Vladimir Safatle
Dilma está absolutamente certa em querer ir à ONU denunciar o golpe de Estado brasileiro. Sensibilizar a opinião pública mundial para o que está ocorrendo em nosso país é obrigação de todos os que querem uma democracia real no Brasil. Afinal, é sintomático que a imprensa mundial não tenha engolido o enredo do impeachment como prova de força da democracia brasileira, nem o enredo das "pedaladas fiscais" como crime supremo e o carnaval macabro do Congresso de Cunha como festa cívica da moralidade nacional. Tal cenário não é a expressão da consolidação democrática, mas a degradação final das ilusões políticas gestadas na Nova República.
O fato é que o mundo consegue ver o que uma boa parte da sociedade brasileira e sua imprensa monolítica não veem. Basta ler qualquer livro de realismo fantástico latino-americano para saber de onde saiu essa história de políticos corruptos procurando livrar o país da corrupção, de vice-presidentes sedentos de poder desestabilizando presidentes eleitos, de paladinos da Justiça que aplicam a lei de acordo com a conveniência do momento, de deputados homenageando torturadores em nome da democracia.
Essa teia de contradições que parecem se acomodar em uma naturalização da irracionalidade veio das páginas mais arcaicas da turbulenta história política de nosso continente. Ela é apenas a expressão de um arcaísmo que agora volta para tomar de vez as rédeas do governo.
Infelizmente, esse final farsesco já estava inscrito como uma possibilidade. Afinal, uma das maiores ilusões da Nova República foi acreditar que a redemocratização brasileira exigia de seus principais atores políticos a capacidade de tecer alianças com os setores mais arcaicos da sociedade.
Oligarcas locais que pareciam ter saído de novelas de Dias Gomes, pastores especialistas em lavagem de dinheiro, amantes de torturadores e do porrete do Exército, batedores de carteiras e medalhas, cruzados contra a "ideologia de gênero", devotos da motosserra, exportadores de carne enlatada para a África, homens brancos acostumados aos escaninhos da burocracia partidária foram cortejados por todos os que pregavam a ética da responsabilidade diante das "exigências de governabilidade".
Estes venderam a promessa de que a conciliação com tais setores era necessária para um processo lento, gradual e seguro de reformas que colocariam enfim o Brasil no compasso da modernidade. Eis a astúcia suprema dos que nos governaram nas últimas décadas: aliar-se ao atraso para garantir o progresso. O resultado está aí para o mundo inteiro admirar.
Os que defendem o impeachment discordam do cenário desenhado aqui. Eles afirmam que tudo foi feito respeitando a legalidade, que essa história de "golpe" é fruto de uma bem orquestrada ação de comunicação do governo, que há sim uma ressurreição cívica do povo brasileiro. Eles querem nos empurrar a ideia de que é justo porque está na lei, mesmo que a lei seja aplicada de maneira distorcida, por agentes animados por interesses escusos e pressionados por uma histeria midiática dada ao linchamento público de quem não comunga de sua cartilha.
No entanto, coloquem para si algumas questões. Não há tribunal algum no mundo cujo júri seja composto por cidadãos indiciados e por um juiz réu. O único lugar onde isso ocorre na galáxia é na Câmara brasileira dos Deputados com seu julgamento de impeachment. Por outro lado, se há um crime cuja gravidade é tamanha a ponto de levar ao afastamento de uma presidenta, então quem faz crimes semelhantes deve ser imediatamente afastado. Dilma será afastada pelas "pedaladas fiscais", que já foram utilizadas por 14 governadores, inclusive Alckmin e Richa. Diz a razão que eles também deveriam ser imediatamente afastados, pois cometeram crime agora compreendido como da mais alta gravidade. No entanto, isso não ocorreu nem ocorrerá porque o crime foi, na verdade, um pretexto, nada mais que isso, um simples pretexto.
Freud costumava dizer que a razão fala baixo, mas nunca se cala. Queiram ou não a história será escrita lembrando que, em 2016, o Brasil sofreu um golpe de Estado que lhe deu, de vez, as feições de um Estado oligárquico; que parte de sua população foi às ruas contra a corrupção aceitando jogar o país nas mãos do PMDB, simplesmente o partido com maior número de casos de corrupção na história da Nova República. Pode-se enganar alguns com essa história, mas não se engana o mundo inteiro.