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quinta-feira, 30 de junho de 2016

Inversão de valores






Matar uma criança é o crime universalmente mais abominado. Correto? Depende. De quem morre e de quem mata.

No último mês as forças policiais de São Paulo mataram duas. Ítalo, de apenas dez anos, foi morto com um tiro na cabeça por policiais militares, no último dia 2, na zona sul da capital. E Waldik, de onze, foi assassinado por um guarda civil na semana passada na Cidade Tiradentes.

Ah, se fosse nos Jardins! Os assassinos estariam presos e milhares de pessoas teriam marchado na avenida Paulista com balões brancos. A sociedade se comoveria ante dois futuros ceifados e saberíamos hoje todos os detalhes de suas vidas, seus gostos e preferências. Seriam tratados, enfim, com o luto que se reserva às crianças mortas.

Mas nem todas as crianças têm direito a esse luto. Dois garotos pobres e mortos em "perseguições policiais" não parecem ser dignos de nossa empatia.

O que se sabe da história de Ítalo é uma sucessão de sofrimentos. Abandonado pelos pais, foi encontrado empinando pipa e pedindo comida na rua. Levado a abrigos, uma psicóloga que o acompanhou relata que, apesar das marcas de queimadura de cigarro pelo corpo, era alegre e ensinava as crianças a fazer pipa. Entre a revolta do abandono e a alegria infantil, alimentava o sonho de ser cantor.

Já Waldik vivia com a família e, como as crianças de sua idade, gostava de jogar bola e andar de bicicleta. Em uma de suas últimas fotos aparece sorridente na praça de alimentação do shopping, após ter ido ao cinema. "Vou sentir que ele morreu depois, que ele não vai estar mais na caminha dele", disse dona Orlanda, a mãe.

Duas crianças, nenhuma comoção. Mas o sinal de horror não está apenas na falta de empatia, numa certa indiferença social ao assassinato dos dois. Vai além disso, numa perversa inversão de valores.

Moradores do Morumbi, bairro onde Ítalo foi morto, organizaram um ato em defesa dos "heróis" da PM, em referência aos assassinos do menino. Nas redes sociais proliferaram postagens apresentando as duas crianças como elementos perigosos e comemorando as mortes.

A inversão consiste em apresentar as vítimas como vilões, ainda que sejam crianças de dez e onze anos. Dando voz institucional a isso, o deputado Coronel Camilo (PSD) apresentou um projeto para desmontar a Ouvidoria da Polícia de São Paulo, órgão de controle externo da atividade policial, após declarações do ouvidor em relação ao assassinato de Ítalo.

O ouvidor, Julio Cesar Fernandes Neves, afirmou ver indícios evidentes de irregularidade na ação policial e cobrou investigações. Disse o que qualquer pessoa sensata diria. E o que, aliás, ficou comprovado em perícia posterior, mostrando adulteração da cena do crime pelos policiais.

Mas, como se sabe, nenhuma situação é tão absurda que não possa piorar. O projeto do Coronel Camilo pretende acabar com a indicação da lista tríplice para a Ouvidoria por órgãos da sociedade civil e permitir a exoneração do ouvidor pelo governo antes do fim do mandato. Trata-se, de fato, de destruir qualquer autonomia do órgão.

A Ouvidoria divulgou recentemente o dado de que as forças policiais paulistas mataram 191 crianças e adolescentes nos últimos seis anos, revelando que os casos de Ítalo e Waldik não foram isolados. Mostrou ainda que 60% desses jovens são negros.

É compreensível que denúncias como essa incomodem uma instituição pouco acostumada à transparência e que parece ter salvo-conduto para matar.

O ouvidor está correto e precisa ser respaldado. A Ouvidoria deve ser fortalecida como instituição independente, ganhando inclusive mais prerrogativas na investigação dos crimes praticados por policiais.

Há algo de errado quando os policiais que mataram uma criança estão soltos e quem os denuncia é posto sob suspeita.

domingo, 19 de junho de 2016

Sinceramente, o Brasil atual tem jeito?





Quem olha a cena político-social-econômica atual se pergunta sinceramente:o Brasil tem jeito? Um bando de ladrões, travestidos de senadores-juízes tenta, contra todos os argumentos contrários, condenar uma mulher inocente, a Presidenta Dilma Rousseff, contra a qual não se acusa de nenhuma apropriação de bem público e de corrupção pessoal.

Com as recentes delações premiadas, ficou claro que o problema não é a Presidenta. É a Lava Jato que, para além das delações seletivas contra o PT, está alcançando a maioria dos líderes da oposição. Todos, de uma forma ou outra, se beneficiaram das propinas da Petrobrás para garantir a sua vitória eleitoral. “Precisamos estancar essa sangria” diz um dos notórios corruptos; “do contrário seremos todos comidos; há que se afastar a Dilma”.

Ninguém aliena nada de seus bens para financiar sua campanha. Nem precisa: existe a mina do caixa 2 abastecida pelas empresas corruptoras que criam corruptos a troco de vantagens posteriores em termos de grandes projetos, geralmente superfaturados, donde adquirem grande parte de suas fortunas.

Chegamos a um ponto ridículo, aos olhos do mundo: dois presidentes, um usurpador, fraco e sem nenhum carisma e outro legítimo mas afastado e feito prisioneiro em seu palácio; dois ministros do planejamento, um retirado e outro substituto: um governo monstruoso, antipopular e reacionário.

Estamos efetivamente num voo cego. Ninguém sabe para onde vai esta nação, a sétima economia do mundo, com jazidas de petróleo e gás das maiores do mundo e com uma riqueza ecológica sem comparação, base da futura economia. Assim como se delineia a correlação de forças, não vamos a lugar nenhum, Não é impossíveil um eventual conflito social, dada a política atual que corta direitos sociais especialmente, nos salários, na saúde e na educação.

O pobre, a maioria da população, se acostumou a sofrer e a encontrar saídas como pode. Mas chega a um ponto em que o sofrimento se torna insuportável. Ninguém aguenta, indiferente, ao ver um filho morrendo de fome ou de absoluta falta de assistência médica. E diz: assim não pode ser; temos que rebelar-nos.

Isso me faz lembrar um bispo franciscano do século XIII da Escócia que recusando os altos impostos cobrados pelo Papa, respondeu: non accepto, recuso et rebello” (“não aceito, me recuso e me rebelo”). E o Papa retrocedeu. Não poderá ocorrer algo semelhante entre nós?

Quando, nas palestras, fazendo um esforço imenso para deixar um laivo de esperança, me dizem: ”mas você é pessimista”! Respondo com Saramago: “não sou pessimista; a realidade é que é péssima”.

Efetivamente, a realidade está sendo péssima para todos, menos para aquelas elites endinheiradas, acostumadas à rapinagem, ganhando com a desgraça de todo um povo. Elas têm o seu templo de profanação na Avenida Paulista em São Paulo, onde se concentra grande parte do PIB brasileiro. Setores deles, especialmente da FIESP estão atrás do impeachment da Presidenta.

O grave é que estamos faltos de lideranças. Abstraindo o ex-presidente Lula, cujo carisma é inconteste, apontam para mim dois: Ciro Gomes e Roberto Requião, a meu ver, as únicas lideranças fortes, com coragem de dizer a verdade e pensar mais no Brasil que nos interesses partidários.

Essa crise tem um pano de fundo nunca resolvido em nossa história, desmascarado recentemente por Jessé Souza. (A tolice da inteligência brasileira, 2015). Somos herdeiros de séculos de colonialismo que nos deixou a marca de “vira-latas” sempre dependendo dos outros de fora. Pior ainda é a herança secular do escravismo que fez com que os herdeiros da Casa Grande se sintam senhores da vida e da morte dos negros e pobres. Não basta lançá-los nas periferias; há que desprezá-los e humilhá-los. E a classe média que imita os de cima, tolamente se deixa manipular por eles e inocentemente se faz cúmplice da horrorosa desigualdade social, talvez o verdadeiro problema social brasileiro. Eticamente vista, essa desigualdade é a nossa maior corrupção, pois nos faz indiferentes ao sofrimento das maiorias e pouco fazemos para diminui-la.

Essas elites de super-endinheirados (71.440 pessoas lucram 600 mil dólares por mês nos diz o IPEA) conquistaram os meios de comunicação de massa, golpistas e reacionários, que funcionam como azeite para a sua maquinaria de dominação. Essas elites nunca quiseram a democracia, apenas aquela de baixíssima intensidade, que a podem comprar e manipular; preferem os golpes e as ditaduras; aí o capitalismo viceja à tripa forra.

Hoje já não é mais possível o recurso às baionetas e aos canhões. Excogitou-se outro expediente: o golpe vem por uma artificiosa articulação entre políticos corruptos, o judiciário politizado e a repressão policial. Três tipos de golpe, portanto: o político, o jurídico e o policial.

Termino com as palavras pertinentes de Jessé Souza: “encontramo-nos num mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos”.

Filosofando, direi com Martin Heidegger:“só um Deus nos poderá salvar”? Marx talvez seja mais modesto e verdadeiro:”para cada problema há sempre uma solução”. Deverá surgir uma para nós a partir do caos político em que nos encontramos. O caos pode ser generativo do novo.

Leonardo Boff é articulista do Jornal do Brasil e escritor

domingo, 5 de junho de 2016

Manual do perfeito midiota – 26



Esse é, basicamente, o processo de formação do midiota: dá-se a ele a ração diária de meias-verdades, e ele acha que se tornou uma pessoa bem informada

Luciano Martins Costa


Sabe como funciona?

Um articulista ouve uma fonte e, sem checar a veracidade do fato, publica que determinada autoridade repassou propina de uma empresa para pagar o cabeleireiro.

A pessoa acusada não é ouvida.

O texto é impulsionado para as redes sociais pelo sistema de tecnologia multiplataforma da empresa de comunicação, e quando a pessoa atingida reage, demonstrando que se trata de uma mentira, você já leu no Facebook e aquele anão moral que apresenta um noticiário na emissora de grande audiência faz piadinhas a respeito do assunto.

Algumas horas depois, a pessoa cuja honra foi atingida anuncia que vai entrar com uma ação na Justiça, e o veículo posta uma nota minúscula apresentando o que se chama de “o outro lado”.

Mas você não lê o “outro lado”, porque a mídia tradicional já escolheu um lado para você há muito tempo. Além disso, a versão original parece mais de acordo com o que você pensa.

Esse é, basicamente, o processo de formação do midiota: dá-se a ele a ração diária de meias-verdades, e ele acha que se tornou uma pessoa bem informada.

E, como se sabe, duas meias verdades costumam compor uma mentira inteira.

Daí, o midiota vai conversar com outros midiotas, que confirmam suas convicções, e assim se consolida a visão de mundo que acaba por determinar muitas das decisões que toma no dia-a-dia.

É dessa forma que você passa ao largo das questões nacionais mais importantes.

Não se pode acusar um midiota de desonestidade intelectual, porque para que isso se configure, é preciso que haja alguma atividade intelectual.

E, como já demonstraram importantes pensadores consagrados, o que se passa, na comunicação de massa, é um processo de convencimento baseado na repetição de ideias, sem necessariamente haver um vínculo delas com a realidade.

Essas mensagens são mais efetivas quanto menos reflexão crítica for produzida pelo receptor.

A narrativa e o discurso da mídia tradicional no Brasil não se vinculam há muito tempo aos pressupostos do jornalismo de qualidade.

Tudo isso se presta a um objetivo: a manipulação.

Assim, com os olhos vendados, você é levado a apoiar políticas públicas que, no fim das contas, serão contrárias ao seu interesse.

Por exemplo, a pauta do Congresso Nacional se encheu de propostas que haviam sido engavetadas, algumas das quais ameaçam remeter o arcabouço legal do País a um atraso de décadas.

Direitos arduamente conquistados podem ser relativizados, ou, como gosta de dizer a mídia, “flexibilizados”.

O bombardeio de notícias negativas serve para convencer você de que, infelizmente, essa é a única maneira de combater a crise econômica.

E você acaba agindo contra seus próprios interesses.

No tempo em que os grandes jornais ainda competiam entre si, ou seja, antes de se juntarem numa espécie de partido político informal, o antigo “Estadão” divulgou uma série de anúncios para dizer que a concorrente, a Folha de São Paulo, enganava seus leitores.

Vale a pena ver de novo.

Só que agora vale para todos eles.

Para ver: Antiga propaganda de O Estado de S. Paulo. Apenas desconsidere a última frase:

sábado, 4 de junho de 2016

Apertem os cintos, o piloto sumiu



É certo que mesmo o mais entusiasta apoiador do golpe oligárquico perpetrado no Brasil não imaginava uma sequência tão desastrada como a que estamos a ver. A narrativa hegemônica antes do processo de impeachment de Dilma Rousseff era que, afastada a presidente, o dólar cairia, a bolsa subiria, a sociedade se reunificaria e voltaríamos a uma certa normalidade.

Mesmo os que denunciavam a manobra política afirmavam que entraríamos em um conchavo macabro entre a classe política, a imprensa e o judiciário para a criação de uma pacificação artificial do cenário político nacional.

No entanto, o que aconteceu foi outra coisa. Nestes primeiros 20 dias, o governo interino foi diariamente bombardeado por vazamentos de gravações que provocaram a queda de dois ministros em menos de um mês, setores da imprensa não deixaram de reverberar os arcaísmos e mazelas dos novos ocupantes do poder, minando a popularidade de um governo que começou em baixa. A quantidade de medidas anunciadas e revogadas em menos de um dia demonstra a profunda fragilidade do arranjo governista e seu programa.

Uma das formas de interpretar tal situação passa por compreender de outra forma golpes políticos como esse que o Brasil conheceu.

Normalmente, imaginamos que a queda de um grupo de poder e a ascensão de outro é fruto de um projeto claramente concebido que recebe a anuência de vários atores políticos com interesses em comum dispostos a se submeter a um comando central. Teria sido assim, por exemplo, com a ditadura militar, na qual setores do empresariado nacional, do latifúndio, da igreja conservadora e da imprensa organizaram seus interesses em comum submetendo-se ao comando militar, que foi rapidamente impondo sua hegemonia de fato.

No entanto, lembremos aqui da teoria presente em um dos mais impressionantes estudos sobre o estado nazista, a saber, "Behemoth: A Estrutura e a Prática do Nacional-Socialismo", de Franz Neumann.

Uma das principais teses de Neumann, companheiro de rota da Escola de Frankfurt, consiste em afirmar que o Estado nazista não era uma totalidade orgânica e homogênea. Antes, ele era composto de, ao menos, quatro grupos (o partido, o Exército, os industriais e a burocracia estatal) que se digladiavam entre si constituindo estruturas de poder paralelas que entravam continuamente em choque.

O Estado não se desagregava apenas porque existia um "mediador universal" reconhecido por todos (no caso, o Führer) que decidia os conflitos internos quando necessário. Agora, imagine uma situação como essa sem a figura do mediador universal. Você chegará assim ao Brasil atual, fruto de um impressionante golpe sem comando.

Cinco grupos tomaram a frente do processo de derrubada do governo Dilma. Primeiro, a casta política, que resolveu sacrificar seu sócio mais novo (o PT) para tentar, como disse singelamente o senhor Romero Jucá, "estancar a sangria".

Segundo, o poder Judiciário, que, diante da imobilidade do Executivo e do Legislativo, paulatinamente foi alçado ao centro do processo decisório nacional, ganhando um protagonismo e autonomia nunca visto. Não foram poucos os que denunciaram que o Brasil caminha para uma certa condição de República de juízes.

Terceiro, setores hegemônicos da imprensa, que tem sua pauta liberal-conservadora própria.

Quarto, a oligarquia financeira, único setor da economia nacional capaz de organizar o comando da economia a partir de seus próprios interesses. Por fim, a igreja evangélica conservadora, cuja influência na política brasileira é fruto de trabalho ideológico de longo fôlego no interior da dita "nova classe média".

Todos esses atores têm agendas próprias, não necessariamente convergentes. A única coisa que eles têm em comum é o mesmo inimigo externo, a saber, a esquerda no poder. O que os une é a violência contra o mesmo inimigo, que precisará continuar como tal. O que veremos agora será, pois, tais atores se digladiando entre si para impor sua hegemonia.

Policiais prendendo banqueiros, a imprensa enquadrando membros da casta política, evangélicos pressionando o governo para suas pautas fundamentalistas: esses movimentos são apenas um jogo de força no interior de um golpe sem comando e de um país à deriva. Esta é uma das versões possíveis do vazio no poder.