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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

gênero e sexualidade

se por muito tempo, em diversos lugares do mundo, certas práticas sexuais foram consideradas como desviantes, criminosas ou patológicas. hoje, essa percepção mudou; a sexualidade humana passa a ser vista como uma possibilidade legítima de cada um, independente do sexo biológico que nascemos; a identidade de gênero é uma expressão da liberdade individual, mas a violência e a intolerância contra a diversidade sexual continuam presentes nos nossos dias. é uma questão de ordem pública e uma polêmica política.


terça-feira, 8 de novembro de 2016

o que querem as mulheres?




confira ainda a versão completa da palestra da insubmissão feminista na atualidade realizada no café filosófico cpfl, clicando aqui.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ocupar e resistir: entre o político e o pedagógico nas escolas ocupadas

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“As mãos de vocês estão sujas de sangue.”

Discurso de Ana Julia Ribeiro, estudante da escola ocupada Senador Manuel Alencar Guimarães, na Assembleia Legistativa do Paraná, referindo-se aos deputados estaduais. (Assista aqui)



As ocupas pelo mundo

No último dia de ditadura, em 10 de março de 1990, Pinochet promulgou, entre outras, a Lei Orgânica Constitucional da Educação, que privatizou a educação chilena, restando ao Estado apenas o financiamento desta, não controlando sequer os fundos que repassa. Assim, além de possuir escolas públicas próprias, o governo também subvenciona o estudo de crianças e de jovens de menor renda em escolas privadas, as chamadas escolas charters. Além disso, as universidades públicas também são pagas, de modo que os alunos formam-se com uma dívida que marca o início da vida profissional. Como resposta a esse processo de estratificação e mercantilização da educação, o Chile vivenciou sucessivas ondas de manifestações estudantis com estopins em 2006 e 2011, com grandes marchas e ocupações de escolas, num amplo movimento de luta pela gratuidade da educação, sendo aquela a primeira explosão estudantil pós-ditadura, e batizada de “Revolta dos Pinguins”, devido ao típico uniforme escolar chileno.

A rebeldia das classes populares, que teve no Chile um marco na luta pela educação, toma corpo com a crise de 2008, visto que esta explicitou não apenas a virulência do sistema financeiro, como também abre um novo campo de luta social, questão que o neoliberalismo, crescente na década de 1990 em diante, tentou sepultar. Em 2011, a rebelião voltou à ordem do dia! Esses movimentos sociais de protesto – com reivindicações próprias de cada região – “[c]omeçou no norte da África, derrubando ditaduras na Tunísia, no Egito e no Iêmen; estendeu-se à Europa, com ocupações e greves na Espanha e Grécia e revolta nos subúrbios de Londres; eclodiu no Chile e ocupou Wall Street, nos EUA, alcançando no final do ano até mesmo a Rússia” (CARNEIRO, 2012, p. 7). Em 2013, eclode no Brasil as Jornadas de Junho, que tem na luta pelo transporte público sua bandeira central.

O movimento de ocupação do espaço público tem sido crescentemente reconhecido como estratégia de mobilização dos subalternos a fim de manifestarem seu descontentamento diante da precarização e mercantilização da vida. Há características comuns entre esses movimentos, compostos em sua maioria por jovens estudantes e/ou com trabalhos precários ou desempregados que se mobilizaram por meio das redes sociais, mas que as extrapolam e ganham a cidade, no que David Harvey (2012, p. 60-1) chama de união dos corpos no espaço público, “o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”.

Entre suas principais bandeiras está a crítica à desigualdade econômica, havendo um profundo sentimento de mal-estar e desencanto. Apresentam-se como movimentos praticamente espontâneos, sem uma articulação orgânica, sem medo de explorar a plasticidade do novo, de novas formas de organização e de mobilização. Reivindicam características de maior horizontalidade, sem indicar porta-vozes e representantes, evitando a ligação com partidos, sindicatos e organizações estudantis tradicionais.

A repressão policial é outro ponto em comum, constituindo-se como resposta padrão dos governos às ocupações. Aqueles se valem do monopólio da violência para excluir o público do espaço público, bem como para atormentar, vigiar e, se necessário, criminalizar e prender quem ousa não se calar e resistir as suas ordens arbitrárias. O uso da força policial, entretanto, é um fator que, haja vista sua desproporção e arbitrariedade, estimulou ainda mais revolta e aumentou as mobilizações. Tal fato explicita que o “sistema não está só quebrado e exposto, mas também é incapaz de qualquer outra resposta que não a repressão” (HARVEY, 2012, p. 64).

Todas essas insurreições populares do oriente ao ocidente, de norte a sul, guardam uma ligação entre si, constituindo uma totalidade de disputas contra um sistema global de dominação e opressão e que se comunicam, ainda que imperceptivelmente. Por todo o lado se lê a mesma inquietação; não são revoltas erráticas, nem isoladas, como busca nos fazer crer a grande mídia, em sua gestão calculada das percepções. Esses eventos constituem uma sequência histórica que se desenrola numa estrita unidade de espaço e de tempo, do Chile ao Egito, Grécia, Nova Iorque, Brasil (COMITÊ INVISÍVEL, 2016). 

Há de se ressaltar, ainda, os limites que tais movimentos vêm encontrando. Tratam-se de protestos que estão num processo inicial de construção de um caminho para expressar um descontentamento geral com o sistema global capitalista, com diferentes formas aqui e ali, sem que se possa construir ainda uma alternativa concreta. Contudo, esses processos estão longe de terminar.
Os secundas brasileiros

A crise de 2008 explicita o cenário econômico e social em que a juventude insere-se e terá que buscar inserir-se profissionalmente; no Brasil, intensifica-se a crise econômica e política que tomam corpo em 2015, de modo que os jovens percebem que as promessas de ascensão social não poderão ser cumpridas, que o horizonte é de desemprego e precarização, em que o futuro parece sombrio. As possibilidades que timidamente surgiam, como acesso ao ensino superior público ou bolsa para o ensino privado, desmoronam e a representatividade dos partidos políticos e sindicatos na disputa por justiça social é crescentemente questionada e até mesmo negada, chegando a uma recusa absoluta de sua participação na mobilização estudantil.

As Jornadas de Junho de 2013 são um marco na história recente de lutas sociais, não só abrem um novo campo de disputa como também uma possibilidade de vitória: 70% da população urbana teve redução no aumento da passagem do transporte público naquele ano. Outros aprendizados foram conquistados com essas mobilizações de massa: a importância da ação direta e não apenas o ativismo virtual, a desobediência civil como tática de resistência, bem como o enfrentamento com a polícia militar.

Entramos na primavera de 2016 com novos ares de luta, em especial com a insurreição dos estudantes secundaristas em todo Brasil a frente do movimento contra a MP 746 que altera o Ensino Médio e a PEC do “Fim do Mundo” (agora, PEC 55/2016 que tramita no Senado) de um governo ilegítimo. Esse movimento se inicia com a ocupação de escolas no Paraná, mais especificamente na cidade de São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, e irradia-se por todo o país, com ocupações também em institutos federais e universidades. Nesse momento, são mais de 1.200 instituições de ensino ocupadas. O levante estudantil secundarista pode ser considerado o movimento social de maior expressão político-simbólica no Brasil de hoje.

Essa forma de mobilização estudantil ganhou relevância nacional no final de 2015 com as ocupações de escolas estaduais em São Paulo contra a intitulada eufemisticamente “reforma dos ciclos” – na verdade, uma completa reorganização do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, anunciado pela mídia, sem qualquer negociação com professores, alunos e seus familiares. Uma nova onda de protestos é realizada no Estado de São Paulo no primeiro semestre de 2016 promovida pelos estudantes das escolas técnicas de nível médio, inclusive, com a ocupação da Assembleia Legislativa de São Paulo. Desta vez, a mobilização teve como pauta central a falta ou a precariedade da merenda oferecida nas escolas técnicas, ao mesmo tempo em que se divulgava o desvio da verba destinada para a sua compra. Nessas duas fases de ocupações, a mobilização foi vitoriosa e teve suas reivindicações atendidas.

As ocupações de escolas brasileiras se inspiram nas experiências chilena e argentina, divulgadas, em especial, pelo coletivo “O Mal Educado”, que traduziu a cartilha dos estudantes argentinos Cómo Tomar un Colegio (ou “Como Ocupar um Colégio”, em tradução livre) e alcançaram o patamar de maior ocupação de escolas do mundo. Segundo esse mesmo coletivo, o Chile tem 12.116 escolas (da pré-escola ao ensino médio, públicas e privadas) e 3,5 milhões de estudantes. Em 2011, foram mais de 600 escolas ocupadas. O estado do Paraná tem 9.511 escolas e 2,5 milhões de alunos. Em 21 de outubro de 2016, 850 escolas estavam ocupadas nesse estado. Assim, tanto em números absolutos, como proporcionais, os estudantes secundaristas do Paraná constituem o maior movimento de ocupações de escolas do planeta! E não para por aí, pois há ocupações em 20 estados e no Distrito Federal, totalizando mais de mil e cem escolas ocupadas pelo país, num movimento que se expande para as universidades, com mais de 130 campi ocupados.

Um movimento dessas proporções não se dá sem represália daqueles a quem ameaça. As ocupações de São Paulo foram duramente reprimidas pela PM, além das perseguições aos alunos e professores apoiadores das ocupas. O governador do Paraná, Beto Richa (PSDB), não tem recorrido ostensivamente à PM, pois ainda é muito presente a lembrança do massacre do dia 29 de abril de 2015 contra os professores da rede estadual. Porém, isso não significa que os estudantes secundaristas não venham sofrendo intimidações e agressões. O Movimento Brasil Livre (MBL) vem agindo como milícia informal contra as escolas ocupadas não só de Beto Richa, como também em outros estados, disseminando boatos, instigando a violência da comunidade escolar contra as ocupações, tentando reiteradamente desocupar as escolas à base da força. Tudo isso tem acontecido com a omissão dos agentes públicos encarregados em coibir a violência, bem como o silenciamento da grande mídia em relação às ocupações e suas reivindicações.

Serão as ocupações de escolas, além dos acampamentos em praças no centro das cidades, a forma atual de insurgir-se contra o capital? Tendo em vista o fim do pacto de conciliação de classes, explicitado pelo impeachment de Dilma Rousseff, e com a primavera estudantil e o novo campo de lutas que se abre, haverá estabilidade política nos próximos anos? Qual será a resposta do neoliberalismo no Brasil e no mundo? Mais repressão e violência?
Entre o político e o pedagógico nas escolas ocupadas pelos estudantes secundaristas no Paraná

Há um amplo reconhecimento que o movimento de ocupações de escolas produz aprendizagens para aqueles que dele participam. Para além dessa constatação, talvez seja interessante buscarmos compreender como se apresenta o pedagógico nesse contexto. Nessa direção, é de grande contribuição a discussão do educador Miguel Arroyo (2003, p. 31-2) sobre as relações entre os movimentos sociais e a educação, de modo que o autor assevera que “[a] luta pela vida educa por ser o direito mais radical da condição humana”. A luta por melhores condições de vida e pela garantia de que as necessidades básicas sejam atendidas é educativa porque humanizadora, nos relembra quão determinantes são as condições de sobrevivência na nossa constituição como humanos.

Nesse processo, um componente que os movimentos trazem para o pensar e fazer educativos é o foco nos sujeitos sociais em formação, em movimento, em ação coletiva: “A teoria pedagógica se revitaliza sempre que se reencontra com os sujeitos da própria ação educativa. Quando está atenta aos processos de sua própria formação humana” (ARROYO, 2003, p. 32).

O processo de humanização produzido pela aprendizagem da vivência da mobilização é decorrente, dentre outras possibilidades, de seu envolvimento totalizante; os sujeitos vivendo em carências existenciais no limite se colocam com todas as dimensões de sua condição existencial, produzindo vivências existenciais totais, como sujeitos políticos, cognitivos, éticos, sociais, culturais, emocionais, de memória coletiva, de indignação, sujeitos de presente e de futuro. Os movimentos sociais mexem com tudo porque neles os coletivos arriscam tudo; frequentemente suas vidas são postas à prova em situações de risco (ARROYO, 2003).

Os estudantes secundaristas que ocupam suas escolas negam as visões tão pontuais, metodológicas e gerenciais que tanto têm distraído e esterilizado o pensamento e a prática escolar e extraescolar: “Alargar esse foco supõe ver os educandos para além de sua condição de aluno, de alfabetizandos, de escolarizandos… para vê-los como sujeitos de processos sociais, culturais, educativos mais totalizantes, onde todos estão imersos seja na tensa reprodução de suas existências tão precárias, seja na tensa inserção em lutas tão arriscadas onde tudo está em jogo” (ARROYO, 2003, p. 37).

Ou seja, no processo político-pedagógico das ocupações explicita-se a concepção de educação que fundamenta a proposta do governo e aquela da própria práxis do movimento estudantil. Paulo Freire (1997, p. 23) sistematizou essa posição: “a educação não pode senão aspirar ou à domesticação, ou à libertação. Não há terceiro caminho”. Com diferentes graus de sistematização, a juventude coloca em discussão justamente os fins da educação, questão muitas vezes esquecida até mesmo pelo próprio campo da Pedagogia.

Nessa direção, há questões interessantes que podem ser apreendidas das ocupas. Uma delas, relacionada à própria noção de estudante como sujeito citada acima, diz respeito a sua voz, há algo que eles querem e têm a dizer, mas ninguém os ouvia. É comum encontrar nas ocupações cartazes com os dizeres “O jovem no Brasil nunca é levado a sério”, de uma música do grupo de rock Charlie Brown Jr. Isso coloca uma questão a ser enfrentada pelas escolas, inclusive, no próprio processo de retorno às aulas pós-ocupações. Quem retorna não são aqueles mesmos alunos que iniciaram as ocupações; nessa produção de si mesmos, eles já são outros, são estudantes que tomaram para si seus processos educativos e de construção de suas vidas. Uma secundarista diz: “Agora, eu sou aquela escola”.

O protagonismo das mulheres e LGBT`s também tem marcado esse processo; as oprimidas e os oprimidos ganham voz na mobilização e assumem a frente do processo. Alguns exemplos: a organização da comissão de segurança e limpeza, que costumam ser funções com divisão sexista dos afazeres é compartilhada entre as e os estudantes; em algumas escolas, o banheiro é unissex – em uma dada escola, as alunas e os alunos retiraram as placas que identificavam os banheiros dos professores, estudantes e funcionários de modo que todos usam os mesmos banheiros agora.

Portão de uma escola estadual ocupada em Curitiba.

Por último, mas não menos importante, ganha materialidade a sensação de que não estamos sozinhos. Entre os estudantes secundaristas em luta, mas também na rede de apoiadores composta por professores e funcionários das escolas ocupadas, pais e responsáveis, comunidade escolar (e mais ampla), além de professores, funcionários e alunos de outras instituições, todos constroem um coletivo que possibilita o contato, a troca, a solidariedade entre pessoas que dificilmente teriam a oportunidade de conviverem. A alteridade circula como afeto central nas ocupações. Por exemplo, uma fala frequente entre os estudantes é em relação aos motivos de por que ocupam as escolas; rebelam-se contra a MP 746 e a PEC 55 não por eles especificamente – pois aqueles que estão no ensino médio não a vivenciarão –, mas pelos alunos que virão. Mobilizam-se também pela garantia dos direitos daqueles colegas que não se mobilizam. Constroem o nós. “É aí que ‘nós’ nos encontramos, é aí que se fazem os verdadeiros amigos, dispersos pelos quatro cantos do globo, mas que caminhamos juntos” (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 18).

Alteridade, coletividade, solidariedade, protagonismo das mulheres, LGBT`s e movimento negro, subjetivação, humanização do humano são dimensões fundamentais de qualquer perspectiva pedagógica que postula ser emancipatória e crítica. Os estudantes secundaristas estão dando vida a esse currículo.

Admiro profundamente a coragem de todas e todos estudantes que têm ocupado suas escolas, institutos federais e universidades por todo o Brasil. Com a força da luta que travam pela educação pública e pelo direito a uma vida digna constroem um novo campo de lutas, reabrem possibilidades de disputas e nos mostram que um outro mundo é possível.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. PEDAGOGIAS EM MOVIMENTO – o que temos a aprender dos Movimentos Sociais? Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp. 28-49, Jan/Jun 2003.
CARNEIRO, Henrique Soares. Apresentação – Rebeliões e ocupações de 2011. In: HARVEY, David et al. Occupy!: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo : Carta Maior, 2012.
COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
FREIRE, P. Papel da educação na humanização. Rev. da FAEEBA, Salvador, n. 7, p. 9 – 17, jan./junho, 1997.
HARVEY, David. “Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis”. In: ______ et al. Occupy!: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo : Carta Maior, 2012.

O STF e o direito do trabalho do inimigo





Por Cristiano Paixão Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015).

Por Ricardo Lourenço Filho Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante dos grupos de pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” e “Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB).

A década de 1990 trouxe uma onda conservadora ao direito penal. Isso começou com as políticas de “tolerância zero” do ex-prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani, que se constituíam em mal disfarçadas medidas de combate aos pobres e sem-teto. A Alemanha não poderia ficar atrás no arsenal de medidas inovadoras no campo do retrocesso penal. Foi quando Gunther Jakobs, professor e jurista, concebeu a teoria do direito penal do inimigo. Segundo essa teoria, certos indivíduos representariam um perigo à própria sobrevivência da sociedade, razão pela qual não mereceriam o mesmo tratamento reservado a cidadãos que transgredissem normas penais. Por representarem ameaça à sociedade como corpo social, esses indivíduos não seriam beneficiários das garantias constitucionais e processuais aplicáveis a réus e acusados em geral. Sobre eles deveria recair uma lógica de prevenção, de antecipação das forças da ordem em relação a uma possível prática de crimes.

Em 2016, uma onda conservadora atingiu o direito do trabalho no Brasil. O órgão responsável por essa desconstrução das regras e princípios que regem o mundo do trabalho é o Supremo Tribunal Federal. Em duas decisões recentes, o Supremo inovou. Ele criou a figura do direito do trabalho do inimigo.

Ao julgar dois processos que envolviam o direito de greve de empregados e servidores públicos, o Tribunal acabou por impedir, em termos práticos, o exercício desse direito. Analisemos as duas decisões.

A primeira delas é a decisão monocrática proferida na Reclamação nº 24.597/SP. O caso envolvia greve deflagrada pelos empregados públicos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Diante da paralisação, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região já havia determinado a manutenção de 70% dos trabalhadores e prestadores dos serviços de todos os setores do Hospital, sob pena de multa diária. Com a Reclamação proposta pelo Hospital, o STF estendeu a todos os empregados a determinação de continuidade dos serviços, mantida a penalidade. Na prática, houve a proibição de exercício do direito de greve.

É importante observar as referências feitas na decisão. Uma delas, e talvez a mais importante, é à decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 6.568/SP (DJe de 25.9.2009). Naquela ocasião, submeteu-se ao STF a decisão sobre a competência para julgar os conflitos decorrentes de greve deflagrada por policiais civis do estado de São Paulo. Em uma argumentação lateral, alheia à controvérsia, o Ministro Relator, Eros Grau, fazendo referência a São Tomás de Aquino, expressou o entendimento de que “(…) tal qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum”. Em outra passagem, observou, então, que “a conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. Defesa dessa conservação e efetiva proteção de outros direitos igualmente salvaguardados pela Constituição do Brasil”.

A segunda decisão, proferida pelo Plenário do STF, por maioria de seis votos contra quatro, deliberou sobre a questão do corte do ponto dos servidores públicos em greve (RE 693.456-RJ). De forma expressa, o Supremo Tribunal decidiu que o administrador público não só pode, mas tem o dever de cortar o ponto de servidores grevistas. O resultado do julgamento, em processo com repercussão geral, foi o de que a regra será o corte do ponto (e consequente suspensão do pagamento dos vencimentos) assim que a greve se iniciar.

O que há em comum nas duas decisões, além da completa incompreensão do significado do conceito de greve?

O fato de que, preventivamente, são adotadas medidas para inviabilizar o exercício do direito de greve. Por um lado, permitindo-se que determinadas categorias de servidores sejam privados, por princípio, da possibilidade de entrar em greve. Por outro, ao impor um desconto na remuneração que incidirá assim que o movimento paredista for desencadeado.

É rigorosamente a mesma lógica utilizada na teoria do direito penal do inimigo. Para evitar que o “mal” (a greve no setor público, na visão do STF) se concretize, adotam-se medidas que combatam, “na raiz”, qualquer movimento de paralisação, inviabilizando, em termos práticos, o exercício do direito.

Chama a atenção a radicalidade dos julgamentos do STF nesta matéria. Como se sabe – e já enunciado em recente artigo publicado no Jota –, a Constituição de 1988 foi bastante clara e precisa quanto à amplitude do exercício do direito de greve, consignando, em seu art. 9º, ser assegurado “o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. No art. 37, inciso VII, por sua vez, o direito é estendido aos servidores públicos sem restrição prévia do campo normativo, sendo prevista apenas a edição de lei específica para fixar termos e limites do exercício do direito. Não há espaço interpretativo para a proibição desse direito.

As decisões do STF privilegiam, contudo, o poder repressivo da Administração Pública, quer pela exclusão de determinadas categorias do direito de greve, quer pela imposição (ou “dever”) do corte do ponto assim que o movimento for desencadeado. O que justifica essa leitura, após 28 anos de vigência de uma Constituição democrática? Como defender esse tipo de interpretação restritiva a partir de uma Constituição que foi produto de uma mobilização social que foi marcada, historicamente, pela realização de greves que visavam melhorias de condições de trabalho e, ao mesmo tempo, a redemocratização do país?

Apenas o STF poderá conceder essas explicações, em futuros casos e na publicação dos acórdãos dessas decisões até aqui adotadas. Algo, contudo, já está claro. O trabalhador do setor público que procurar, por meio da ação coletiva da greve, apresentar demandas e lutar por seus direitos, passará a ser visto como inimigo do Estado e da sociedade. A repressão do poder público poderá ser ativada de imediato. Quando isso ocorreu ao longo da história do Brasil – em várias oportunidades –, o Poder Judiciário era o único recurso disponível aos trabalhadores. Em algumas circunstâncias, juízes e tribunais decidiram, de modo corajoso, proteger o exercício desse direito, mesmo em tempos ditatoriais.

À época do regime militar, o governo, junto ao Congresso Nacional, cuidou de editar normas que inviabilizavam, na prática, o exercício do direito de greve. A Carta de 1967 e a EC nº 1/1969 proibiam a greve aos servidores públicos e nas atividades consideradas essenciais. No período democrático atual, o papel de estabelecer restrições ao direito de greve foi assumido pelo Supremo Tribunal Federal.

De modo tremendamente irônico, portanto, a lógica se inverteu. Na democracia, com uma Constituição que assegurou o direito de greve, a repressão não será apenas tolerada pelo Poder Judiciário. Ela acaba de ser ordenada a todo administrador público que se deparar com a deflagração de uma greve. E tudo isso por força de duas decisões do Supremo Tribunal Federal, órgão encarregado de zelar pela guarda da Constituição.

Muitos trabalhadores desafiaram as limitações estabelecidas pela ditadura militar ao direito de greve. Especialmente a partir de 1976, passaram a reescrever a história do movimento sindical desafiando abertamente os órgãos de repressão ou simplesmente ignorando as práticas de proibição e restrição ao exercício do direito. Com isso, foram protagonistas da resistência ao arbítrio e da redemocratização.

Qual será atitude dos trabalhadores no atual momento, em que a repressão tem origem numa decisão plenária do órgão de cúpula do Judiciário? Conseguirão resistir? De que forma?