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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Fim da obrigatoriedade de filosofia e sociologia gera ensino mutilado

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 artigo de Vladimir Safatle


Na semana passada, o relator da medida provisória sobre as modificações do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de "governo", fez algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre elas, ele sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser disciplinas de fato e se transformem em "conteúdos transversais" lecionados em aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham seguir uma concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam mais oferecidos como disciplinas autônomas, o que vai contra todo o discurso a respeito de oferecer mais condições para os alunos aprofundarem seus interesses efetivos.

Essa consideração do senhor relator nos leva, no entanto, a colocar questões a respeito da importância do ensino de filosofia e sociologia para adolescentes. Afinal, devem nossos adolescentes aprender filosofia e sociologia? Pois é claro que a proposta de reduzi-las a "conteúdos transversais" é apenas uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um professor de história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria condições de tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à docência.

Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia e sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser eliminadas como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem elas. Mas coloquemos a questão implícita neste debate na sua forma correta, a saber: por que há setores da sociedade brasileira que se incomodam tanto com seus filhos aprendendo filosofia e sociologia?

Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de incômodo, mas de uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação seria garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há de se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes brasileiros são sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como línguas e matemática. Melhor então focar o essencial.

No entanto, tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é o melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em mutação, como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão tomar melhores decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado, se seus conhecimentos de línguas e matemática são deficitários, não é por alguma forma de "excesso" de disciplinas, mas pela péssima qualidade de nossas escolas, pela precarização de nossos professores (só o Estado de São Paulo perdeu 44.500 professores apenas nos últimos dois anos) e pela ausência de cultura literária de muitas famílias.

Nesse sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e sociologia. O ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o desenvolvimento de algumas habilidades fundamentais. Lembremos de ao menos três: a capacidade de constituir problemas a partir da crítica a pressupostos aparentemente naturalizados, a capacidade de articular problemas em campos aparentemente dispersos, desenvolvendo assim um forte pensamento de relações e quebrando a tendência atual em isolar o pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto significa ser capaz, por exemplo, de compreender como questões éticas têm relações com questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de lógica, entre outras.

Por fim, e esta é sua característica mais impressionante, o aprendizado da filosofia pressupõe a capacidade de pensar como um outro. Lembro-me de um professor que, ao ver muita pressa em "refutar" Descartes, olhou para mim com sua sabedoria costumeira e disse: "Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe". Ou seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para poder se contrapor com mais propriedade.

Bem, é isto que alguns querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que querem isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar, de uma vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos, como Condorcet, quem dizia: "A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de governar".


Vladimir Safatle

A aula de resistência dos estudantes




Começou no Paraná. Já se espraiou por vários Estados do país, de norte a sul. Os estudantes brasileiros ocupam mais de mil instituições de ensino contra a Medida Provisória do ensino médio e a PEC 241. Sim, mais de mil escolas ocupadas, sendo 850 delas no Paraná, que se tornou o coração da resistência estudantil.

Os ventos da primavera secundarista do ano passado, protagonizada pelos estudantes de São Paulo, voltam a soprar. Naquela ocasião, o movimento derrotou a famigerada proposta de "reorganização escolar" do governo Geraldo Alckmin (PSDB), vencendo as velhas tentativas de desmoralização e criminalização da luta.

Rebeldes sem causa? Ora, as causas são muitas. A MP do ensino médio, editada sem qualquer debate com a sociedade, é a primeira delas. Representa a perda da universalidade no currículo, na contramão das tendências à interdisciplinaridade. Exclui das disciplinas obrigatórias filosofia e sociologia, áreas mais abertas à reflexão social. É a lógica da escola funcional ao mercado de trabalho, sem espaço para a formação de sujeitos críticos. E isso sem qualquer discussão com os principais interessados, estudantes e professores.

As ocupações se insurgem ainda contra a PEC 241, aprovada na última terça (25) pela Câmara dos Deputados. Essa PEC representa o desmonte da rede de proteção social garantida pela Constituição de 1988. Ao propor o congelamento dos investimentos públicos pelos próximos vinte anos impõe um severo retrocesso nos direitos e ameaça colapsar os serviços públicos, em especial a saúde e a educação.

Receita inédita, jamais adotada em qualquer país do mundo, ainda menos como cláusula constitucional. Algo assim não passou sequer pela cabeça de um Carlos Menem, na Argentina, de Fujimori, no Peru, ou de FHC. Nem os magos da austeridade do FMI (Fundo Monetário Internacional) chegaram a tal atrevimento. Se aprovada, os ganhos do crescimento econômico nas próximas duas décadas não poderão ser destinados ao povo brasileiro. A saúde, a educação e o futuro estarão congelados.

Vale acrescentar que essas duas medidas são encampadas por um governo sem nenhuma legitimidade social, sem respaldo no voto popular. Como um rolo compressor, usando sua maioria parlamentar fisiológica, impõe à sociedade um programa que ninguém escolheu. E, afora as importantes iniciativas de mobilização dos movimentos populares, a maioria ainda reage com apatia ou perplexidade.

Neste cenário, as ocupações estudantis no Paraná e em todo o país são uma lição de resistência. Merecem a atenção e o apoio de todos aqueles que, compreendendo a gravidade dos retrocessos em curso, querem um Brasil mais justo e democrático.

Atenção que a imprensa recusa de modo espantoso. Mais de mil escolas ocupadas, um movimento de dimensões inéditas no país e nenhum destaque midiático. Por seu lado, o governador Beto Richa (PSDB), que já mostrou do que é capaz contra os professores paranaenses, incita a violência estimulando pais e outros alunos contra o movimento das ocupações.

No entanto, os estudantes resistem. Jovens que deixam a mensagem de que a esperança do futuro pode vencer o porrete e romper o silêncio. É preciso aprender com eles.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Por que querem me condenar



Em mais de 40 anos de atuação pública, minha vida pessoal foi permanentemente vasculhada -pelos órgãos de segurança, pelos adversários políticos, pela imprensa. Por lutar pela liberdade de organização dos trabalhadores, cheguei a ser preso, condenado como subversivo pela infame Lei de Segurança Nacional da ditadura. Mas jamais encontraram um ato desonesto de minha parte.

Sei o que fiz antes, durante e depois de ter sido presidente. Nunca fiz nada ilegal, nada que pudesse manchar a minha história. Governei o Brasil com seriedade e dedicação, porque sabia que um trabalhador não podia falhar na Presidência. As falsas acusações que me lançaram não visavam exatamente a minha pessoa, mas o projeto político que sempre representei: de um Brasil mais justo, com oportunidades para todos.

Às vésperas de completar 71 anos, vejo meu nome no centro de uma verdadeira caçada judicial. Devassaram minhas contas pessoais, as de minha esposa e de meus filhos; grampearam meus telefonemas e divulgaram o conteúdo; invadiram minha casa e conduziram-me à força para depor, sem motivo razoável e sem base legal. Estão à procura de um crime, para me acusar, mas não encontraram e nem vão encontrar.

Desde que essa caçada começou, na campanha presidencial de 2014, percorro os caminhos da Justiça sem abrir mão de minha agenda. Continuo viajando pelo país, ao encontro dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos partidos, para debater e defender o projeto de transformação do Brasil. Não parei para me lamentar e nem desisti da luta por igualdade e justiça social.

Nestes encontros renovo minha fé no povo brasileiro e no futuro do país. Constato que está viva na memória de nossa gente cada conquista alcançada nos governos do PT: o Bolsa Família, o Luz Para Todos, o Minha Casa, Minha Vida, o novo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o Programa de Aquisição de Alimentos, a valorização dos salários -em conjunto, proporcionaram a maior ascensão social de todos os tempos.

Nossa gente não esquecerá dos milhões de jovens pobres e negros que tiveram acesso ao ensino superior. Vai resistir aos retrocessos porque o Brasil quer mais, e não menos direitos.

Não posso me calar, porém, diante dos abusos cometidos por agentes do Estado que usam a lei como instrumento de perseguição política. Basta observar a reta final das eleições municipais para constatar a caçada ao PT: a aceitação de uma denúncia contra mim, cinco dias depois de apresentada, e a prisão de dois ex-ministros de meu governo foram episódios espetaculosos que certamente interferiram no resultado do pleito.

Jamais pratiquei, autorizei ou me beneficiei de atos ilícitos na Petrobras ou em qualquer outro setor do governo. Desde a campanha eleitoral de 2014, trabalha-se a narrativa de ser o PT não mais partido, mas uma "organização criminosa", e eu o chefe dessa organização. Essa ideia foi martelada sem descanso por manchetes, capas de revista, rádio e televisão. Precisa ser provada à força, já que "não há fatos, mas convicções".

Não descarto que meus acusadores acreditem nessa tese maliciosa, talvez julgando os demais por seu próprio código moral. Mas salta aos olhos até mesmo a desproporção entre os bilionários desvios investigados e o que apontam como suposto butim do "chefe", evidenciando a falácia do enredo.

Percebo, também, uma perigosa ignorância de agentes da lei quanto ao funcionamento do governo e das instituições. Cheguei a essa conclusão nos depoimentos que prestei a delegados e promotores que não sabiam como funciona um governo de coalizão, como tramita uma medida provisória, como se procede numa licitação, como se dá a análise e aprovação, colegiada e técnica, de financiamentos em um banco público, como o BNDES.

De resto, nesses depoimentos, nada se perguntou de objetivo sobre as hipóteses da acusação. Tenho mesmo a impressão de que não passaram de ritos burocráticos vazios, para cumprir etapas e atender às formalidades do processo. Definitivamente, não serviram ao exercício concreto do direito de defesa.

Passados dois anos de operações, sempre vazadas com estardalhaço, não conseguiram encontrar nada capaz de vincular meu nome aos desvios investigados. Nenhum centavo não declarado em minhas contas, nenhuma empresa de fachada, nenhuma conta secreta.

Há 20 anos moro no mesmo apartamento em São Bernardo. Entre as dezenas de réus delatores, nenhum disse que tratou de algo ilegal ou desonesto comigo, a despeito da insistência dos agentes públicos para que o façam, até mesmo como condição para obter benefícios.

A leviandade, a desproporção e a falta de base legal das denúncias surpreendem e causam indignação, bem como a sofreguidão com que são processadas em juízo. Não mais se importam com fatos, provas, normas do processo. Denunciam e processam por mera convicção -é grave que as instâncias superiores e os órgãos de controle funcional não tomem providências contra os abusos.

Acusam-me, por exemplo, de ter ganho ilicitamente um apartamento que nunca me pertenceu -e não pertenceu pela simples razão de que não quis comprá-lo quando me foi oferecida a oportunidade, nem mesmo depois das reformas que, obviamente, seriam acrescentadas ao preço. Como é impossível demonstrar que a propriedade seria minha, pois nunca foi, acusam-me então de ocultá-la, num enredo surreal.

Acusam-me de corrupção por ter proferido palestras para empresas investigadas na Operação Lava Jato. Como posso ser acusado de corrupção, se não sou mais agente público desde 2011, quando comecei a dar palestras? E que relação pode haver entre os desvios da Petrobras e as apresentações, todas documentadas, que fiz para 42 empresas e organizações de diversos setores, não apenas as cinco investigadas, cobrando preço fixo e recolhendo impostos?

Meus acusadores sabem que não roubei, não fui corrompido nem tentei obstruir a Justiça, mas não podem admitir. Não podem recuar depois do massacre que promoveram na mídia. Tornaram-se prisioneiros das mentiras que criaram, na maioria das vezes a partir de reportagens facciosas e mal apuradas. Estão condenados a condenar e devem avaliar que, se não me prenderem, serão eles os desmoralizados perante a opinião pública.

Tento compreender esta caçada como parte da disputa política, muito embora seja um método repugnante de luta. Não é o Lula que pretendem condenar: é o projeto político que represento junto com milhões de brasileiros. Na tentativa de destruir uma corrente de pensamento, estão destruindo os fundamentos da democracia no Brasil.

É necessário frisar que nós, do PT, sempre apoiamos a investigação, o julgamento e a punição de quem desvia dinheiro do povo. Não é uma afirmação retórica: nós combatemos a corrupção na prática.

Ninguém atuou tanto para criar mecanismos de transparência e controle de verbas públicas, para fortalecer a Polícia Federal, a Receita e o Ministério Público, para aprovar no Congresso leis mais eficazes contra a corrupção e o crime organizado. Isso é reconhecido até mesmo pelos procuradores que nos acusam.

Tenho a consciência tranquila e o reconhecimento do povo. Confio que cedo ou tarde a Justiça e a verdade prevalecerão, nem que seja nos livros de história. O que me preocupa, e a todos os democratas, são as contínuas violações ao Estado de Direito. É a sombra do estado de exceção que vem se erguendo sobre o país.

sábado, 15 de outubro de 2016

A PEC 241 é a contra-face da “defesa da família”

Todos os deputados que estão envolvidos nas proposições em tramitação que pretendem retirar o direito à união homoafetiva, retroceder décadas restaurando o "direito das famílias como entidades" e proibir o debate sobre igualdade de gênero nas escolas votaram a favor da PEC 241, isto é, votaram contra o direito à educação, à saúde e à assistência de brasileiras e brasileiros.



Por Flávia Biroli.

Fim de um ciclo democrático

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, aprovada em primeira votação na Câmara dos Deputados no dia 10 de outubro, concentra duas investidas fatais contra a democracia brasileira. A primeira é a retirada do orçamento do escopo das decisões democráticas, uma vez que a PEC, se aprovada, determinará a restrição do investimento em saúde, educação e assistência social por uma a duas décadas. Isso significa que as disputas eleitorais serão travadas ao largo de uma questão política central, que é a alocação de recursos. A segunda é o encerramento do patamar em que as disputas têm transcorrido desde 1988, que teve como referência os direitos sociais definidos na Constituição.

Um governo sem legitimidade está prestes a realizar uma mudança que incidirá diretamente sobre o balanço entre a vida e o lucro. É isso que está no cerne da PEC 241: trata-se de uma redefinição do papel do Estado de modo que retira recursos dos investimentos sociais, inviabilizando o direito à educação, à saúde e à assistência, enquanto mantém a alta remuneração do capital, por meio das taxas de juros praticadas e do sistema atual de tributação.

O projeto de Brasil apresentado pela PEC 241 é aquele em que o Estado reduz os investimentos em áreas fundamentais para a vida das pessoas ao mesmo tempo em que retira o debate sobre o papel do Estado do jogo democrático-eleitoral.

Nos 27 anos (1988-2015) que demarcaram o ciclo da democracia brasileira que agora se encerra, estivemos inicialmente mais próximos do modelo do capitalismo de mercado neoliberal, com Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A partir de 2003, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo Federal após a eleição de Luis Inácio Lula da Silva, tivemos um ciclo dentro do ciclo, em que vivemos nossa versão de capitalismo de estado com democracia. O ciclo dentro do ciclo foi caracterizado pela ampliação dos investimentos sociais, pela redução da pobreza, pelo aumento do valor real do salário mínimo, embora tenha sido caracterizado também pela alta lucratividade do setor financeiro e, ao menos até 2012, por uma situação cômoda para o empresariado nacional.

O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, é, com seus potenciais e problemas, característico do ciclo democrático iniciado naquele ano. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criado em 2005, é característico do ciclo dentro do ciclo, no qual foi ampliado o montante de recursos para políticas de assistência – entre as quais muitas das políticas que podem ser caracterizadas como políticas de cuidado focadas nos setores mais vulneráveis da população. São dois exemplos do que está em risco agora, quando a PEC 241 sinaliza que a deposição de Dilma Rousseff foi apenas o anúncio do fim de um ciclo, e não o fim propriamente.

Quero ressaltar que é um equívoco definir o que está em jogo como uma questão de balanço das contas públicas. Esse tem sido o discurso da propaganda favorável à PEC 241. A ausência de debate é complementada pela distorção aberta praticada pela mídia empresarial brasileira. As perguntas que não são feitas são fundamentais para se entender o que está em jogo: para quem é uma solução “equilibrar contas”, comprometendo o direito à saúde, à assistência e à educação? Quais são as alternativas do ponto de vista do ajuste fiscal? Qual é a legitimidade de um governo não eleito para levar a cabo uma mudança que não é nas “contas”, mas na viabilidade dos sistemas públicos de saúde, educação e assistência?

O que está em jogo é se e como o Estado investe na sociedade. Com a PEC 241, o Estado redireciona os recursos públicos, de modo que são retirados do investimento em equipamentos públicos, na prática inviabilizando direitos fundamentais.
A PEC 241 e a “defesa da família”

A PEC 241 também ajuda a compreender como se apresenta hoje o arranjo entre a defesa da redução dos investimentos sociais e a defesa de uma incidência maior do Estado na forma da repressão e da “normalização”.

A “defesa da família” tem sido um dos eixos organizadores da reação conservadora na crise política atual. Ela aparece nas muitas proposições e iniciativas no Congresso e nos legislativos estaduais e municipais que buscam restringir o sentido de família corrente, estabelecido conjuntamente pela Constituição de 1988, pelo Código Civil de 2002 e por decisões posteriores do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.

Venho há algum tempo chamando a atenção para o fato de que a defesa da família, pelos atores políticos da reação, é ao mesmo tempo construída no plano moral e no plano socioeconômico. Ela é contrária à pluralidade dos arranjos afetivos e familiares e procura mudar a direção de um processo social capilarizado, no qual os papeis de gênero têm sido redefinidos na medida em que as mulheres estão mais presentes em diferentes tipos de ocupação na esfera pública e a dupla moral sexual é enfraquecida. O apelo ao fortalecimento da “família natural” é feito da reativação simultânea da norma heterossexual, da autoridade masculina/paternal e da domesticidade das mulheres.

Mas há um segundo sentido, que é o socioeconômico. A família é valorizada como unidade privada, sujeito não apenas de direitos (que estariam acima dos dos indivíduos, contrariando o que foi instituído pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002) mas de responsabilidades que se ampliam justamente na medida em que o Estado delas se esquiva.

Assim, a PEC 241 é a contra-face da “defesa da família”. A ampliação das responsabilidades privadas das famílias significa, ao mesmo tempo, o aprofundamento das desigualdades entre as unidades familiares e o aprofundamento das desigualdades internas às famílias. No primeiro caso, isso se dá porque os equipamentos de Estado fazem mais falta para as que não têm recursos para substitui-los pelo que o mercado oferece – planos de saúde, creches privadas, cuidado privado para os idosos e para as pessoas doentes. Internamente às famílias, é a divisão assimétrica do trabalho entre mulheres e homens que mais uma vez emerge aprofundando as desigualdades quando “à família” – na prática, às mulheres – cabe ainda maior responsabilidade pelo cuidado e pelo desenvolvimento das crianças, pela saúde dos mais próximos e pelos atropelos cotidianos para conciliar o trabalho remunerado e o dia-a-dia das necessidades para que a vida siga, sem que as responsabilidades coletivas que temos (pela infância, pela velhice) sejam traduzidas na forma de equipamentos de Estado.

Todos os deputados que estão envolvidos na “defesa da família” votaram a favor da PEC 241. Repito: todos os deputados que estão envolvidos nas proposições em tramitação que pretendem retirar o direito à união homoafetiva, retroceder décadas restaurando o direito das famílias como entidades e proibir o debate sobre igualdade de gênero nas escolas votaram a favor da PEC 241, isto é, votaram contra o direito à educação, à saúde e à assistência de brasileiras e brasileiros.

As famílias que dizem defender são aquelas que terão escolas mais precárias para seus filhos, maiores dificuldades para conseguir vagas em creches e atendimento médico-hospitalar e que dependerão de caridade em vez de ter garantido seu direito a assistência quando algo na vida der errado, por exemplo quando tiverem na família uma pessoa com necessidades especiais.

A misoginia marcante no golpe que depôs a primeira presidenta mulher deste país, a promoção da domesticidade das mulheres e da “caridade” na figura da primeira-dama Marcela Temer, a “defesa da família” e a PEC 241 são fios de uma mesma rede na qual vidas são comprometidas na mesma medida em que os direitos sociais e a democracia brasileira são restritos. Moralização e precarização dão o tom do fim desse ciclo democrático.

O dossiê especial de intervenção “Não à PEC 241”, do Blog da Boitemporeúne artigos, entrevistas, análises e vídeos que destrincham de perspectivas diversas o contexto, o processo, a agenda e os efeitos da PEC 241. Lá você encontrará reflexões de Laura Carvalho, Ruy Braga, Flávia Biroli, Guilherme Boulos, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Silvio Luiz de Almeida, João Sicsú, Adalberto Moreira Cardoso, Rosane Borges, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Jorge Luiz Souto Maior, Maurílio Lima Botelho, Antonio Martins, Renato Janine Ribeiro, Jessé Souza, entre outros, além de uma agenda das manifestações de rua contra a Proposta de Emenda à Constituição 241.

***

Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Safatle: A PEC 241 e o verdadeiro descalabro nos gastos públicos

Entrará para a história o fato de que uma das mais impressionantes medidas econômicas das últimas décadas, uma que simplesmente retira do Congresso a possibilidade de realmente discutir o orçamento, que restringe o poder de representantes eleitos em aumentar investimentos do Estado, que os transforma em peças decorativas de uma pantomima de democracia, foi anunciada não pelo pretenso presidente da República, mas por um banqueiro.




Semana passada, o dito “governo” resolveu apresentar à população seu plano de emergência econômica diante da propalada crise. Conhecido como PEC 241, o plano visa congelar os investimentos estatais nos próximos 20 anos, permitindo que eles sejam, no máximo, reajustados pela inflação do período.

Isso significa, entre outras coisas, que o nível do investimento em educação e saúde continuará no nível em que está, sendo que o nível atual já é resultado de forte retração que afeta de forma brutal hospitais públicos, universidades e escolas federais. Todos têm acompanhado a situação calamitosa dos nossos hospitais, os limites do SUS, os professores em greve por melhores condições de trabalho. Ela se perpetuará.

Para apresentar o novo horizonte de espoliação e brutalidade social, o dito “governo” colocou em marcha seu aparato de propaganda. Ao anunciar as medidas, foi convocado um representante de quem verdadeiramente comanda o país, a saber, um banqueiro, o senhor Meirelles.

Entrará para a história o fato de que uma das mais impressionantes medidas econômicas das últimas décadas, uma que simplesmente retira do Congresso a possibilidade de realmente discutir o orçamento, que restringe o poder de representantes eleitos em aumentar investimentos do Estado, que os transforma em peças decorativas de uma pantomima de democracia, foi anunciada não pelo pretenso presidente da República, mas por um banqueiro.

Este dado não é anódino. Ele simplesmente demonstra que Michel Temer não existe. Não é por acaso que ele não aparece na televisão e some em dia de eleição, indo votar no raiar do sol. Quem realmente comanda o Brasil atualmente é uma junta financeira que impõe seus ditames a toque de caixa usando, como álibi, a ideia de uma “crise” a destruir o Brasil devido ao descontrole dos gastos públicos.

O script é literalmente o mesmo aplicado em todos os países europeus com resultados catastróficos. No entanto, há de se reconhecer que ele tem o seu quinhão de verdade.

De fato, há um descalabro nos gastos públicos, mas certamente ele não vem dos investimentos parcos em educação, saúde, assistência social, cultura etc. Por exemplo, segundo dados da OCDE, o Brasil gasta 3.000 dólares por aluno do ensino básico, enquanto os outros países da OCDE – a maioria europeus e da América do Norte, entre outros – gastam, em média, 8.200 dólares.

A situação piorará nos próximos 20 anos, já que os gastos continuarão no mesmo padrão enquanto a população aumentará e envelhecerá, exigindo mais gastos em saúde.

Na verdade, os gastos absurdos do governo não são com você, nem com os mais pobres, mas com o próprio sistema financeiro, que se apropria do dinheiro público por meio de juros e amortização da dívida pública, e lucra de forma exorbitante devido à taxa de juros brasileira. Uma dívida nunca auditada, resultante em larga medida da estatização de dívidas de entes privados.

Por incrível que pareça (mas que deveria ser realmente sublinhado), o plano econômico do governo não prevê limitação do dinheiro gasto com a dívida pública. Ou seja, fechar escolas e sucatear hospitais é sinal de “responsabilidade”, “austeridade”, prova que recuperamos a “confiança”; limitar os lucros dos bancos com títulos do Estado é impensável, irresponsável, aventureiro. Isso demonstra claramente que o objetivo da PEC não é o equilíbrio fiscal, mas a garantia do rendimento da classe rentista que comanda o país.

Como se trata de ser o mais primário possível, o dito “governo” e sua junta financeira comparam a economia nacional a uma casa onde temos que cortar gastos quando somos “irresponsáveis”. Mas já que a metáfora primária está a circular, que tal começar por se perguntar que gastos estão realmente destruindo o “equilíbrio” da casa? Por que a casa não pede mais dinheiro para aquele pessoal ocioso que mora nos quartos maiores e nunca contribui com nada?

Ou seja, já que estamos em crise, que tal exigir que donos de jatos, helicópteros e iates paguem IPVA, que igrejas paguem IPTU, que grandes fortunas paguem imposto, que bancos com lucros exorbitantes tenham limitações de ganho, que aqueles que mais movimentam contas bancárias paguem CPMF?

É claro que nada disso será feito, pois o Brasil não tem mais governo, não tem mais presidente e tem uma democracia de fachada. O que o Brasil tem atualmente é um regime de exceção econômica comandado por uma junta financeira. 

* Artigo publicado originalmente no jornal Folha do S.Paulo com o título “Junta financeira comanda o Brasil e impõe ditames a toque de caixa

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Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006),Folha explica Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da crítica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros. Atualmente, mantem coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo e coluna mensal na Revista CULT. Em 2012, teve um artigo incluído na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (Boitempo, 2012), publicada pela Boitempo Editorial em parceria com o Carta Maior.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Falso remédio


De acordo com o ministro da Fazenda Henrique Meirelles, se a PEC "do teto de gastos" não for aprovada, o Brasil teria de enfrentar alternativas "muito mais sérias e muito piores para o país", como a alta de impostos. De fato, como já vem ocorrendo desde 2015, o que a regra garante por meio de uma alteração na Constituição é que, independente de quanto se arrecadar, o debate econômico e o conflito distributivo sobre o orçamento público fique restrito por 20 anos a uma disputa sobre um total já reduzido de despesas primárias, onde os que detém maior poder econômico e político saem vencedores.

Os dados apresentados no Texto para Discussão n. 2132 do IPEA mostram que a deterioração fiscal verificada no Brasil nos últimos anos em nada tem a ver com um crescimento mais acelerado das despesas primárias federais. Tais despesas —que seriam limitadas pela PEC a crescer apenas com a inflação do ano anterior— expandiram-se menos entre 2011 e 2014 do que nos governos anteriores. Em 2015, caíram mais de 2% em termos reais.

O problema é que as receitas também cresceram menos durante o primeiro mandato de Dilma —2,2% contra 6,5% no segundo mandato de FHC, por exemplo. Além das desonerações fiscais sem contrapartida concedidas pelo governo e ampliadas pelo Congresso, a própria crise econômica explica o fenômeno. A contração na arrecadação chegou a 6% em 2015 e, segundo as previsões, será de 4,8% em 2016.

O pagamento de juros, por sua vez, é responsável pela maior parte do aumento recente da dívida pública. Embora o argumento comumente propagado seja de que tais despesas apenas refletem um equilíbrio de mercado, o fato é que as sucessivas elevações da taxa básica em 2015 pelo Banco Central encareceu —no mínimo— a alta parcela dos juros paga sobre os títulos indexados à própria taxa Selic.

Note-se que o aumento da taxa em nada ajudou a frear uma aceleração da inflação causada, essencialmente, pelo reajuste brusco dos preços administrados que vinham sendo represados. E, mesmo com o processo atual de convergência da inflação para a meta, o Banco Central continua elevando a taxa de juros em termos reais.

Nesse contexto, a PEC não só não é a panaceia anunciada no que tange à estabilização da dívida pública —ou ao controle de uma inflação já em queda— como pode até mesmo prejudicar sua dinâmica ao tirar da mesa de discussão os três itens que mais explicam o quadro de deterioração fiscal atual: a falta de crescimento econômico, a queda de arrecadação tributária e o pagamento de juros.

Pior. Com o crescimento inevitável dos benefícios previdenciários por muitos anos, que ocorrerá mesmo no caso de aprovação de outra reforma, outras áreas terão seu peso cada vez mais comprimido. Ao contrário dos magistrados, que parecem ter força suficiente para conquistar reajustes em meio a conflitos acirrados, despesas com educação por aluno, saúde por idoso, ciência e tecnologia, cultura, assistência social e investimentos públicos sofrerão queda vertiginosa.

Já a reforma tributária, o fim das desonerações fiscais, o combate à sonegação de impostos e a abertura de espaço fiscal para a realização de investimentos em infraestrutura não parecem fazer parte dos planos de Meirelles. Frouxa no curto prazo, a PEC 241 não é um plano de ajuste e, muito menos, uma agenda de crescimento. Trata-se de um projeto de longo prazo de desmonte do Estado de bem-estar social brasileiro.

PEC 241, o Brasil de volta à senzala



Não se viu nada igual nos últimos 30 anos. A PEC 241 é o mais ousado ataque ao povo brasileiro desde a ditadura militar, violando a Constituição de 1988 precisamente naquilo em que ela pôde ser chamada de "cidadã". É uma verdadeira "desconstituinte", uma ode à desigualdade social.

Aprovada em primeiro turno na Câmara e festejada com brindes de champanhe no jantar do Alvorada, a PEC determina o congelamento dos investimentos públicos pelos próximos 20 anos, até 2036.

Os efeitos disso para os serviços públicos e os salários dos trabalhadores serão fatais. Estimativa dos gastos em saúde e educação nos últimos dez anos, caso a PEC valesse desde 2006, é ilustrativa: o orçamento da saúde em 2016 foi de R$102 bilhões; com a PEC seria de R$65 bilhões. Na educação, ainda pior, o atual orçamento de R$103 bilhões seria de R$31 bilhões, um terço.

No caso dos salários, estudo realizado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) aponta que, se a PEC valesse desde 1998, o salário mínimo seria hoje de R$400, menos da metade do seu valor de R$880. Basta fazer os cálculos de como será daqui a 20 anos, período de vigência da lei proposta. A política de reajuste do salário mínimo, instrumento de distribuição de renda no último período, será sepultada.

O artigo 104 da PEC, apresentado como emenda, prevê expressamente o veto a aumentos salariais acima da inflação, além do congelamento do salário de servidores, em circunstâncias do não cumprimento do teto. Um verdadeiro descalabro.

O argumento utilizado por Temer –repetido à exaustão na mídia por gente como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardenberg e outros do mesmo clube– é que é preciso conter a dívida pública, tratada como o grande problema nacional. A proporção da dívida em relação ao PIB, crescente no Brasil desde 2014, é hoje de 66,2%.

Nos Estados Unidos, esta proporção é de 104%, na União Européia de 90% e, mesmo na austera Alemanha alcança 71%, acima da brasileira. Nenhum desses países e regiões resolveu congelar investimentos por 20 anos. Não há notícia no mundo de uma medida draconiana desta natureza, ainda menos como cláusula constitucional.

Só num país totalmente capturado pelos bancos e rentistas uma medida como essa seria possível. A relação da PEC com os interesses da casa grande é bem simples de compreender. Vejamos.

É de se supor a retomada do crescimento econômico no país em algum momento durante os próximos 20 anos. Com o crescimento, aumenta a arrecadação. Mas, como o orçamento estará obrigatoriamente congelado pela PEC, esse aumento não poderá ser destinado a investimentos sociais. Para onde irá, então? Para a parte da despesa não afetada pelo teto: o pagamento de juros da dívida pública ao capital financeiro. Ou seja, toda receita pública resultante do crescimento da economia será apropriada para remunerar bancos e demais detentores dos títulos do Estado, com o argumento de redução da dívida pública.

O "Novo Regime Fiscal", apelido da PEC, é na verdade um novo apartheid social. O abismo da concentração de renda vai se ampliar. Os trabalhadores que ousaram melhorar de vida e exigir o acesso a serviços públicos serão atirados de volta à senzala. Como disse sem pudores o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP): "Quem não tem dinheiro, não faz universidade". E emendou: "os meus filhos têm e vão fazer".

Assim será pelos próximos 20 anos, independentemente de quem esteja no governo. Nas próximas quatro eleições presidenciais, se aprovada a lei, os brasileiros não poderão escolher outro projeto, a não ser que três quintos do Congresso o resolvam. Um presidente que não foi eleito define a política econômica para os próximos quatro que o povo venha a eleger. E o voto de mais 50 milhões de pessoas terá de ser homologado por 308 deputados. Alguém ainda se atreverá a chamar isso de democracia?

Aos paneleiros dos Jardins, meus parabéns. Chegaram aonde queriam. Quem nas periferias aplaudiu ou permaneceu em sua indiferença, é hora de acordar, não? E antes que seja tarde demais.

A PEC terá segunda votação na Câmara e depois irá ao Senado. Se não for barrada por ampla mobilização popular, o sonho de milhões de brasileiros ficará congelado pelos próximos 20 anos

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Entenda o que está em jogo com a PEC 241





Proposta apresentada pelo governo Temer quer congelar gastos com saúde, educação e assistência social por 20 anos

O que é a PEC 241?

A Proposta de Emenda Constitucional 241, também chamada de PEC do Teto de Gastos, tem como objetivo limitar despesas com saúde, educação, assistência social e Previdência, por exemplo, pelos próximos 20 anos.

Enviada em junho pela equipe de Michel Temer à Câmara dos Deputados, a proposta institui o Novo Regime Fiscal, que prevê que tais gastos não poderão crescer acima da inflação acumulada no ano anterior.

Autor da medida, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, classificou a PEC 241 de “dura” e admitiu o propósito de limitar os gastos com saúde e educação, que atualmente são vinculados à evolução da arrecadação federal.

Tais vinculações expressam conquistas sociais garantidas na Constituição Federal de 1988 com o objetivo de priorizar e preservar o gasto público nessas áreas fundamentais, independentemente do governo que estivesse no poder.

Quais são as críticas à PEC 241?

Ao colocar um limite para os gastos da União pelas próximas duas décadas, a PEC 241 institucionaliza um ajuste fiscal permanente e ignora uma eventual melhora da situação econômica do País. De acordo com a proposta, a regra que estabelece o teto de gastos a partir da correção da inflação não poderá ser alterada antes do décimo ano de vigência.

O prazo final dessa política de austeridade se completaria em 20 anos. Dessa forma, o Novo Regime Fiscal proposto pelo governo Temer retira da sociedade e do Parlamento a prerrogativa de moldar o orçamento destinado a essas áreas, que só poderá crescer conforme a variação da inflação.

O que o governo argumenta ao propor a PEC 241?

Para Meirelles, a raiz do problema fiscal do Brasil é o crescimento elevado do gasto público, que, segundo ele, é incompatível com o crescimento da Receita.

Em debate na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado na terça-feira 4, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, disse que o congelamento dos gastos permitirá que o“mercado” tenha expectativas melhores em relação ao Brasil, elevando investimentos privados e contribuindo para o crescimento econômico.

A melhoria da educação e da saúde, no entanto, é elemento básico do desenvolvimento. Ao defender a PEC 241, Meirelles afirma, ainda, que limitar o gasto público vai ajudar a conter o crescimento da dívida pública. Segundo o Banco Central, a dívida pública brasileira chegou a 66,2% do PIB em 2015.

O governo ignora, porém, que não há unanimidade sobre o que seria um patamar seguro para a dívida pública no mundo. Existem países com uma dívida menor que a brasileira (Argentina, 56% do PIB em 2015; e Chile, 14%), mas há também países mais desenvolvidos com dívidas maiores (Espanha, 99% do PIB; EUA, 106%; e Japão, 248%).

Proibir aumento real da despesa pública por vinte anos é uma decisão genocida

Adriano Pilatti

Proibir aumento real da despesa pública por vinte anos, sem crescimento zero da taxa de natalidade, equivale a suprimir uma geração, atrofiar os serviços públicos, denegar acesso à nutrição, ao saneamento, à segurança, à justiça, à cultura e outros bens da vida. É uma decisão genocida, tão cruel quanto desvincular os benefícios previdenciários do reajuste do salário mínimo, o que nada mais significa do que condenar aposentados e pensionistas à indigência, à doença, à humilhação e à morte.

Assanhados como há meio século atrás, os donos do dinheiro patrocinam uma ensurdecedora campanha midiático-patronal para impor as invenções tétricas de Henrique Mengelles por meio de seus paus mandados nos três poderes. Repetem mil vezes a mentira do apocalipse, sem dizer que haverá fatalmente aumento real da arrecadação, e que o excedente ficará assim livre para ser carreado para a agiotagem, ou para ser torrado em renúncias fiscais. Também não dizem que o déficit que se pretende reduzir, cortando a carne e os ossos de gente pobre, de crianças pobres, não inclui a conta de juros (!), quatro ou cinco vezes maior do que aquele.

Há alternativas, sim: uma delas é a revisão da estrutura tributária pornográfica em que ricos e milionários pagam uma mixaria, enquanto trabalhadores e profissionais liberais pagam demais. Para se ter uma ideia, em 2013, os 71 mil contribuintes mais ricos (e, por isso mesmo, mais poderosos), com rendimentos mensais superiores a 160 salários mínimos, abocanharam 14% da renda total declarada – cerca de R$ 298 bilhões. Mas omesmo e cruel imposto de renda que toma de 7,5% a 27,5% dos pobres ou remediados mortais é zero (zero!) quando se trata de lucros e dividendos, ou seja, a maior parte dos rendimentos dos mais ricos. Em 2013, dos R$ 298 bilhões abocanhados pelos 71 mil mais ricos, R$ 200 bi pagaram zero de imposto, zero!

Esse favor foi feito aos milionários por Fernando Henrique e o Congresso de então, e tem sido mantido pelos respectivos sucessores, petistas incluídos. Um favor obsceno e raríssimo: no âmbito dos outros 34 países da OCDE, só a Estônia faz o mesmo. O resultado disso é que, não pagando imposto de renda sobre a maior parte de seus rendimentos, os grandes capitalistas pagam em média o correspondente a 6,5% de sua renda total, um percentual menor do que o suportado pelos que ganham entre R$ 1.903,99 e R$ 2.826,65 mensais, e já pagam 7,5%.

Tudo isso sem falar no impacto maior dos impostos indiretos sobre o consumo básico dos pobres e da classe média, das renúncias fiscais em favor dos grandes grupos amigos do rei, da recusa em tributar grandes fortunas, em tributar progressivamente as grandes heranças e os mega-rendimentos etc. Tem de haver aumento de imposto, sim: para os privilegiados que nunca pagaram ou pagam de menos.

Os White Walkers estão no poder, acreditando-se invencíveis no curto prazo e, por isso mesmo, tentam impor imediatamente as maldades que só interessam aos seus podres apetites, por meio da contrapartida a eles proporcionada pelo presidente fake e sua indizível “base” congressual em troca da “legitimação” que receberam deles. É a hora da xepa do andar de cima, o sinistro “é hoje só” dos magnatas – que mais uma vez manipulam as classes médias (e não só) para faze-las defender os privilégios deles, e só deles. É preciso deter esse tsunami de retrocessos, custe o que custar.

Adriano Pilatti é Professor de Direito Constitucional da PUC-Rio

sábado, 8 de outubro de 2016

A PEC 241 é um retrocesso civilizacional.

Por Patrus Ananias

A facção governista da Câmara dos Deputados encaminha-se para favorecer uma vez mais, na próxima semana, os interesses antipopulares, antibrasileiros e, ainda, interesses antidemocráticos que estão determinando, nos meses mais recentes, a pauta e o calendário do Legislativo. 

Ouvimos aliados do governo Temer no Congresso repetirem, com enorme insistência e vigor, que o Brasil tem pressa e que, por isso, querem votar já, entre outras propostas, a PEC 241 – que, se aprovada, congelará o país por 20 anos; desmontará a saúde, a educação, a assistência social, a agricultura, a Constituição, o estado democrático de direito e o estado brasileiro. 

Eles dizem que a PEC vai reduzir o desemprego. Não vai, não. É falácia. A vigência da 241 aumentará o desemprego.

É o caso de perguntar: pressa pra quê e pra quem? O que está evitando o debate sério e aprofundado sobre os terríveis impactos que terá a aprovação da PEC 241 é a pressa dos ricos, a pressa para servir aos donos do dinheiro, para adorar o bezerro de ouro, para submeter o Brasil aos interesses do grande capital, dos colonizadores que, interna e externamente, propõem, reclamam e até exigem ajustes contrários aos interesses nacionais.

Agora, os governistas querem aprovar nesta próxima segunda-feira, no plenário da Câmara, o parecer que impuseram ontem (6) na Comissão Especial e que, para o mal do povo e do país, agrava os efeitos dramáticos que a vigência da PEC 241 produzirá, sobretudo, para a vida dos mais pobres. 

A pressa leva a reboque uma nova e deplorável notícia para os brasileiros e as brasileiras: a tropa governista conseguiu a façanha – dificílima, mas não surpreendente – de piorar o projeto original agravando as restrições já propostas para os gastos e os investimentos públicos. 

Todos somos a favor do equilíbrio fiscal. Mas o que está se fazendo com a PEC 241 é jogar a criança fora com a água do banho. Não estamos discutindo o interesse nacional; estamos discutindo o interesse do grande capital, especialmente do capital financeiro, dos banqueiros e de seus coligados.

Isto está claríssimo. E, se restasse alguma dúvida a alguém sobre os grandes interessados pela PEC 241, o noticiário dos últimos dias seria suficiente para esclarecer. As maiores confederações empresariais do país estão bancando campanha publicitária pela aprovação da PEC e, informa a mídia, se articularam com Michel Temer para pressionar diretamente os parlamentares a garantirem os votos necessários para a proposta. 

Eis aí uma parceria gravemente ameaçadora aos pobres e ao Brasil. 

* Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG).