O esperado fim de 2016 não permitiu nem ao menos dois dias de contentamento com o novo ano. O massacre de 56 detentos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, chocou a todos e trouxe à tona mais uma vez a realidade do sistema prisional brasileiro. Tão chocante quanto a chacina foram as reações públicas a ela, com destaque para Michel Temer e José Melo, governador do Amazonas.
O primeiro foi incapaz de dar sequer uma declaração de solidariedade aos familiares das vítimas. O governador, por seu lado, não se contentou com o silêncio e abriu a boca para dizer que entre os mortos "não havia nenhum santo". Santo é ele, que está sob o risco de perder o mandato no TSE por acusação de compra de votos com dinheiro público na última eleição e de usar a Polícia Militar para intimidar eleitores em seu favor.
A chacina de Manaus, lamentavelmente, não é um ponto fora da curva. Nada teve de imprevisível e é muito provável que tenhamos episódios semelhantes no próximo período. A guerra entre facções é na verdade um subproduto cruel do atual sistema penitenciário, regido pela lógica de encarceramento em massa.
Segundo dados do próprio Ministério da Justiça, o Brasil possui a quarta população carcerária do mundo, com mais de seiscentos mil presos. O crescimento tem sido avassalador: em 1990, havia 90 mil presos; em 2014 o número subiu para 607 mil e a previsão é que chegue a 1 milhão em 2022. O perfil dos encarcerados é o mesmo dos acometidos pelo extermínio policial: a juventude negra e pobre. Dois de cada três detentos é negro e mais da metade possui de 18 a 29 anos.
Ninguém razoável imagina que ter mais presos diminua a violência na sociedade. Jogar pessoas indiscriminadamente em cárceres superlotados e com condições indignas só aprofunda o ciclo da violência, como mostram os elevados índices de reincidência criminal. Mesmo assim, temos um Poder Judiciário cada vez mais punitivo. O próprio STF, que se mostrou consternado com o massacre, decidiu recentemente a favor de prisão após julgamento na segunda instância, o que agravará ainda mais o problema.
Cerca de 40% da população carcerária, 240 mil pessoas, são presos provisórios, ou seja, permanecem presos sem sequer ter tido julgamento em primeira instância. As vozes cada vez mais relevantes que corretamente apontam a ameaça ao Estado de Direito com a recente escalada de punitivismo judicial e o abuso das prisões provisórias não podem, no entanto, esquecerem-se de que para esta massa carcerária o Estado de Direito sempre foi uma ficção. 240 mil pessoas presas sem julgamento e, em geral, por crimes leves é uma excrescência que envergonharia qualquer ditadura.
Os mesmos que defendem o Estado Mínimo com a PEC 55 e a retirada de direitos sociais não têm pudor algum de exigi-lo máximo, quando se trata de enjaular os desvalidos. A política de encarceramento em massa é de fato uma política de contenção social com forte viés de classe.
Não custa lembrar ainda, aos que venham propor como solução a privatização das cadeias, que o presídio do massacre em Manaus é gerido pela iniciativa privada. Aliás, peritos de órgão ligado ao próprio Ministério da Justiça afirmaram que a gestão privada facilitou as condições para o massacre.
É preciso colocar em debate o punitivismo judicial e a naturalização do regime fechado. Crimes leves devem ter penas leves. Cerca de um terço dos presos responde por pequenos furtos ou roubos. É preciso colocar em debate a insana "guerra às drogas", motivada muito mais por disputa de mercado do que por preocupação com a saúde pública. 27% dos presos brasileiros respondem por tráfico.
O juiz amazonense Luís Carlos Valois, que acompanhou a chacina do Anísio Jobim, foi um dos poucos que tiveram a coragem de por o dedo neste ferida. O resultado foi um inquérito que tenta associá-lo covardemente ao tráfico de drogas. Agora, após uma reportagem irresponsável do jornal "O Estado de S. Paulo" nesta mesma direção, passou a ser ameaçado de morte. Isso apenas revela que questões como o punitivismo e a guerra às drogas são tratadas como intocáveis tabus em nossa sociedade.
Mantê-las assim continuará custando vidas.
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