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terça-feira, 16 de abril de 2019

Quem tem medo de Paulo Freire?

Por Sérgio Haddad, no site Outras Palavras:

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha de S.Paulo, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião. 

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país. 

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática. 

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar. 

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor. 

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório daComissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”. 

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório. 

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos — tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça –, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma. 

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas. 

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte. 


Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais. 

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais. 

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no PSOL).

Seus livros se espalharam pelo mundo. Pedagogia do Oprimido ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado. 

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire. 

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada. 

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos. 

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria. 

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso. 

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro. 

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político. 

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta. 

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado. 

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses. 

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro O Caminho se Faz Caminhando, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”. 

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em Pedagogia da Indignação. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?” 

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em Política e Educação Popular, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”. 

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.

Viviane Mosé: Vivemos um abismo civilizatório

sábado, 6 de abril de 2019

Previdência: Uma mentira e um erro

Por Luiz Carlos Bresser-Pereira

A proposta do governo de capitalização na emenda da Previdência constitui grave ameaça a um direito humano fundamental que as sociedades civilizadas garantem: o direito a uma velhice digna. Ontem e anteontem, em suas declarações à imprensa e depois na Câmara dos Deputados, o ministro Paulo Guedes deixou claro que a proposta de capitalização do governo não tem apenas um sentido fiscal (apesar de ser esta a justificação oferecida para a reforma) e não tem como consequência “apenas” liquidar gradualmente com os sistema de Previdência Pública no Brasil. Visa também reduzir os encargos trabalhistas das empresas às custas do aumento do desemprego de todos aqueles que já estiverem empregados no dia em que essa emenda eventualmente entrar em vigor. 

Os sistemas de previdência pública garantem uma velhice digna ao assegurarem uma aposentadoria (ou uma pensão) cujo mínimo seja proporcional à remuneração e à contribuição do segurado nos últimos anos antes da aposentadoria ou pensão, limitado esse mínimo por um teto de um determinado número de salários mínimos. Evita-se, assim, que alguém que ganha mais do que um salário mínimo tenha uma forte diminuição no seu padrão de vida ao se aposentar, estabelecendo-se, porém, um teto para não tornar o sistema caro demais. Para quem ganha até seis salários mínimos, sua aposentadoria é proporcional ao seu salário. Acima disso a aposentadoria será no valor do teto previdenciário, que no Brasil é de cerca de seis salários mínimos.

O sistema de capitalização é adequado como sistema complementar à previdência pública, mas incompatível com a previdência pública, porque tira dela sua caraterística essencial: garantir uma velhice digna. A capitalização envolve sempre uma diminuição senão a extinção do teto previdenciário. No caso da proposta do governo, a pessoa que “escolher” a capitalização terá apenas um salário mínimo como teto previdenciário. O resto fica por conta da empresa privada que escolheu para administrar suas contribuições previdenciárias; a pessoa dependerá, portanto, de quanto o respectivo fundo render, podendo ser zero se a empresa quebrar. 

Na emenda do governo cada pessoa pode ou não optar pelo sistema de capitalização, mas na prática não haverá escolha. Como ficarão isentas da contribuição empresarial, as empresas empregarão apenas pessoas que tenham optado. 

Isto, que já estava razoavelmente claro, ficou claríssimo com as recentes declarações do ministro. Seu modelo é o do instituído no Chile, em 1981, pelo general Pinochet – um modelo desastroso para os trabalhadores chilenos, a grande maioria dos quais foi reduzido à condição de pobreza quando se aposentaram. Conforme ele disse ao Valor Econômico (3.4.19) haverá “um boom de empregos para os jovens de 16 e 17 anos”, porque as empresas lhes darão preferência. Preferência em relação a quem? A todos os demais trabalhadores do sistema antigo que ficarão, assim, em desvantagem competitiva.

Não nos enganemos, o ministro Paulo Guedes está levando adiante uma batalha contra os pobres e os trabalhadores em nome dos ricos. A reforma da Previdência – principalmente a definição de idade mínima para a aposentadoria – é essencial para ajustar as contas públicas. Mas a proposta de capitalização embutida nela deixa claro que para o governo beneficiar as empresas em prejuízo dos trabalhadores é tão importante senão mais do que garantir o equilíbrio fiscal. Ora, há aí uma mentira e um erro. Uma mentira porque não se está contando aos brasileiros qual é o outro objetivo da capitalização. Um erro, porque afinal também os ricos serão perdedores.



O capitalismo não está baseado apenas no conflito de classes mas também na cooperação e nos acordos políticos. Para que haja desenvolvimento as empresas competentes precisam de uma taxa de lucros satisfatória que as motive a investir – não precisam que o governo lhes garanta privilégios às custas dos direitos humanos. Uma nação não tem condições de se desenvolver – não se torna forte e coesa para competir no plano internacional – quando seu governo não hesita em destruir uma instituição fundamental de solidariedade social como é a Previdência Pública.

Repercussão da viagem de Bolsonaro a Israel

A reforma da previdência e o fim da seguridade social

O Governo de Jair Bolsonaro (PSL) segue com suas ameaças as conquistas sociais, tudo isso fica mais evidente ao propor a PEC 06/2019 que impõe mudanças drásticas a previdência social, chamando-a de “nova previdência”.

De “Nova” nada tem uma proposta que na verdade representa a volta ao passado, onde direitos para classe trabalhadora não passavam de meros sonhos a serem almejados, rasgando garantia à previdência e a seguridade social conquistados a duras penas na Constituição Cidadã de 1988.

Confira na integra o artigo do camponês e advogado popular Claudeilton Luiz, uma analise da nova PEC e suas propostas anti populares, anti direitos e anti seguridade social.
A reforma da previdência é o fim da seguridade social

A Previdência Social é fruto de um processo histórico de luta e materialização dos direitos fundamentais para os trabalhadores e trabalhadoras, atualmente a previdência é responsável pela distribuição de renda e garantia da justiça social em diversos municípios, contribui significativamente para redução das desigualdades e, portanto, a efetividade da dignidade da pessoa humana, principio central do Estado Democrático de Direitos.

Visando acabar com a previdência social e solidaria para agradar os grandes grupos econômicos, no dia 20 de fevereiro de 2019, o Governo Federal apresentou a proposta de Reforma da Previdência, a PEC 06/2019, a qual está denominado de “Nova Previdência”.

Tal proposta traz como principais alterações a idade para aposentadoria, contribuição rural, idade mínima para o segurado do Regime Público da Previdência Social, benefícios pagos inferior ao salário mínimo e sem correção pelo índice de infração, capitalização da previdência que altera completamente o seu caráter social e solidário hoje constitucionalizado.

Hoje a previdência social tornou-se responsável pela maior política de distribuição de renda do país, proporcionando a garantia da qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras.


Além de ser o principal fator de dinamização da economia de centenas de municípios no País, aparecendo no contexto nacional como fator de diminuição da pobreza e colaboração com a justiça social.

Essa reforma da previdência é algo muito gravoso ao trabalhador, ela altera todo o sistema hoje vigente no Brasil, que perpassa pela assistência social, previdência e saúde, abaixo será destacado pontos específicos que serão alterados com a reforma da previdência.
Principais alterações da proposta de emenda a constituição — PEC 06/2019
Capitalização

Hoje a seguridade social é compreendida como um conjunto integrado de ações dos poderes públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relacionados a previdência social, assistência social e saúde, e, é financiada por toda a sociedade de forma direta e indireta, conforme determina a Constituição de 1988.

A previdência social é organizada por meio de uma base diversificada de contribuições obrigatórias e financiada por várias receitas, sendo essas vinculadas a um único caixa, dentre as contribuições destaca-se as contribuições dos empregados e empregadores, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Confins), Contribuição sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos, Programa de Integração Social (PIS), que financia o Seguro-Desemprego e contribuição de 2.1% sobre o valor da comercialização do agricultor.

O que está se propondo com a tal da “ Nova Previdência” conforme determinada pelo Bolsonaro, é o fim da seguridade social, o fim do pacto social garantido pela Constituição de 1988.


Em outras palavras a proposta de reforma desconstitucionaliza a previdência social, retirando o papel do Estado de administrar e cumprir parte do financiamento, dessa forma, coloca na mão do mercado financeiro a administração da maior riqueza social desse Pais que é a Previdência Social.

Essa proposta acaba com obrigatoriedade de contribuição do empregador, com a participação do Estado e somente o trabalhador e a trabalhadora passarão a contribuí para uma conta individual que será administrado pelo banco privado, e esse banco ainda cobrará uma taxa administrativa que geralmente é bastante alta e usará seu dinheiro para fazer investimentos, isso é muito perigoso e causará problemas sérios num futuro não muito distante.

A proposta de capitalização pode ser compreendida como o fim da previdência pública, solidaria e social no Brasil, e assim acelerar os apetites do capital financeiro por meio da privatização de forma cruel e impiedosa, e assim impedir que o trabalhador e a trabalhadora tenham acesso a aposentadoria na velhice.

Essa proposta atinge todo o sistema da previdência, não se trata de categorias específicas, é mudança geral para piorar a vida do trabalhador.
O que muda para os trabalhadores/as rurais?

Pelas regras atuais da previdência os trabalhadores/as rurais precisam obrigatoriamente comprovar 15 anos de atividade rural para ter acesso a aposentadoria, as mulheres se aposentam aos 55 anos e os homens se aposentam aos 60 anos.


Com a reforma a idade mínima para a trabalhadora se aposentar passará de 55 para 60 anos, 5 anos a mais e terá uma contribuição em dinheiro durante o período de 20 anos, a contribuição será de R$ 600,00/Ano.

Para o homem a idade mínima permanece com 60 anos, porem terá que contribuir diretamente, ou seja pagar durante 20 anos R$ 600,00 para poder ter o direito de acesso a aposentadoria.

Pelas regras atuais os agricultores são assegurados especiais e contribuem de forma indireta com a previdência social e diretamente com 2,1 % da venda do excedente da produção, pelo outro lado cumpre um papel fundamental na sociedade que é produzir alimentos para a alimentar o povo brasileiro.

Dessa forma fica perceptível que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 06/2019) vai adiar ou até mesmo acabar com o direito à aposentadoria dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais, pois esses nem sempre poderão pagar ao INSS, condição indispensável para ter direito a aposentadoria conforme determina a proposta de reforma.


Essa proposta estabelece que homens e mulheres terão que contribuir por 20 anos, mesmo independente de conseguir garantir a produção necessária para o consumo e comercialização do excedente.

Em síntese a reforma da previdência fará com que você trabalhe mais, contribuía mais e ganhe menos. Os que conseguir ganhar, pois para os agricultores e agricultoras se torna impossível ter que contribuir diretamente em dinheiro o valor de R$ 600,00 durante 20 anos, na grande maioria das realidades é dizer que não haverá mais aposentadoria para o trabalhador e trabalhadora do campo.
E para o servidor público, como fica?

O Governo Bolsonaro foi cruel e impiedoso com o servidor público, a PEC 06/2019, a proposta de reforma atinge profundamente os servidores públicos, em todas dimensões da União, Estados e Municípios serão alcançados e todos os trabalhadores e trabalhadoras serão penalizados.


As regras hoje vigentes estabelecem que os homens se aposentam com 60 anos e com no mínimo, 35 anos de contribuição e as mulheres com 55 anos e 30 de contribuição. Ambos recebem 100% do benefício.

Com a proposta de reforma a idade mínima passa ser estabelecida de 65 anos para homens e 62 anos para as mulheres, como também se estabelece um tempo mínimo de contribuição de 25 anos, para que os servidores possam ter acesso a 60% do salário benefício.

Para poder receber o valor integral do salário benefício os servidores terão de contribuir por pelo menos 40 anos, conforme conteúdo definido na proposta de reforma encaminhada ao congresso, como também são estabelecidas novas percentagens de alíquotas de arrecadação do servidor.
Como fica os benefícios sociais?
Benefício de prestação continuada?

Com a reforma o BPC (Benefício de Prestação Continuada) poderá ser acessado a partir de 60 anos no valor de R$ 400,00, que progressivamente irá subir até chegar a 1 salário mínimo quando o beneficiário completar 70 anos de idade, isso mesmo, só a partir de 70 anos terá direito ao equivalente ao salário mínimo.


Não custa lembrar que a expectativa de vida em alguns Estados é justamente de 70 anos, logo esse ponto da reforma acaba com o sonho das famílias que estão em situação de miserabilidade receber o benéfico no valor de um salário mínimo.

Esse é um benéfico pago a quem tem renda de até ¼ (um quarto) do salário mínimo. Para os mais empobrecidos e miseráveis a reforma é violenta e colocará muitos idosos em situação insustentável de vida, é a verdadeira degradação da vida humana.
Pensão por morte

A regra a atual estabelece que os reajustes sejam vinculados ao salário mínimo e com reposição da inflação e a pensão é paga integralmente as viúvas/viúvos. É permitido a acumulação de aposentadorias e pensões.


Como fica com a proposta de reforma, os reajustes não serão mais seguidos do salário mínimo, ou seja, será desvinculado, deixando, portanto, de ser uma garantia constitucional, e não terá mais reposição da inflação.

Quem tiver direito a pensão receberá apenas 50% do valor do benefício, mais 10% do que o trabalhador ou trabalhadora tinha direito, mais 10% por cada dependente. Ou seja, os filhos menores de idade têm direito a 10% cada, até completar 100%, logo cada trabalhador ou trabalhadora tem de ter deixado no mínimo quatro filhos para que o viúvo/viúva tenha direito a receber o salário completo, a mesquinhez é tamanha que quando um filho atingir a maioridade ou falecer, a sua cota será subtraída.

Outro ponto de relevante preocupação da PEC 06/2019 é que a mesma, deixa brechas que serão resolvidas por meio de lei complementar, que exige apenas uma maioria absoluta no congresso e não precisa se submeter a maioria qualificada das duas casas em dois turnos como acontece com a proposta de Emenda Constitucional.

A reforma da previdência proposta pelo Governo de Bolsonaro, é sem dúvida a política de rebaixamento dos direitos adquiridos pelos trabalhadores e trabalhadoras, dessa forma o governo atende à demanda do mercado truculento, bruto e desumano que visa sangrar o trabalhador até o último suspiro, pois essa reforma impõe condições que jamais poderá ser alcançado pelos trabalhadores.


Não há dúvida que se trata de uma reforma perversa que acabará com os benefícios sociais que são fundamentais para a justiça social, acredito que nem deveria ser chamado de reforma, pois é o fim, a destruição da previdência social que provocará a maior onda de precarização da do trabalhador e trabalhadora rural e urbano.

Por fim, destaco a violência que é cometida ao não reconhecer a diversidade de realidades existentes no Brasil, que reflete inclusive na expectativa vida com grande diferenças regionais, hoje a média de vida no Brasil é de 76 anos, no entanto existe Estado (Maranhão) com expectativa de 70 anos, e outros Estados (Santa Catarina) com expectativa de 79 anos, logo, estabelecer uma idade mínima para todos é uma violência e fere o princípio da isonomia, que ressalta que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais na medida de suas desigualdades.

*Claudeilton Luiz é camponês, advogado popular e militante do MPA.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Boris Fausto e o golpe de 64: “É impossível ir contra fatos estabelecidos”

Historiador diz que as Forças Armadas nunca reconheceram os aspectos mais negativos do regime militar e que não havia ameaça imediata de implantação de um regime comunista

THIAGO DOMENIC
O historiador e cientista político Boris Fausto, 88 anos, é autor de estudos clássicos sobre a história do Brasil e foi professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Em entrevista à Pública, ele diz que não havia “ameaça imediata de implantação de um regime comunista” nas vésperas do golpe militar que completa 55 anos na próxima segunda-feira. Segundo ele, as afirmações mais recentes de Jair Bolsonaro sobre a ditadura não são uma “reinterpretação”, mas a “negação de fatos” comprovados na historiografia em documentos, testemunhos e reconhecimento do estado brasileiro dos crimes cometidos no período de exceção (1964 a 1985). Fausto, que também é membro da Academia Brasileira de Ciências, vê o cenário futuro com preocupação. “Andei falando antes das eleições que estávamos na corda bamba, na beira do abismo e não vejo muitas razões para mudar essa sensação. É triste”.


Pergunta. O presidente Jair Bolsonaro disse que as Forças Armadas podem comemorar 1964. O porta-voz da presidência justificou que o presidente não considera que houve um golpe militar, mas uma reação apoiada pela sociedade contra uma alegada ameaça comunista. Qual sua avaliação como historiador?

Resposta. Ele [Bolsonaro] vai contra as evidências. A história comporta sempre muitas interpretações na dependência da época em que se escreve e na dependência da opinião de quem escreve. Agora, é impossível negar os fatos. É impossível ir contra fatos estabelecidos. E, no caso de 1964, houve a interrupção de um mandato de um presidente legítimo, houve cassação de deputados, houve perseguições de toda ordem, houve violências. Então, não se trata de uma reinterpretação, se trata de negar fatos e isso não faz sentido.

P. Mas isso não é preocupante vindo de um presidente da República, negar fatos que, de várias maneiras, levaram pessoas a morrer sob tortura, desaparecimentos?

R. É preocupante embora não seja surpreendente. Conhecendo a carreira, o histórico do presidente eleito, não há nada de surpreendente que ele queira comemorar o golpe de 1964. Ele tem feito coisas nessa linha, tem se pronunciado nessa linha. Não há surpresa mas é uma pena que isso ocorra.

P. Muitos argumentos usam a ameaça do comunismo para o golpe naquele período. Até pra gente estabelecer questões históricas, afinal de contas, o Brasil estava à beira do comunismo em 1964?

R. Vamos tentar discriminar essa questão. É preciso considerar essa época de uma forma diferente dos dias de hoje. Nós estávamos em plena Guerra Fria, existia Cuba com a vitória de uma revolução que seguiu para um certo tipo, digamos, de socialismo autoritário. Então, é nesse contexto que a gente pode entender a preocupação de setores militares. Ameaça imediata de implantação de um regime comunista não havia. O que havia era uma situação de divisão do país, de uma radicalização, às vezes, era efetiva, às vezes, era mais verbal do que efetiva. Agora, evitar essa situação por um golpe que durou 20 e tantos anos, aí as coisas pesam de um modo diferente na balança. Se houvesse uma convicção de que era preciso enfrentar, sim, uma situação muito difícil mas preservar de qualquer forma as instituições democráticas a gente não teria chegado ao ponto que chegou, e, enfim, com o fechamento que foi grave em 64 e se tornou gravíssimo em 68 e resultando num período triste, difícil da nossa história.

P. Ainda desse ponto de vista da historiografia, não é incomum ver declarações que dizem que a história tem sido contada com matiz ideológico socialista. O presidente já falou a respeito, o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, publicou mensagens em que afirma que a ditadura militar é mal retratada pelos livros didáticos. Também o general da reserva Aléssio Ribeiro Souto já declarou que “os livros de história que não tragam a verdade sobre 64 precisam ser eliminados”. Estamos passando por uma tentativa de revisionismo? Em que medida o revisionismo se torna perigoso para o registro dos acontecimentos históricos?

R. Que há uma tentativa de revisionismo, não há dúvida. As Forças Armadas nunca reconheceram os aspectos mais negativos de 1964, nunca fizeram uma análise de um ponto de vista em que fosse ressaltada as violências, a quebra da ordem democrática, uma quebra até dos padrões de convivência dentro do país. Na medida em que isso ocorre e com a chegada desse governo de direita, sob certos aspectos, de extrema direita, entende-se que essa revisão que vinha forte no meio militar ocorra também, digamos, no setor da direita como um todo. Isso é muito ruim porque transforma um episódio de violência, de ruptura do regime democrático, num episódio que pareceria uma espécie de salvação nacional. Não existe dúvida que há um entendimento de revisão no governo de tudo que ocorreu em 1964 e nos anos seguintes.

P. Tem gente que chama de golpe, gente que chama de movimento, gente que chama de revolução. Com base na tua pesquisa como historiador como o senhor define o período?

R. Tendo a chamar mais de ditadura. O que não quer dizer que a minha interpretação dos fatos tenha se alterado. É evidente para qualquer pessoa que se disponha a estudar esse período que a ditadura de 1964 não é uma quartelada. Acho que ninguém diz mais isso. Saiu dos quartéis, surpreendeu os civis e eles se instalaram numa situação de absoluta força. O que quero dizer é que, nas condições de divisão da sociedade brasileira, tal como estava e nas condições de insatisfação de determinados setores, não estou falando só de setores da elite, mas também de uma ampla classe média, o golpe contou com uma mobilização importante. Isso legitima. E na medida que os anos se seguiram foram os anos do milagre etc, das altas taxas de crescimento, esse prestígio durou. É importante assinalar esse aspecto. Até para entender a durabilidade do regime que não se deve apenas à força. Agora, quando você vê a supressão das liberdades, a violência, a limpeza no Parlamento, as prisões de toda ordem, a perseguição de dirigentes sindicais, não há dúvida que se trata de um golpe. É um golpe com parte de mobilização popular mas a natureza de golpe predomina.

P. Em nota enviada sobre as “comemorações” do 31 de março, o general Azevedo, ministro da Defesa, e os comandantes das Forças Armadas, destacam que a intervenção militar ocorreu com o apoio da população e citam a Marcha por Deus e a Família. O senhor considera que de fato o golpe foi apoiado pela população? Até que ponto a Marcha pode ser vista como representativa do conjunto da sociedade?

R. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade mostrou que o golpe tinha um lastro social significativo no meio urbano, em setores da classe média e da classe alta. Mas daí a falar em “movimento representativo do conjunto da sociedade” vai uma enorme distância. A divisão social era evidente, mesmo no seio das Forças Armadas. Basta lembrar o número de expulsões e violências na instituição militar, logo após o golpe.

P. Analisando agora os tempos recentes, há paralelos na história republicana brasileira de algo parecido com esse conjunto de forças que fazem a composição do Governo Bolsonaro?

R. Não vejo. É uma situação absolutamente inusitada e uma situação que produz espanto.

P. O que produz mais espanto ao senhor?

R. Muitas coisas.

P. No terreno dos costumes?

R. Iniciativas retrógradas que colocam o Brasil a não sei quantos decênios para trás. Aliás, de uma forma muito tosca, muito retrógrada mesmo, numa sociedade que avançou muito no terreno dos costumes. Mas que também tem um setor ponderável que se firmou muito numa tradição hoje superada, fora até do entendimento histórico. Aliás, isso ficou muito claro desde antes da vitória do Bolsonaro. Aí não tem surpresa nenhuma. Mas é um recuo que é uma coisa bastante triste.

P. O senhor classificou que é um governo de direita e em certos aspectos de extrema direita. O senhor consegue me dizer qual é essa direita que hoje está no poder?

R. Primeiro, é uma direita com raízes internacionais. Essa direita tem horror a globalização como processo mas ela própria é uma direita globalizada. E essa direita não é igual em todos os lugares. Em cada região ou até em cada país, há um elemento que é mais característico desse avanço. Se você pegar a Europa, é a xenofobia, fator que potencializa essa direita, que dá um lastro a essa direita. A gente sabe qual é a força da xenofobia, a gente conhece os movimentos totalitários ou autoritários do século XX e sabe que esse é um elemento mobilizador muito forte. Num país como o Brasil, para chegar até nós, a xenofobia não existe com essa força da Europa. Não é esse o elemento central. O elemento central é: a questão dos costumes, de uma sociedade muito dividida nesse ponto. A meu ver a questão de gênero, da identidade feminina, que tem nos setores masculinos e não só neles, um impacto muito forte que é preciso considerar. Isso tudo deu muito lastro a uma direita nacional. O ódio ao PT, de que “PT nunca mais”, e é preciso entender isso também. E o quarto fator é o medo e a impotência da população diante da criminalidade. São caldos para o avanço dessa direita.

P. Na sua visão, a questão do feminismo aglutina uma direita contrária ao movimento de mulheres?

R. Sim. A verdade é que há perda do poder, um cisma do poder do macho, seja no interior da família, seja nas relações de trabalho, e essa ideia de que a subordinação da mulher está sendo quebrada – e está sendo quebrada mesmo – tem um impacto muito grande para essa direita. E não é à toa que Bolsonaro saiu na frente bem na faixa masculina da população e levou muito tempo para alcançar uma votação quase equilibrada no setor feminino da sociedade.

P. Gostaria que o senhor fizesse uma análise desse perfil militar no governo.

R. Só observação preliminar. É por isso que a revisão pelos militares do que ocorreu em 1964 e nos anos seguintes seria muito importante. Eles não fizeram essa revisão. Ao contrário do que aconteceu na Argentina, Chile etc. Há algumas diferenças que são significativas, como o fato de que esse grupo militar que assumiu o poder, não assumiu sozinho, mas tem um peso muito grande. E esse peso tende a crescer, porque eles não são loucos e eles enfrentam loucos de todo o tipo. Esse grupo não tem, como tinha em 1964, interesse em interromper um processo formal democrático. E nem mesmo, pelo menos até aqui, tem impedido a liberdade de expressão. Os arreganhos a liberdade de expressão tem ocorrido por parte de setores ligados ao presidente, a própria presidência, aos seus filhos, Olavo de Carvalho e companhia bela. Ataques específicos à Folha de S.Paulo e coisas assim… Nesse quadro, acho que há uma diferença grande com 1964 e há, de fato, um setor militar que está disposto a manter o regime democrático e as liberdades. Está disposto, mas não a qualquer preço. Acho que se você tem uma situação de desordem, de um caos muito grande na sociedade essa linha pode mudar, porque creio, de modo geral, que a posição militar é assim: a ordem vem antes da democracia. Democracia tudo bem, mas se a democracia, no entender deles, estiver comprometendo a ordem, eles não impedirão medidas de exceção. Mas esse não é o quadro de hoje, de jeito nenhum. Tem-se que entender isso se não você entra numa posição de estar em bloco contra tudo e isso não leva a nada ou leva a coisas piores.

P. A sensação é que de 2013 para cá as questões políticas e sociais se agudizaram muito. O que o senhor acha?

R.Sim, acho que as coisas se enrolaram cada vez mais. Para alguém que tenha frieza e não viva no Brasil e está meio distanciado, o que acontece aqui é inusitado, causa muito espanto. Agora, nós estamos vivendo desde 2013 anos inteiramente alucinantes.

P. Historiador gosta mais do passado mas o cenário futuro o senhor vê com que perspectiva?

R. Com bastante preocupação. Com preocupação do mundo, eu diria. E olha que, em geral, sou otimista. Andei falando antes das eleições que estávamos na corda bamba, na beira do abismo e não vejo muitas razões para mudar essa sensação. É triste. Eu já falei várias vezes essa palavra triste e não por acaso, mas porque até para a vida cotidiana você ver problemas muito grandes dentro de nós não é bom, em todos os sentidos. Mas vamos lá, tem-se que viver.

O retorno ao passado que nunca existiu

Somente a política pode articular um esforço global reconhecendo a realidade comum de uma espécie que precisa se unir além das fronteiras

ELIANE BRUM

Nos últimos dias, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, determinou, como um ato de governo, as Forças Armadas celebrar o golpe de 1964, que lançou uma ditadura militar de 21 anos marcado por sequestros, tortura e assassinato de civis Seu chanceler, Ernesto Araújo, defendeu que "o nazismo é um fenômeno da esquerda". A falsificação do passado como projeto governamental transforma o Brasil na vitrine radical de um fenômeno mais amplo. Do Brexit ao trumpismo, o debate do presente abandonou o horizonte do futuro para se dedicar a passados ​​que nunca existiram.

A quantidade de delírio calculado dos governos ultra-direitistas que se expandem ao redor do mundo é óbvia. Mas há algo mais profundo, que é precisamente o que permite desenhos animados como Donald Trump e Bolsonaro ficar muito adesão: a dificuldade de imaginar um futuro onde possamos viver atingiu níveis sem precedentes, porque pela primeira vez amanhã se anuncia como catástrofe . Não como uma possível catástrofe, como no período da Guerra Fria e da bomba atômica. Mas como uma catástrofe difícil de evitar, já que é quase certo que a Terra aqueça pelo menos dois graus centígrados.

O sentimento de nenhum futuro tem o efeito subjetivo de inventar os antigos que poderiam ser devolvidos. Os bretões que votaram no Brexit acreditam que podem retornar a uma Inglaterra poderosa sem imigrantes. Brancos americanos acreditam no fundo que Trump pode retornar uma América onde os negros eram passivos subordinados a eles e como eles, cada coisa estava no lugar e todo mundo poderia viver sabendo que lugar fez tudo. Eleitores em Bolsonaro negam qualquer tortura e assassinatos por agentes do Estado durante a ditadura, ou justificar, porque eles preferem a acreditar que viver em um país onde não havia "ordem" e "segurança" -e "a família é apenas uma homem com uma mulher "- e pode voltar a viver nele.

Esse passado simplista e tenso nunca existiu em nenhum dos exemplos, ou em outros que se espalharam pelo mundo. Mas, talvez, diante de um desafio tão grande quanto a crise climática, um falso passado e um inimigo inventado são mais tranquilizadores do que um futuro real que, sem dúvida, será muito difícil.

A tragédia é que a única maneira de evitar um futuro ainda pior é através da política. Só ela pode articular um esforço global reconhecendo a realidade comum de uma espécie que precisa se unir através das fronteiras. Infelizmente, o único instrumento para criar um futuro possível é aquele que os nacionalismos à direita e à esquerda negam com tal ódio. Quem vive no mundo real tem que se juntar aos estudantes que ocupam as ruas para exigir que os líderes globais retornem ao planeta Terra.

1964: Reportagem Especial | O golpe