus sentem perante estas mortes devem-nos fazer pensar por que razão não sentem a mesma repulsa perante um número igual ou muito superior de mortes inocentes em resultado de conflitos que, no fundo, talvez tenham algo a ver com a tragédia do Charlie Hebdo? No mesmo dia, 37 jovens foram mortos no Yemen num atentado a bomba. No ano passado, a invasão israelense causou a morte de 2000 palestinos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na reação não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões ou regiões. Será então porque estes últimos estão mais longe dos europeus ou são pior conhecidos por eles? Mas o mandato cristão de amar o próximo permite tais distinções? Será porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?

Exclusivo: Fernando Haddad fala sobre Marta, Chalita, a lógica do MPL e o caipirismo do PSDB

por : Kiko Nogueira




O prefeito de São Paulo Fernando Haddad recebeu o DCM para uma entrevista em seu gabinete no antigo Edifício Matarazzo, no Viaduto do Chá.

Sem gravata, terno preto com camisa branca, o inconfundível cabelo dividido ao meio, Haddad falou sob o impacto de um novo protesto do Movimento Passe Livre, ocorrido no dia anterior. Para ele, o MPL prefere o “tudo ou nada” a uma negocição gradual. Haddad fez um balanço de seus dois anos de governo, falou do polêmico convite feito a Gabriel Chalita (PMDB) para a secretaria de educação e de seu relacionamento com Marta Suplicy, sua possível adversária em 2016.

A seguir, os principais trechos da conversa.

A nomeação de Gabriel Chalita 

Acho que as pessoas se surpreendem com o convite por não prestarem atenção aos desdobramentos e aos eventos históricos. Minha relação com o Chalita começou antes de eu ser ministro. Participamos da reforma educacional do governo federal.

Naquele momento, o PSDB se comportava de forma suprapartidária. Os projetos eram considerados de estado, não de governo. O Chalita teve um papel fundamental como mediador de conflitos com o pensamento conservador em proveito de uma agenda mais avançada.

Na campanha para a prefeitura em 2012, aquele que perdeu apoiou quem ganhou. Foi visto como natural pela população que o Chalita me apoiasse — ou vice-versa, se ele tivesse passado para o segundo turno. Isso me deu a vitória. É uma relação de dez anos. Já era boa quando ele estava no PSDB. Valorizo nele essa capacidade de interlocução.

Não foi indicação do Lula. Aliás, aconteceu o contrário… Chalita e eu comunicamos ao Temer e ao Lula esse desejo. Em se tratando de uma aproximação desta natureza, eu achei de bom tom que o ex-presidente ficasse ciente e opinasse. Os dois saudaram a aproximação, que foi vista como um ganho para a educação.

Marta Suplicy

Minha primeira função pública foi na gestão da Marta. Adorei ter participado da experiência. Nos dois primeiros anos fui testemunha do esforço que foi feito para valorizar a educação. Participei da equipe que fez os CEUs. Sempre nos demos muito bem.

Sempre foi uma relação muito respeitosa — até aqui, pelo menos. Gosto muito das pessoas envolvidas nessa história [a ruptura de Marta com o PT] para dar uma opinião sobre a atitude dela.

Os protestos do Movimento Passe Livre 

Os prefeitos todos do Brasil estamos na mesma situação. Todos querem ampliar a gratuidade da tarifa. Sou o primeiro a reconhecer a questão do transporte.

Mas, em março de 2013, portanto 70 dias antes do primeiro protesto daquele ano, defendi a municipalização da Cide, tributo que incide sobre a gasolina. Foi na Folha. Falei que a Cide [sigla para Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico] deveria ser municipalizada para dar aos prefeitos a condição de adotar uma política mais agressiva de modicidade tarifária.

Imaginava naquele momento que aquilo fosse ensejar um debate sobre tarifa. Não vou transferir recursos de saúde e educação.

Para minha surpresa, quando o MPL esteve com a presidenta Dilma, entregou uma carta defendendo a minha tese de março. Infelizmente, parece ter abandonado essa bandeira. Daria para os prefeitos do Brasil uma perspectiva de, sem prejudicar saúde, educação, poder criar um mecanismo para mexer na tarifa.

É possível ampliar os direitos gradualmente. Sem radicalizar. Mas a tática deles é claramente binária: ou levo tudo ou não levo nada. Ou você me dá 100% do que estou pedindo ou você é meu inimigo.

O prefeito é o elo fraco da federação. Houve uma reconcentração de recursos públicos na esfera da União que começou no governo Fernando Henrique. Tem havido um esforço para mudar.

O custo do transporte é de 6 bilhões de reais por ano. Imaginar que você possa abrir mão desse recurso de uma hora para outra é complicado.

Quem vai remover as ciclovias?

A mudança de paradigma veio para ficar. Uma vez que a malha viária é a mesma e a ideia de túneis e viadutos se provou um fracasso do ponto de vista urbanístico, qual é a alternativa para a mobilidade? O conceito está estabelecido mundialmente: transporte público, ciclovias, respeito ao pedestre. De um ponto de vista da transversalidade: como isso dialoga com saúde pública, com causas ambientais e com causas sociais. Uma agenda transversal.

Li um estudo recente sobre a saúde dos ciclistas amadores, impressionantemente melhor que a dos sedentários. A saúde do usuário de transporte público também é melhor que a do cara que usa só o carro. Você precisa caminhar até a estação de metrô ou o ponto.

Se os 400 quilômetros de ciclofaixas estiverem prontos até o final deste ano (ele entregou 170 por enquanto), multiplica por 1 metro e meio, a largura de uma ciclovia, e estamos falando de 600 mil metros quadrados — 40% do parque Ibirapuera. Ou seja, você está tirando muito pouco para o impacto todo que estamos tendo.

Ninguém vai ousar remover essas ciclovias. Faixas de ônibus são a mesma coisa. No ano passado, parecia que o mundo ia acabar. Fui acusado de falta de planejamento, falta de tudo…

O trânsito aumentou de 2011 para 2012 14,8%; de 2012 para 2013, 7,8%; de 2013 para 2014, 2,8%, segundo a CET. A cidade se acomoda de outra maneira. Obviamente que o preconceito, o dogmatismo, a intolerância falam alto. Fica mais fácil esbravejar nas rádios do que fazer a conta do que realmente acontece de bom.

Um professor de esquerda

A maioria da população apoia as iniciativas e quem fala nos meios de comunicação não são as pessoas para as quais essas políticas são forjadas. O cara que só critica não dialoga com o mundo moderno, com a contemporaneidade.

O jogo eleitoral é muito pesado. Eu não sou nada além de um professor de esquerda. Um professor de esquerda, filho de imigrantes, chegar a ministro da educação e a prefeito de São Paulo é difícil de engolir para muitas pessoas. É difícil assimilar. Quando você faz algo que eles poderiam ter feito e nunca fizeram, fica um ressentimento. “Como você ousou fazer uma obviedade dessas?” Tem uma coisa psicanalítica nisso, que transcende a política.

Convivência

O Brasil tem um resquício escravocrata. É um país de presente escravocrata. Agora nós democratizamos as oportunidades. Não havia democratização das oportunidades. Isso mudou, o que significa que brancos terão que conviver cada vez mais com negros, ricos com pobres etc, como aliás acontece na Europa, nos Estados Unidos etc. Algumas pessoas vêem isso como ameaça. Ameaça, na verdade, é uma sociedade desigual como a nossa. O que ameaça o mundo desenvolvido é a desigualdade. Isso põe em risco a democracia. O risco à democracia não é só cultural e ideológico. É material. Isso é o que nós não queremos admitir.

Viva o centro 

É crescente o número de lançamentos no centro. E ele ainda vai crescer. Mais construtoras vão se interessar pela região. A reforma que nós vamos fazer no Anhangabaú vai dar uma cara boa pro centro.

Acho que iniciativas como a ciclovia do Minhocão, as praias urbanas, a desfavelização do Largo de São Francisco… tudo isso está mudando o lugar. Praticamente não havia praças sem barraco. Fizemos uma limpeza sem expulsar ninguém. Sem higienizar. Estamos fazendo coleta de lixo aos domingos. Eu tinha uma ideia de que o centro não tinha gente nesse dia. Pois nós tiramos 100 toneladas de lixo aos domingos.

Rolezinho

Tenho o hábito de passear no centro aos domingos. Vou com o motorista. Eu vou trabalhar às vezes de ônibus, de metrô ou de bicicleta. Gostaria de ir mais, só que o ajudante de ordens não deixa… Eu falo “não precisa ninguém me acompanhando”. “Mas se ninguém te acompanhar vai ficar ruim pra nós”, eles dizem.

Estamos pensando em fazer visitas guiadas de bicicleta para as pessoas terem uma primeira experiência estética com o grafite. Pode ser uma porta de entrada para a arte para essas pessoas. Vai ser a primeira galeria de arte de rua com visita guiada no mundo.

O humor do paulistano e o caipirismo do PSDB

São Paulo é uma montanha russa de humor. Tudo influencia tudo. Uma volubilidade muito grande. Por isso, se você tem um projeto para a cidade, execute e se dê por satisfeito.

Por exemplo, eu aprovei um Plano Diretor que é considerado pela ONU um dos mais avançados do mundo. Aprovamos a renegociação da dívida com a União que vai trazer uma redução do estoque de 26 bilhões de reais. São êxitos poucos podem dizer que vão alcançar.

São Paulo tem condições de reassumir o protagonismo no Brasil, condição que perdeu nos últimos 20 anos. Não existe cidade do mundo do tamanho de São Paulo que não interaja com o governo central. Essa crítica do excesso de dependência do governo federal é mais uma amostra do caipirismo que tomou conta do PSDB. O PSDB era um partido antenado com o que acontece no mundo. Hoje é o partido mais caipira do Brasil. Ou melhor, provinciano — porque eu gosto dos caipiras. Lamentável que o PSDB tenha chegado aonde chegou.

O PSDB e a judicialização da política 

Eu esperava muitas coisas quando candidato. O que não estava no meu horizonte é a judicialização da política. O PSDB entra na Justiça por qualquer coisa. Costumo dizer que o ditado “a justiça tarda, mas não falha”, no caso da política, está errado: a justiça tarda e falha. Política é tempo.

A outra surpresa como prefeito é a postura do MPL. Não esperava isso, sobretudo de pessoas que têm uma bagagem para entender o que é a intolerância. A intolerância não é de esquerda. É um fundamentalismo que eu lamento. O Charlie Hebdo é vítima do infeliz crescimento dessa intolerância que cresce no mundo. Nós devemos cerrar fileira com aqueles que são comprometidos com as causas libertárias.