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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Por que destruir o símbolo Lula?


Roberto Amaral 

A intenção é uma só: mandar aos trabalhadores o recado de que precisam conhecer o seu lugar e deixar de almejar o poder



Apesar de seu significado, de suas consequências e de sua brutalidade política, a tentativa de destruição eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em curso, não é a ameaça mais grave que paira sobre o futuro imediato das forças populares, mesmo porque a vida política não se reduz ao processo eleitoral e porque não existem, nesse âmbito, derrotas definitivas, nem absolutas. Basta ouvir a história.

O movimento reacionário que nos governa hoje pensando em um projeto de poder de muitos anos –à margem dos mecanismos da democracia representativa e da soberania popular – volta suas poderosas baterias (políticas, midiáticas, policiais, judiciais) apenas incidentalmente, ou taticamente, para a figura do ex-presidente e eventual candidato à Presidência, pois seu alvo verdadeiro, de vida e morte, é o símbolo Lula, com toda a sua profunda carga emocional.

Simbologia que não se reproduz senão a espaços largos de anos e em condições objetivas e subjetivas que raramente se repetem. 

O símbolo Lula é um produto social; como construção coletiva, não pertence a si mesmo. É instrumento do imaginário: é, hoje, a leitura que dele fazem seus contemporâneos. A imagem de Lula caminha para além dos limites de país, simbolizando para o mundo afirmação das possibilidades dos trabalhadores.

O processo social não conhece a autogênese. Lula, tanto quanto o partido que fundou, o Partido dos Trabalhadores (PT), são (independentemente um e outro de seus muitos erros) o fruto da acumulação das lutas sociais, são o resultado das tantas batalhas em defesa da democracia, dos conflitos sociais e de classe, são a condensação de mais de um século de conquistas sindicais reunindo, numa só herança, desde os anarquistas do início do século passado até o varguismo que a socialdemocracia de direita, da UDN de Carlos Lacerda ao tucanato de Fernando Henrique Cardoso, intenta destruir.

Ambos, Lula e o PT, são um só fruto dos avanços políticos mais consequentes do fim da ditadura militar, direitos consagrados pela Constituição de 1988 que ainda ambos, Lula e o PT, equivocadamente, se recusaram a assinar. 

O ‘risco Lula’ não se reduz ao seu notório potencial eleitoral a ameaçar os sonhos continuístas do assalto neoliberal, até porque outras alternativas haverão de ser construídas; o perigo, a ameaça, residem principalmente – e nisso está sua maior gravidade – no que o líder popular representa e simboliza para as grandes massas como exemplo de afirmação histórica da classe trabalhadora.

A destruição política de Lula, ainda que necessária para o projeto de regressão ao passado, é perseguida pelos algozes de hoje (muitos deles aliados de ontem) como instrumento de destruição da expectativa, prelibada, de os trabalhadores conquistarem o poder e o exercerem diretamente, isto é, sem a clássica e corriqueira delegação a um representante da classe dominante.

No caso concreto, duas imagens precisam ser derruídas: a do operário transformado em político vitorioso e a do Lula presidente, isto é, de um governante de raro sucesso. Esta é a tarefa urgente, mas não é tudo – pois o projeto da classe dominante é quebrar as veleidades auto-afirmativas da classe trabalhadora. Trocando em miúdos, os trabalhadores precisam conhecer o seu lugar. Este é o recado que nos mandam.

Certa feita, ainda presidente da República, Lula se auto-qualificou pela negativa, isto é, como ‘não de esquerda’. Ignorava ele que personagem histórico não ocupa, necessariamente, o papel que se escolhe, mas aquele que, consoante suas circunstâncias e as contingências históricas, lhe é dado desempenhar num determinado momento.

Assim, independentemente de sua vontade e da vontade de seus adversários de classe, Lula, hoje, não apenas atua no campo da esquerda como é, a um tempo, o mais importante líder desse segmento político e o mais importante líder popular em atuação. E é isto o que conta para a crônica de sua condenação. 

Muitas vezes, na política, e estamos em face de um caso concreto, o personagem histórico se aparta de sua trajetória pessoal, linear, e passa a viver uma nova vida no imaginário popular: ele é ou passa a ser o que simboliza perante as massas. Tiradentes é o ‘protomártir da Independência’, a princesa Isabel ficou nos manuais da história do Brasil como ‘a redentora’, Deodoro como ‘o proclamador da República’.

Getúlio Vargas superou o papel de chefe da revolução de 30 ou de ditador para ser recepcionado pela história como o pai da legislação trabalhista, o pai dos pobres e herói nacionalista. Assim foi chorado pelas massas órfãs, ensandecidas, desarvoradas com o choque de seu suicídio. Os símbolos são a argamassa da política.

Voltando: o que Lula representa hoje, além de uma razoável expectativa de poder? No plano simbólico ele nos diz, ditando lição subversiva, que o homem do povo pode chegar à presidência da República sem precisar atravessar a margem do rio onde só se banham os donos do poder; subvertendo a ‘ordem natural das coisas’, ele nos diz que o povo pode pretender escrever sua própria história.

Isto é intolerável em sociedade que, desde sua origem – da oligarquia rural aos rentistas do capitalismo moderno –, se organizou segundo a disjuntiva casa-grande e senzala, células incomunicantes, cujos personagens têm, 'por natural', papéis definidos e próprios que não se podem confundir: de um lado os mandantes, de outro, os mandados, de um lado os senhores de direitos, de outro os portadores de deveres e obrigações. De um lado o capital, de outro o trabalho, seu servidor. A díade imutável de nossa monótona história.

Pela primeira vez na República um trabalhador, operário de macacão e mãos sujas de graxa, se fez líder trabalhista e presidente. Não se trata mais de um quadro da classe dominante operando a mediação entre capital e trabalho, como Getúlio, como Jango conduzindo as massas e dialogando em seu nome com a classe dominante, como um dos seus. Com Lula as massas se expressam, pela vez primeira, sem a intermediação do populismo. E isso não é pouco.

Pela primeira vez os trabalhadores, majoritariamente, se identificam com um partido criado e liderado por um dos seus. Não são mais pingentes de partidos da estrutura clássica que generosamente abrem espaços para a manifestação dos quadros da classe média, que neles podem atuar defendendo os interesses dos dominados: nem é mais o PTB, nem são mais os Arraes ou os Brizolas que falam pelos trabalhadores.

Nem são mais os comunistas do capitão Prestes, ou os intelectuais de esquerda que traíram sua origem de classe para se aliar aos trabalhadores, às grandes massas dos excluídos, aos deserdados da terra, para lembrar Frantz Fanon.

E isso não é pouco.

Nesse mundo dividido entre desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre centro e periferia, entre mandantes e mandados, não cabe aos de baixo levantar a cabeça, pensar em riqueza e desenvolvimento, senão tão-só assistir aos banquetes dos poderosos e sonhar que sempre lhes sobrarão migalhas. 

Nesse mundo conflagrado, no mundo da recessão, no reino do neoliberalismo, neste país conformado com a injustiça social e praticante das desigualdades, de renda e de toda ordem, a ascensão das massas, a revelação de sua capacidade organizativa e a construção de uma liderança própria constituem, aos olhos da casa-grande, péssimo e perigoso exemplo. Precedente que os donos do poder não querem ver repetido, e para evitá-lo tudo farão. Sem medir meios.

Assim se explica o empenho em que se aplica a oligarquia governante visando a destruir essa liderança que fugiu ao seu controle, no intento de impedir que outras, tão ousadas, lhes sigam as pegadas e o mau exemplo. É preciso, pois, desconstituir a boa memória de seu governo e destruir sua honra.

É preciso destruir o líder e ao mesmo tempo, desestimulando-a, vacinando-a contra ‘aventuras’ futuras, quebrar o ânimo da classe trabalhadora. Nesta tarefa todos estão empenhados, para dizer a essas massas, que Lula não passa de um mito, que seu partido não passa de uma fraude a ser exorcizada, que essa experiência foi na verdade um rotundo fracasso, uma mentira, uma lenda.

A classe trabalhadora, mais uma vez vencida, diz-nos a oligarquia dos proprietários, terminará por aprender uma velha lição: não está em suas posses conduzir as próprias rédeas. Volte, pois, para o chão de fábrica.

Enfim, a reação autoritária pretende ensinar à classe trabalhadora que seu papel é subalterno ao do capital e que ela tem de se conformar em ser caudatária da classe dominante. 

Resta-nos aceitar passivamente a depredação, ou resistir com toda a veemência – e não apenas, claro está, em nome da integridade física e moral do indivíduo Lula; menos ainda para livrá-lo (e seu partido) do julgamento da história a que todas as lideranças políticas devem, ao fim e ao cabo, estar submetidas. Mas para preservar um patrimônio que nos ajudará a atravessar a noite da restauração conservadora, brutal, impiedosa, despida de todo escrúpulo, e já iniciada.

O símbolo é um patrimônio coletivo. 


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