Em entrevista, Lucília de Almeida Neves Delgado afirma que a memória histórica de Jango “é injusta”, e baseada no “esquecimento e na desqualificação”. Esclarecer esse período, enfatiza, “é um dever histórico”
A falta de “explicações sólidas” sobre a morte do ex-presidente João Goulart, fez dele o “político mais injustiçado da história do Brasil”, assinala Lucília de Almeida Neves Delgado em entrevista concedida à IHU On-Line, após comentar o documentário Dossiê Jango, dirigido por Paulo Henrique Fontenelle. Ao analisar o filme à luz da História, Lucília, que há anos dedica-se à pesquisa sobre os fatos políticos do período militar, enfatiza que ele “reforça exatamente a construção de mais evidências sobre o possível assassinato de João Goulart”. Segundo ela, “de todas as pessoas que se envolveram na procura de provas e evidências sobre a morte de Jango, 18 morreram. Entre elas os políticos uruguaios Zelmar Michelini e Gutierrez Ruiz, que eram amigos do Jango e estavam investigando a morte dele. Também o empresário Enrique Foch Diaz, que mais conseguiu reunir muitas informações sobre a morte de Jango e escreveu um livro intitulado Jango: um crime perfeito, faleceu pouco tempo depois de publicado o livro”. E dispara: “Ficamos pensando: o que aconteceu para que todas essas pessoas, de uma forma ou de outra, fossem falecendo? A maioria por problemas cardíacos e alguns em decorrência de acidentes de carro. São coincidências muito estranhas, e as indagações sobre a morte de Jango só aumentam”.
De acordo com Lucília, Jango poderia ter retornado ao Brasil em 1974, dois anos antes de sua morte, período em que seu processo de cassação havia expirado. “Não havia mais razão legal para que ele continuasse no exílio e excluído da vida pública nacional. Uma interpretação que tem ganhado força é a de que com a distensão do regime, seguida de possíveis pleitos eleitorais, João Goulart e outros líderes políticos do pré 1964 poderiam se candidatar a algum cargo público. Como o governo militar não assimilava seu retorno à ativa, a opção teria sido a de eliminá-los”, esclarece. E acrescenta: “havia um temor do governo de que lideranças excluídas em 1964 e que estavam no exílio voltassem para o Brasil com uma força muito grande. Esse temor era maior especialmente no caso dos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, ambos mortos em 1976”.
Para ela, a memória histórica de Jango “é injusta”, e baseada no “esquecimento e na desqualificação”. Esclarecer esse período, enfatiza, “é um dever histórico. (...) Não podemos construir uma história com sombras nebulosas, ainda mais sobre o episódio da morte de um ex-presidente, que após sua deposição amargou um exílio de mais de 12 anos”.
Lucília de Almeida Neves Delgado é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade de Brasília – UNB. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Ciências Humanas/Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É autora de, entre outros, Comando Geral dos trabalhadores no Brasil (1961-1964) (Petrópolis: Vozes, 1986); e PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964) (São Paulo: Marco Zero, 1989).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que leitura o “Dossiê Jango” apresenta sobre a história do ex-presidente Jango?
Lucília de Almeida Neves Delgado – O “Dossiê Jango” não apresenta uma nova leitura sobre a história do ex-presidente João Goulart porque as questões levantadas pelo documentário falam de um assunto que já é abordado há muitos anos, e que se tornou mais forte quando começou a se falar da Operação Condor. O filme reforça exatamente a construção de mais evidências sobre o possível assassinato de João Goulart. Os depoimentos são muito contundentes, com exceção do depoimento de Muniz Bandeira, historiador, que afirma que Jango sofreu um problema cardíaco natural. As demais pessoas que se manifestam no filme, de uma forma ou de outra, dão declarações que reforçam a possibilidade de Jango ter sido assassinado. Duas coincidências importantes, para analisar o contexto de atuação da Operação Condor, tendo Jango como foco, foram as mortes de dois políticos da Frente Ampla, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, e Carlos Lacerda, além de João Goulart. Mortes ocorridas num período inferior há um ano, de 1976 a 1977. De todas as pessoas que se envolveram na procura de provas e evidências sobre a morte de Jango, 18 morreram. Entre elas os políticos uruguaios Zelmar Michelini e Gutierrez Ruiz, que eram amigos do Jango e estavam investigando a morte dele. Também o empresário Enrique Foch Diaz, que mais conseguiu reunir muitas informações sobre a morte de Jango e escreveu um livro intitulado Jango: um crime perfeito, faleceu pouco tempo depois de publicado o livro. Diaz foi o último dos 18 a morrer. O filme também apresenta o depoimento de Mário Neira, que participou da Operação Escorpião que, segundo suas palavras, tinha como objetivo assassinar Jango. Embora essa testemunha não seja muito fidedigna, pois é um criminoso recrutado pela repressão política do Uruguai para fazer parte de suas equipes de investigação, a dúvida persiste. E ficamos pensando: o que aconteceu para que todas essas pessoas, de uma forma ou de outra, fossem falecendo? A maioria por problemas cardíacos e alguns em decorrência de acidentes de carro. São coincidências muito estranhas, e as indagações sobre a morte de Jango só aumentam.
Exumação do corpo
Há outros fatos que não têm explicações sólidas. O mais relevante diz respeito a não realização de biópsia no corpo do ex-presidente. Muitos perguntam por que a família não pediu a exumação do corpo, na verdade, a esposa dele, Maria Teresa Goulart, fez o pedido. Entretanto, um mês depois voltou atrás. A sensação que temos é de que ela sofreu uma pressão muito grande para retirar o pedido. Caso o presidente Goulart tenha morrido por causas naturais não havia razão alguma para evitar a necropsia de seu corpo. Ao contrário, seria uma ação favorável ao governo militar. Todas as dúvidas estariam resolvidas.
João Goulart foi o único presidente do Brasil que morreu no exílio. Em 1976, muito longamente, começava-se a falar em liberalização do regime. O filme mostra isso. E havia um temor do governo de que lideranças excluídas em 1964 e que estavam no exílio voltassem para o Brasil com uma força muito grande. Esse temor era maior especialmente no caso dos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek, ambos mortos em 1976.
O filme registra também, e isso é muito interessante, que em 1974, o prazo de cassação, por dez anos, dos direitos políticos de Jango, já estava superado. Portanto, não havia mais razão legal para que ele continuasse no exílio e excluído da vida pública nacional. Uma interpretação que tem ganhado força é a de que com a distensão do regime, seguida de possíveis pleitos eleitorais, João Goulart e outros líderes políticos do pré 1964 poderiam se candidatar a algum cargo público. Como o governo militar não assimilava seu retorno à ativa, a opção teria sido a de eliminá-los.
Jango poderia ter retornado ao Brasil dois anos antes da sua morte?
Na verdade, mesmo tendo passado os dez anos de sua cassação, se retornasse ao Brasil, com certeza, João Goulart seria preso. As evidências são de que os militares desconsideravam o próprio tempo de punição que estabeleceram anteriormente. Jango, inúmeras vezes, tentou negociar seu retorno ao Brasil, mas não teve êxito. Quando de sua morte não houve sequer autorização para que seu velório fosse realizado em caixão aberto. Ao contrário, o caixão estava lacrado.
Essa foi a condição estabelecida pelo governo federal para que ele pudesse ser enterrado em sua terra, São Borja (RS) e não na Argentina, onde faleceu. Tal fato reforça a ideia de que o regime militar usou de todos os recursos possíveis para fazer prevalecer uma memória de esquecimento sobre o presidente Jango. É lógico que há uma questão ideológica e estratégica nessa orientação. Creio que, no contexto de construção do esquecimento, tudo foi feito para impedir a visibilidade da imagem do presidente morto, o que poderia causar uma comoção muito grande. A visão de um corpo inerte e sem vida é forte, mas a de um rosto atrás de um pequeno vidro, por mais reverência que se tenha, não causa o mesmo impacto.
Redemocratização
A redemocratização do Brasil, embora pressionada pela sociedade civil e por expressivo movimento social, só aconteceu mediante uma negociação que garantiu uma transição pacífica. Nesse contexto os acontecimentos referentes às mortes de João Goulart e Juscelino Kubitschek foram relegados ao esquecimento. No caso da morte de Juscelino, pouco se pode fazer, pois ele faleceu num acidente de carro. Teria de se investigar se houve algum problema no carro, mas é quase impossível provar algo. No caso do Jango havia a possibilidade de fazer uma investigação porque era possível exumar o corpo para esclarecer a causa de sua morte. Mas, de uma forma ou de outra, é preciso que se busque esclarecimentos mais detalhados sobre as morte dos ex-presidentes Jango e Juscelino. Essa é uma condição essencial de registro da verdade histórica. E o direito à História é uma das condições de exercício da cidadania plena. Não podemos construir uma história com sombras nebulosas, ainda mais sobre o episódio da morte de um ex-presidente, que após sua deposição amargou um exílio de mais de 12 anos.
Se Jango de fato morreu de um problema cardíaco, por que não se fez a exumação e a biopsia?
Por que essa resistência tão grande de anos e anos para se analisar seus restos mortais? A ausência de autópsia é mais um dado que sugere que sua morte não foi natural, porque se tivesse sido natural, para o respaldo do próprio governo militar à época, deveria ter sido feita a exumação de seu corpo.
Injustiça
Jango é o político mais injustiçado da história do Brasil. Veja o caso de Juscelino: não tinham como apagar a obra dele porque a construção de uma capital da República, como Brasília, é algo extremamente palpável. Eterno. Além disso, quando foi prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais, investiu muito na chamada construção da modernidade, que tem uma representação concreta, por exemplo, na Lagoa da Pampulha. No caso de Getúlio Vargas, sua morte o fez herói e mito. Além disso, sua obra governamental foi ampla, diversificada e sólida. Abrangeu realizações políticas, econômicas, culturais e sociais, embasadas em sólida concepção nacionalista, trabalhista e desenvolvimentista. No campo social, a maior herança de Getúlio Vargas é a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Mesmo que ela tenha sido escrita em um tempo de ditadura, a importância de sua dimensão social e econômica é, por si só, suficiente para cravar a memória do ex-presidente na História Nacional Brasileira.
O João Goulart, pelo contrário, pagou um preço muito alto por suas convicções trabalhistas, reformistas e nacionalistas. Ele governou o Brasil no auge da Guerra Fria. Logo depois de Cuba ter se tornado em um país socialista. Jango tinha uma postura trabalhista, quase socialdemocrata, mas não teve tempo, nem condições para concluir obras que ficassem marcadas na história do Brasil. Mesmo assim três grandes marcos destacaram-se no seu mandato presidencial: a criação da Eletrobrás, que contribuiu para tirar o Brasil das mãos da exploração estrangeira da energia elétrica; segundo, o Estatuto do Trabalhador Rural que levou a legislação social às áreas rurais; e terceiro, a criação da Universidade de Brasília, uma universidade visionária e progressista que, no entanto, pagou um alto preço por ter sido fundada no governo Jango. Durante o regime militar a UnB sofreu contínuas pressões como: prisão de estudantes, invasão do campus universitário e demissão de professores.
Crise institucional
Em um contexto de muita polarização política, Jango enfrentou uma crise institucional permanente. Tomou posse sob pressão, pois os ministros militares do presidente Jânio Quadros, de quem era vice-presidente, usaram de todos os recursos possíveis para impedir sua posse como presidente, quando da renúncia do presidente, no ano de 1961. Goulart, governou então, durante cerca de dois anos, como presidente, em um sistema de governo parlamentarista, que lhe restringia poderes. Em janeiro de 1963, com o retorno do presidencialismo, passou a governar com todos os poderes constitucionais de um presidente da República.
Mas seu mandato continuou sobre forte pressão. Além de pressionado pelos movimentos sociais, que queriam a efetivação de reformas sociais e econômicas, as chamadas reformas de base, sofreu cotidiana oposição de empresários nacionais e internacionais, de segmentos conservadores da Igreja Católica, que temiam a instauração o comunismo no Brasil, da grande imprensa e dos grandes proprietários rurais. Ou seja, ele se viu pressionado por todo o lado. Nesse quadro de hostilidade e pressões, não conseguiu construir uma marca governamental que fosse suficientemente sólida para não ser apagada. A partir daí se construiu uma visão absolutamente injusta sobre João Goulart. Na verdade, ele foi um homem público perspicaz, muito solidário e comprometido com as causas dos mais pobres, como hoje prega o Papa Francisco.
Infelizmente a memória consolidada sobre Goulart é muito injusta, pois baseada em dois suportes: esquecimento e desqualificação. Apenas para contextualizar, viajei de férias durante as semanas de lançamento do Dossiê. Quando voltei tive uma dificuldade enorme para assistir o filme, pois além de estar sendo ofertado somente em dois cinemas de Brasília, os horários de sua apresentação eram poucos. Consegui vê-lo em uma sessão das 13:00 horas. Na sala de projeção não tinha mais do que 20 pessoas.
Como a senhora vê o trabalho da Comissão da Verdade e a possível exumação do corpo de Jango?
Há uma intenção, já declarada, da Comissão da Verdade de proceder à exumação dos restos mortais de Jango. Penso, entretanto, que graves dificuldades terão de ser enfrentadas. Uma delas refere-se ao tempo. Já se passaram mais de 36 anos de sua morte, e alguns técnicos dizem que talvez seja impossível se chegar a alguma conclusão mais definitiva sobre a causa “mortis” pelo estudo ósseo. Se assim for, a distância temporal terá contribuído para que a névoa que cobre a verdade sobre a morte de João Goulart não seja dissipada.
Quando à pesquisa, estudo, produção acadêmica e notícias da imprensa sobre o João Goulart, chego à conclusão de que foram construídas duas formas de abordagem em torno dele. Uma delas aprofunda a via do esquecimento, ou seja, tenta-se jogar Jango no limbo, anula-se a presença dele na história do país. A outra via é a da desqualificação, baseada em um discurso que ressalta suas qualidades negativas em detrimento de suas qualidades positivas. Jango pagou o preço de ser um reformista no tempo da guerra fria, quando o temor do comunismo era avassalador. Apesar de não ser comunista, não era anticomunista, pois visitou a China Popular e a União Soviética. Além disso, tinha o costume de conversar com a população mais pobre e com os sindicalistas. Baseado nesses fatos a oposição construiu um discurso ideológico, segundo ao qual, sob seu governo o Brasil ou se transformaria em um país comunista ou em uma república sindicalista. Para ela, portanto, era necessário, desestabilizá-lo, depô-lo e excluí-lo da história brasileira.
A Comissão da Verdade está buscando esclarecer essa parte da história, mas imagino que esteja sofrendo uma grande pressão. Para mim fica uma dúvida prática. Quem guarda o túmulo de João Goulart e zela pela preservação de seus restos mortais, até a definição sobre a exumação?
Como historiadora, tenho duas esperanças: a primeira é de que os historiadores por meio de pesquisas e publicações façam jus à memória de Jango. Precisamos dar conta dessa tarefa inconclusa e desafiadora. O trabalho do historiador Jorge Ferreira, que recentemente publicou uma biografia de Jango, nesse sentido, é exemplar. A segunda esperança é de que, mais cedo ou mais tarde, as circunstâncias da morte do presidente deposto em 1964 sejam esclarecidas. Por isso, a oportunidade de atuação da Comissão da Verdade é ímpar. Considero que se ela conseguir esclarecer, ao menos alguns casos simbólicos, terá cumprido um papel histórico muito relevante. Espero que a morte de Goulart seja esclarecida, como ocorreu com a de Rubens Paiva. Esse é um dever histórico.
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