Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, José Dirceu fala sobre o processo do qual foi réu, da organização da direita no Brasil e dos desafios para a esquerda
Joana Tavares,
de Belo Horizonte (MG)
Em um auditório lotado por militantes sindicais, de movimentos populares e ligados aoPartido dos Trabalhadores (PT), José Dirceu, ex-presidente do PT e réu da Ação Penal 470, apelidada pela mídia de “mensalão”, foi recebido com palmas e palavras de ordem. No dia 31 de janeiro, o PT estadual de Minas Gerais realizou um ato “em defesa do PT e dos direitos democráticos”, e também em desagravo ao ex-ministro e outros petistas condenados no Supremo Tribunal Federal (STF). Estavam presentes representantes de diversas esferas do partido (prefeitos, deputados estaduais e federais, presidente do diretório municipal, de comissões legislativas e secretarias) que expuseram, em suas falas, a visão de que o julgamento da Ação Penal 470 foi um julgamento político, que teve a intenção de condenar, na figura de seus dirigentes, o PT, sua história e projeto de governo, como um ataque de uma oposição entrincheirada em setores do Judiciário e da mídia.
Último a falar, José Dirceu denunciou os elementos inconstitucionais do processo, reforçou que a ação não terminou, defendeu sua inocência e expôs sobre as reformas necessárias para o Brasil e o povo brasileiro. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Dirceu fala sobre a direita no país, a regulação da mídia, a AP 470 e a reação do PT, além dos desafios e prioridades para a política nacional.
Brasil de Fato – Você colocou elementos na sua fala sobre o Judiciário e a mídia. Quem é a direita no Brasil hoje e como ela está se organizando?
José Dirceu – Historicamente, a direita representa classes sociais, os partidos também são representações. A coalizão de direita no Brasil hoje é a coalizão do PSDB, DEM, PPS, que se expressa numa coalizão parlamentar e em um conjunto de governos. Os setores mais organizados hoje, que acabam hegemonizando a direita, respondem mais a interesses do capital financeiro, do capital rentista e de setores do capital agrário. Quem procura dar coesão, palavras de ordem, são setores da mídia. A questão do Ministério Público e outros setores do Judiciário é que eles estão construindo uma teoria, e estão construindo instrumentos e decisões judiciais que expressam a visão dos interesses dessa direita. Isso é legítimo se é feito no Parlamento. É possível mudar o Código Penal para a direita ou para a esquerda; não é verdade que o Código Penal não tem lado. É possível fazer uma lei de reforma agrária para de fato fazê-la ou uma lei que termine concentrando terra. Mas não é isso. Eles estão de certa maneira usurpando, procurando transferir esse poder para parcelas do Judiciário. Não diria que isso é uma corrente majoritária, porque ainda está em disputa.
Sobre o papel da mídia, você falou da importância de comunicar com o povo, da necessidade de um marco regulatório. Mas nesses 10 anos de governo não teria sido possível avançar no sentido de fortalecer uma imprensa alternativa, ou ter um projeto de comunicação mais robusto do próprio Partido dos Trabalhadores?
Se nós conseguirmos aprovar uma legislação que permita isso sim, mas nós não temos maioria no Congresso; todos sabemos disso. E o poder Executivo tem instrumentos limitados, por isso se fala em regulação. A regulação, como acontece nos outros países, é aprovada no Parlamento, ou por referendos. Por exemplo, foi aprovada a regulação de obras audiovisuais, há uma agência reguladora, que é a Ancine, que tem um fundo de R$ 1,2 bilhão, que defende a produção regional, a produção independente e estabelece regras e limites, inclusive impede o controle do capital estrangeiro em alguns setores. Isso é regulação, como é também estabelecer limite de horário, idade, classificação. Há inclusive regulação de conteúdo, como a regulação de propaganda de bebida, como tem a possibilidade de regular a propaganda de certos alimentos. Isso nós queremos.
Outra questão é desenvolver uma imprensa. Para rádio e televisão, precisa de concessão, mas para a imprensa escrita, não. Você abre uma empresa e edita um jornal, uma revista. Isso depende da capacidade de organização das forças políticas de esquerda e populares, ou setores da sociedade comprometidos com determinados programas. A direita organizou seus meios de comunicação através de capitalistas e de empresas capitalistas. O que nós não mudamos foi a forma de dar concessão, o direito de antena, uma concessão mais pluralista. Nós podíamos ter feito mais. Nós do PT, já que eu sou do PT, como também nossos governos. Mas isso não é a questão fundamental. Eu concordo e aceito a crítica que nós podíamos avançar mais, mas sempre é preciso lembrar que para mudar a lei é preciso ter expressão no Congresso Nacional.
Mas e a questão da publicidade oficial?
A publicidade do governo está regulada por leis. A minha interpretação é que nós poderíamos nos apoiar em dois artigos da Constituição – o artigo do pluralismo e o artigo do apoio à pequena empresa – para fazer uma distribuição diferenciada e não apoiada apenas na vendagem, na audiência. Nessa perspectiva nós poderíamos ter avançado mais.
Você mencionou que a Ação Penal 470 não está concluída. Quais são as perspectivas do processo?
É estarrecedor que um ex-ministro do Supremo faça um prefácio de um livro sobre o tema, sendo que a ação não terminou ainda. Isso demonstra o caráter político dela, de disputa política, de julgamento político do governo do Lula, do PT, e de certa maneira da esquerda. Eles quiseram transformar nisso essa ação e não apenas no julgamento de determinados crimes ou atos ilícitos praticados por dirigentes do PT. E não tem nada a ver com compra de voto nem com uso de dinheiro público. Está mais do que provado que eram empréstimos bancários que foram entregues ao PT, sem contabilizar, de uma forma que infringe a legislação eleitoral, e tem questões bancárias, fiscais para analisar. Mas eles transformaram no famoso ‘mensalão’ e na questão de que havia dinheiro público que foi desviado, como se nós tivéssemos tirado dinheiro do Banco do Brasil. E nem é do Banco do Brasil, é da Visanet, que não é dinheiro público, vem de 0,1% de cada movimentação de cartão de crédito, é um dinheiro para propaganda. E a propaganda foi feita, há prova de que ela foi feita, como há prova que esses recursos saíram de dois bancos para duas empresas de publicidade, e depois para o PT. Mas transformaram isso numa ação política de enfrentamento conosco, de julgamento histórico, como eles mesmos disseram: ‘o maior atentado à República e à democracia’, ‘o maior caso de corrupção da história do Brasil’, ‘o maior julgamento do século’. E isso é escandaloso, porque nós não tínhamos foro privilegiado, tinha que ser julgado por juiz natural, como aliás está acontecendo com o chamando ‘mensalão mineiro’, tucano, do PSDB. Nesse julgamento do STF, eles inovaram, violaram abertamente o devido processo legal, a presunção de inocência, o domínio do fato. Condenaram por condenar, porque tinham que condenar. Tudo isso durante quatro meses e meio. Onde já se viu a Suprema Corte parar para julgar 35 réus, sendo que só três tinham foro na Suprema Corte, e sendo transmitido pela televisão, canal aberto, o dia todo, dez minutos no noticiário todo dia no jornal de maior audiência do país, abertamente defendendo os pontos de vista da acusação, não dando o mesmo espaço à defesa.
Você acha que a esquerda e o PT responderam à altura esse ataque?
Estão respondendo, porque agora se trata também de um processo político, não se pode resolver essa questão a curto prazo, é uma questão de médio e longo prazo. Temos que ir acumulando força, e crescendo o movimento de opinião pública, na base da sociedade, apresentar nossas provas. Além de fazer os recursos, que a Constituição nos permite, os embargos declaratórios, revisão penal, apelar às cortes internacionais, que garantem a jurisdição. O juiz não pode fazer o papel de acusação no Ministério Público, assim como não se pode condenar sem provas. Vamos usar todos os recursos que temos direito.
Na sua opinião, qual seria a agenda prioritária em que os movimentos sociais e a esquerda deveriam se engajar nesse momento?
Os movimentos sociais têm que se concentrar naquilo que é prioritário para cada movimento, cada um tem suas reivindicações conforme sua posição na sociedade. O movimento sindical e o movimento pela terra – os sem-terra e outros, como a Contag - já atingiram um grau que entendem que seus programas vão além da defesa de reivindicações porque entendem que são necessárias políticas públicas, estatais, para o conjunto da sociedade, por isso defendem também mudanças na estrutura política do país. Mas a prioridade para o Brasil nesse momento é o enfrentamento dessa ofensiva da direita. A prioridade política. Sua outra faceta é uma reforma política, democrática, que pode passar por um referendo ou uma constituinte, já que o Congresso se recusa a fazer. O Senado já fez, mas fez a do voto proporcional. Aliás, aprovou o financiamento público, cláusula de barreira, voto em lista. Uma reforma que apoiamos. Tem também a necessidade de aprofundar as reformas sociais e econômicas que o país precisa, para crescer de uma maneira sustentável, com distribuição de renda, que garanta a soberania nacional e a integração sul-americana. A agenda política é essa. Lógico que a regulação da mídia é importante, a denúncia da Ação Penal 470 é importante, mas é preciso fazer uma hierarquia de prioridades. Por isso é importante uma mesa que reúna todos os movimentos e os partidos políticos de esquerda, para organizar essa agenda e organizar a luta. É preciso mais mobilização no país, minha opinião sempre foi essa.
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