Nos próximos dias 7, 8 e 9 de novembro, o Sesc Pompeia abrigará um simpósio internacional intitulado "Os Fins da Democracia: Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca pela Soberania Popular".
Resultado de uma associação entre a Universidade da Califórnia - Berkeley e a Universidade de São Paulo, através de seu Departamento de Filosofia, o seminário é fruto das ações de um consórcio internacional composto por acadêmicos dos mais diversos países (EUA, Brasil, Chile, Turquia, França, Argentina, Alemanha, Itália, entre outros) dispostos a discutir e pensar temas centrais para a compreensão dos desafios imanentes a nossas sociedades contemporâneas.
O evento é um exemplo bem sucedido de recusa da universidade em se acomodar à condição de "gueto de luxo" (e não foi por outra razão que decidimos levar o simpósio para fora do campus da USP) e de internacionalização da universidade brasileira.
No entanto, neste exato momento, circula uma petição para o cancelamento do simpósio, assinada por centenas de milhares de pessoas (além de vários robôs, como é de praxe). O motivo principal é a presença de Judith Butler entre os organizadores. Notem que a petição não conclama a manifestação na porta do Sesc, ela pede o puro e simples cancelamento do evento.
Entre os signatários e estimuladores estão vários movimentos que se dizem "liberais". Bem, para um país onde, até pouco tempo, era possível ser liberal e escravocrata, não é estranho descobrir liberais que não levam a sério princípios elementares de liberdade de expressão e pensamento. Mais uma prova de que "liberal brasileiro" é como, segundo Marx (não Karl, mas Groucho), "inteligência militar": uma contradição em termos.
Mas por que Judith Butler não deveria falar? Por acaso ela elogiou torturador, afirmou que só não estuprava uma mulher porque ela não merecia, justificou terrorismo de Estado ou comparou negros a animais que se pesam por arroba? Não, até porque nada disso é realmente um problema para os assinantes de tal petição.
O problema é ela discutir a naturalidade de identidades de gênero, lembrar —à sua maneira—, que a anatomia não é o destino, auxiliar a mudança de percepção social em relação àqueles que não encontram lugar em um binarismo estrito.
Agora, nossas famílias serão destruídas (como se elas não se destruíssem sozinhas), nossas crianças serão pervertidas (como se as crianças já não fossem, como lembrava Freud, perversos polimorfos) e teremos que conviver com pessoas que não temerão afirmar suas formas de gozo (suprema afronta).
A primeira reação diante de tal disparate foi ver nela uma clássica manobra diversionista.
Todos esses grupos e indivíduos saíram às ruas para "protestar contra a corrupção" e prometer um país em franco crescimento, reconciliado com os "mercados" após o impeachment do antigo governo.
E eis que no dia em que Temer, governando sob os escombros da pauperização social, escapava de seu segundo processo graças à compra de votos no Congresso Nacional, todos eles se mobilizam novamente para... pedir o cancelamento de uma palestra de Judith Butler. Fantástico, não?
Ou seja, diante da clara expressão de terem levado o Brasil a um embuste, de terem zombado do povo brasileiro quando gritavam contra a corrupção, eles agora procuram se associar à nata do conservadorismo religioso para jogar uma cortina de fumaça e apontar o dedo contra intelectuais e artistas.
Mas então veio a segunda reação, pois, mesmo que o diversionismo seja real, ele não explica tudo.
De fato, uma sociedade na qual sujeitos não se submetem mais ao controle de suas expressões de gozo e de identidade, uma sociedade na qual a visibilidade dos corpos e do desejo não se dobra mais à culpa tem algo de intolerável para alguns.
A consciência da contingência de nossas normas sociais e a quebra da ilusão de que a natureza fundamenta nossas formas de vida: não é este o início de toda liberdade efetiva?
Nesse sentido, estas pessoas sabem muito bem o que fazem. Pois elas sabem que a paralisia da força de transformação nos modos de existência é a chave para a preservação das estruturas macroinstitucionais, mesmo que estas estejam degradadas.
De toda forma, gostaria de aproveitar essa oportunidade e agradecer a eles, do fundo do coração. O que mais poderíamos querer como prova da pertinência de discutir "os fins da democracia" do que uma manifestação, vinda dos setores mais obscurantistas da sociedade e suas redes internacionais, contra a própria realização de nosso simpósio?
Aqueles que se compraziam em dizer que a universidade vive de costas para a sociedade, que ela perdeu toda a relevância e é habitada por nefelibatas, deveriam nuançar suas avaliações.
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