Total de visualizações de página

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018


Lucas Rubio, presidente do Centro de Estudos da Política Songun - Brasil, foi entrevistado pela TV Comunitária do Rio de Janeiro. Ele visitou a Coreia do Norte em setembro e explica didaticamente a história e a realidade atual do país socialista.

Via:https://achistorico.blogspot.com/

domingo, 30 de dezembro de 2018

Direita pode estar montando provocações

Por Gilberto Maringoni

São preocupantes as informações de que um suposto grupo terrorista teria anunciado um atentado durante a posse de Jair Bolsonaro, em 1o. de janeiro, em Brasília. As informações se originariam dos próprios responsáveis. É algo somente plausível em seriados da RKO dos anos 1940: uma gang alardeia aos quatro ventos que fará uma ação surpresa em local e data determinadas.

A isso se soma notícia, divulgada na noite de sábado, de que a futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves (titular da pasta da Goiabeira), estaria "sofrendo ameaças nas redes sociais há uma semana e que está conversando com a Polícia Federal", conforme informa o UOL.

O portal ainda relata - sem maiores detalhes - que "no último dia 27, a PF abriu um inquérito para investigar uma suposta ameaça ao presidente eleito na posse, marcada para a próxima terça-feira. A autoria é do mesmo grupo que agora ameaça Damares, que se define como terrorista e reivindicou ter colocado uma bomba em uma igreja em Brazlândia, região administrativa do Distrito Federal, na madrugada de Natal, sem sucesso".

Sabe-se que as forças de segurança estão montando verdadeira operação de guerra para a cerimônia desta terça, incluindo-se aí a permissão para abater "aeronaves suspeitas".

Jair Bolsonaro vem criando, desde sua eleição, um clima de tensão crescente na conjuntura. Ora isso se dá através de ameaças escancaradas aos "vermelhos", "petralhas" e "esquerdistas" em geral, ora tudo vem embalado em mensagens aparentemente casuais (como a utilizada na camiseta de sua esposa, dias atrás) ou em tentativas de chantagem aberta (a exemplo do que o siderado futuro chanceler fez a Celso Amorim).

As supostas ameaças ao presidente e à Ministra da Goiabeira são vagas e imprecisas. Têm todo o cheiro de provocação de grupos de direita, com o objetivo de acirrar ânimos de forma artificial e justificar algum tipo de repressão. Até aqui não se sabe se os tais grupos teriam alguma proximidade com setores da nova gestão.

É preciso ficar alerta. Os porões da ditadura e celerados de extrema-direita têm tradição de montar ataques violentos na tentativa de acusar a esquerda e setores progressistas. Vale sempre lembrar dos atentados no Riocentro (1981), ao jornal O Estado de S. paulo (1968) e à tentativa de explosão do Gasômetro, no Rio (1968). Inicialmente atribuídos à esquerda, comprovou-se depois terem sido planejados e executados por gente das Forças Armadas.

Os anos perdidos

Por Tereza Cruvinel, no Jornal do Brasil:

O ano que se finda ainda será muito revisitado para ser compreendido. 

Nele, constatamos que o fundo do poço pode sempre ser mais escavado. 

A autoflagelação destrutiva iniciada em 2013, e os desatinos dos anos seguintes, resultaram na opção eleitoral pelo projeto extremista que começa a ser implantado com a posse de Bolsonaro.

E com isso começa o ciclo político que substituirá o da Nova República, iniciado em janeiro de 1985 com a eleição de Tancredo Neves e coroado com a Constituinte, legado que o Brasil e suas elites não souberam aprimorar. Não se pode falar de 2018 sem olhar também para os cinco anos anteriores.

Em 2013, nossas elites políticas não entenderam as manifestações “contra tudo e todos”, especialmente o PT, que governava, e o PSDB, maior força de oposição. 

Partiram para o confronto eleitoral sangrento em 2014, com a nascente Lava Jato adubando a polarização. 

No futuro, alcançou outros partidos mas naquela hora, só demonizou o PT. Dilma errou na campanha, omitindo o verdadeiro estado da economia e das contas públicas. Liderado por Aécio Neves, o PSDB não errou menos. Não aceitou a derrota, embarcou na sabotagem ao governo e jurou que Dilma não governaria.

Em 2015 ela tentava corrigir erros econômicos mas o Congresso sabotava seus esforços. 

A recessão deu as caras. O fogo da Lava Jato se espalhou, jogando a política na lama. 

Desesperados, os políticos buscavam um bote salva-vidas. 

Para a estancar a sangria, “a solução é o Michel”, disse o senador Jucá, pregando o acordão “com Supremo e tudo”. A palavra impeachment saltou de suas bocas para as ruas. Dilma foi deposta numa sessão de horrores, comandada por Cunha, com Bolsonaro homenageando o torturador Brilhante Ustra.

E vieram os anos perdidos com Temer, de mais recessão, desemprego e corrupção, moendo os partidos que deram o golpe do impeachment. 

Não sobrava ninguém. Afinal, prometeram que tirando o PT do governo tudo iria melhorar, e piorou. 

Parecia o fundo do poço, mas a saída viria em 2018 com a eleição de um presidente legítimo.

O ano começou com rebeliões nos presídios e as facções criminosas mostrando força. 

A violência pipocou, o carnaval foi sangrento num Rio acéfalo. Temer fez então sua “jogada de mestre”, com a intervenção federal. Apesar da rejeição, sonhou com a reeleição. Em março, a brutal execução de Marielle Franco informou que forças malignas sentiam-se liberadas. A intervenção chega ao fim melancolicamente.

Em abril, Lula foi preso. 

A demolição política chegava ao ápice com a prisão do líder mais popular do país, após uma condenação de fundamentos duvidosos, pelo juiz que agora será ministro. Começou a peleja do PT para fazê-lo candidato.

Em maio a greve dos caminhoneiros parou o país e o Temer deu um show de vacilação. 

Mandou tropas para as estradas mas rendeu-se oferecendo o subsídio ao diesel que acaba amanhã. 

E agora, farão greve sob Bolsonaro?

Vem a campanha. 

Lula é líder nas pesquisas e Bolsonaro posa de candidato anti-sistema. 

Promete guerra aos bandidos e aos corruptos, liberar as armas, varrer o PT e a esquerda, governar sem partidos. 

Prega a valorização da família e dos bons costumes, enquanto deprecia mulheres, gays, negros e índios. 

Uma sociedade conservadora sai do armário em seu apoio, para espanto do Brasil envernizado. 

A esquerda racha e a direita liberal também. Alckmin é um candidato fraco mas o PSDB não tem outro. 

Em agosto a candidatura de Lula é barrada e o PT lança Haddad com atraso. 

A transferência de votos começa a funcionar mas, em setembro, Bolsonaro é esfaqueado, e tudo muda. 

Vitimizado, poupado dos debates, vai ao segundo turno e derrota Haddad. A disputa é suja, com o disparo eletrônico de calúnias contra o petista. Ainda em combate, inclui a imprensa entre os inimigos.

Sua equipe é de duvidosa competência para enfrentar os desafios que tem pela frente. 

Venceu porque as elites políticas foram incapazes de construir o consenso mínimo para evitar o pior. 

O voo incerto vai começar. Apertemos os cintos.

Democracias também são mortas em silêncio

Por Boaventura de Sousa Santos, no site Outras Palavras:

Habituamo-nos a pensar que os regimes políticos se dividem em dois grandes tipos: democracia e ditadura. Depois da queda do Muro de Berlim em 1989, a democracia (liberal) passou a ser quase consensualmente considerada como o único regime político legítimo. Pese embora a diversidade interna de cada um, são dois tipos antagônicos, não podem coexistir na mesma sociedade, e a opção por um ou outro envolve sempre luta política que implica a ruptura com a legalidade existente. Ao longo do século passado foi-se consolidando a ideia de que as democracias só colapsavam por via da interrupção brusca e quase sempre violenta da legalidade constitucional, através de golpes de Estado dirigidos por militares ou civis com o objectivo de impor a ditadura.

Esta narrativa, era em grande medida, verdadeira. Não o é mais. Continuam a ser possíveis rupturas violentas e golpes de Estado, mas é cada vez mais evidente que os perigos que a democracia hoje corre são outros, e decorrem paradoxalmente do normal funcionamento das instituições democráticas. As forças políticas anti-democráticas vão-se infiltrando dentro do regime democrático, vão-no capturando, descaracterizando-o, de maneira mais ou menos disfarçada e gradual, dentro da legalidade e sem alterações constitucionais, até que em dado momento o regime político vigente, sem ter formalmente deixado de ser uma democracia, surge como totalmente esvaziado de conteúdo democrático, tanto no que respeita à vida das pessoas como das organizações políticas. Umas e outras passam a comportar-se como se vivessem em ditadura. Menciono a seguir os quatro principais componentes deste processo.

A eleição de autocratas


Dos EUA às Filipinas, da Turquia à Rússia, da Hungria à Polónia têm vindo a ser eleitos democraticamente políticos autoritários que, embora sejam produto do establisment político e econômico, apresentam-se como anti-sistema e anti-política, insultam os adversários que consideram corruptos e veem como inimigos a eliminar, rejeitam as regras de jogo democrático, fazem apelos intimidatórios à resolução dos problemas sociais por via da violência, mostram desprezo pela liberdade de imprensa e propõem-se revogar as leis que garantem os direitos sociais dos trabalhadores e das populações discriminadas por via etno-racial, sexual, ou religião. Em suma, apresentam-se a eleições com uma ideologia anti-democrática e, mesmo assim, conseguem obter a maioria dos votos. Políticos autocráticos sempre existiram. O que é novo é a frequência com que estão a chegar ao poder.

O vírus plutocrata


O modo como o dinheiro tem vindo a descaracterizar os processos eleitorais e as deliberações democráticas é alarmante. Ao ponto de se dever questionar se, em muitas situações, as eleições são livres e limpas e se os decisores políticos são movidos por convicções ou pelo dinheiro que recebem. A democracia liberal assenta na ideia de que os cidadãos têm condições de aceder a uma opinião pública informada e, com base nela, eleger livremente os governantes e avaliar o seu desempenho. Para que isso seja minimamente possível, é necessário que o mercado das ideias políticas (ou seja, dos valores que não têm preço, porque são convicções) esteja totalmente separado do mercado dos bens econômicos (ou seja, dos valores que têm preço e nessa base se compram e vendem). Em tempos recentes, estes dois mercados têm-se fundido sob a égide do mercado econômico, a tal ponto que hoje, em política, tudo se compra e tudo se vende. A corrupção tornou-se endêmica. O financiamento das campanhas eleitorais de partidos ou de candidatos, os grupos de pressão (ou lobbies) junto dos parlamentos e governos têm hoje em muitos países um poder decisivo na vida política. Em 2010, o Tribunal Supremo dos EUA, na decisão Citizens United v. Federal Election Commission, desferiu um golpe faltal na democracia norte-americana ao permitir o financiamento irrestrito e privado das eleições e decisões políticas por parte de grandes empresas e de super-ricos. Desenvolveu-se assim o chamado dark money, que não é outra coisa senão corrupção legalizada. É esse mesmo dark money que explica no Brasil uma composição do Congresso dominada pelas bancadas da bala, da bíblia e do boi, uma caricatura cruel da sociedade brasileira.

As fake news e os algoritmos


A internet e as redes sociais que ela tornou possível foram durante algum tempo vistas como possibilitando uma expansão sem precedentes da participação cidadã na democracia. Hoje, à luz do que se passa nos EUA e no Brasil, podemos dizer que elas serão as coveiras da democracia, se não forem reguladas. Refiro-me em especial a dois instrumentos. As notícias falsas sempre existiram em sociedades atravessadas por fortes clivagens e, sobretudo, em períodos de rivalidade política. Hoje, porém, é alarmante o seu potencial destrutivo através da desinformação e da mentira que espalham. Isto é sobretudo grave em países como a Índia e o Brasil, em que as redes sociais, sobretudo o Whatsapp (o conteúdo menos controlável por ser encriptado), são amplamente usadas, a ponto de serem a grande, ou mesmo a única, fonte de informação dos cidadãos (no Brasil, 120 milhões usam o Whatsapp). Grupos de investigação brasileiros denunciaram no New York Times (17 de Outubro) que das 50 imagens mais divulgadas (virais) dos 347 grupos públicos do Whatsapp em apoio de Bolsonaro só quatro eram verdadeiras. Uma das imagens falsas era uma foto da Dilma Rousseff, candidata ao Senado, com o Fidel Castro na Revolução Cubana. Tratava-se, de fato, de uma montagem feita a partir do registo de John Duprey para o jornal NY Daily News em 1959. Nesse ano Dilma Rousseff era uma criança de 11 anos. Apoiado por grandes empresas internacionais e por serviços de contra-inteligência militar nacionais e estrangeiros, a campanha de Bolsonaro constitui uma monstruosa montagem de mentiras a que dificilmente sobreviverá a democracia brasileira.

Este efeito destrutivo é potenciado por outro instrumento: o algoritmo. Este termo, de origem árabe, designa o cálculo matemático que permite definir prioridades e tomar decisões rápidas a partir de grandes séries de dados (big data) e de variáveis tendo em vista certos resultados (o sucesso numa empresa ou numa eleição). Apesar da sua aparência neutra e objetiva, o algoritmo contém opiniões subjetivas (o que é ter êxito? Como se define o melhor candidato?) que permanecem ocultas nos cálculos. Quando as empresas são intimadas a revelar os critérios, defendem-se com o segredo empresarial. No campo político, o algoritmo permite retroalimentar e ampliar a divulgação de um tema que está em alta nas redes e que, por isso, o algoritmo considera ser relevante porque popular.

Acontece que o que está em alta pode ser produto de uma gigantesca manipulação informacional levada a cabo por redes de robôs e de perfis automatizados que difundem a milhões de pessoas notícias falsas e comentários a favor ou contra um candidato, tornando o tema artificialmente popular e assim ganhar ainda mais destaque por via do algoritmo. Este não tem condições para distinguir o verdadeiro do falso e o efeito é tanto mais destrutivo quanto mais vulnerável for a população à mentira. Foi assim que em 17 países se manipularam recentemente as preferências eleitorais, entre eles os EUA (a favor de Trump) e agora, no Brasil (a favor de Bolsonaro) numa proporção que pode ser fatal para a democracia. Sobreviverá a opinião pública a este tóxico informacional? Terá a informação verdadeira alguma chance de resistir a esta avalanche de falsidades? Tenho defendido que em situações de inundação o que faz mais falta é a água potável. Com a preocupação paralela a respeito da extensão da manipulação informática das nossas opiniões, gostos e decisões, a cientista de computação Cathy O’Neil designa os big data e os algoritmos como armas de destruição matemática (Weapons of Math Destruction, 2016).

A captura das instituições


O impacto das práticas autoritárias e anti-democráticas nas instituições ocorre paulatinamente. Presidentes e parlamentos eleitos pelos novos tipos de fraude (fraude 2.0) a que acabo de aludir têm o caminho aberto para instrumentalizar as instituições democráticas, e podem fazê-lo supostamente dentro da legalidade, por mais evidentes que sejam os atropelos e interpretações enviesadas da lei ou da Constituição. Em tempos recentes, o Brasil tornou-se um laboratório imenso de manipulação autoritária da legalidade. Foi esta captura que tornou possível a chegada ao segundo turno do neo-fascista Bolsonaro e a sua eventual eleição. Tal como tem acontecido noutros países, a primeira instituição a ser capturada é o sistema judicial. Por duas razões: por ser a instituição com poder político mais distante da política eleitoral e por constitucionalmente ser o órgão de soberania concebido como “árbitro neutro”. Noutra ocasião analisarei este processo de captura. O que será a democracia brasileira se esta captura se concretizar, seguida das outras que ela tornará possível? Será ainda uma democracia?

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A perversa cordialidade e o caos destrutivo

Por Leonardo Boff, em seu blog:


Dizem notáveis cosmólogos que tudo começou com um imenso caos, o big bang. Matéria e antimatéria se chocaram. Sobrou ínfima porção de matéria que deu origem ao atual universo. O caos foi generativo. Este ano conhecemos também grande caos em todas as instâncias. Irrompeu o lado perverso da cordialidade brasileira. Segundo Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 5.capitulo), “a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração” (p.107).

Nas eleições de 2018, o lado perverso da cordialidade ocupou a cena: muito ódio, difamações, milhões de fake news, até a facada no candidato Bolsonaro que acabou se elegendo presidente do país. Esse caos foi só destrutivo não mostrou ainda ser generativo. E deve ser para não entrarmos num beco sem saída.

Nunca em nossa histórica republicana tivemos um presidente de extrema-direita, homofóbico, misógeno, inimigo declarado de homoafetivos, quilombolas, ameaçador das reservas indígenas, promotor da venda generalizada de armas, tendo como símbolo de campanha os dedos em forma de arma.

Descendente de italianos Sem Terra, chegados ao Brasil no final do século XIX, pretende criminalizar o Movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto como terroristas. Os temas sensíveis da corrupção, do anti-PT, do resgate dos valores tradicionais da família (mas Bolsonaro mesmo está já no terceiro casamento) e da luta contra o aborto, foram temas que turbinaram sua campanha. Algumas igrejas neo-pentecostais foram aliados fundamentais, máquinas de falsas notícias.

O eleito mostra-se ignorante dos principais problemas nacionais e mundiais. Tem uma leitura de caserna, fixada ainda nos tempos da ditadura militar a ponto de declarar herói um famoso torturador Brilhante Ustra. Escolheu ministros na contra-mão da história, negacionistas do aquecimento global, com ideias bizarras como são os das Relações Exteriores , o da Educação e o do Meio Ambiente. Alinhou-se subalternamente à política do presidente Trump, conflitando com aliados históricos.

Diz introduzir uma nova política que de novo não possui nada. Como diz um jovem filosofo que bem articula filosofia com política, Raphael Alvarenga:”A novidade consiste na combinação monstruosa de necropolítica, lawfare, fundamentalismo religioso e ultraliberalismo econômico”.

O neoliberalismo econômico geral no mundo, ganhou aqui uma forma ainda mais radical, pondo nossos “commons” à venda no mercado internacional como o petróleo e a privatização de outros bens públicos.

O pacto social criado pela Constituição de 1988 foi rompido, primeiro, com o discutível impeachment da presidenta Dilma Rousseff e depois com a mudança das leis trabalhistas, com a negação da universal presunção de inocência, com as arbitrariedades da PF, do MPF e não em ultimo lugar, com o comportamento confuso e pouco digno do STF, ora muito leniente, ora excessivamente severo, ora submetido ao controle militar pela presença de um general, assessor do Presidente da Casa.

Vivemos de fato num Estado de exceção, pós democrático e sem lei, como o denunciou em dois livros, com esse título, o juiz de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rubens R.R. Casara. Boaventura de Souza Santos, conhecido sociólogo português, afirma mais peremptoriamente:”O sistema jurídico e judicial criado para garantir a ordem jurisdicional é, nesse momento, um fator jurídico de desordem; é uma perversão perigosa….O STF é uma guerra social e institucional”.

O propósito dos que chegaram ao poder com seus aliados é destruir o PT e seu líder Lula, preso político e refém, borrar da memória popular as políticas sociais que beneficiaram milhões de pobres e permitiram a milhares de destituídos, o acesso à universidade.

Corrupção houve no PT bem como em quase todos os partidos. Um juiz de primeira instância, Sérgio Moro, perseguidor, foi treinado nos USA para aplicar a lawfare (distorcer a lei para condenar o acusado). Foi de uma parcialidade palmar, denunciada pelos juristas nacionais e internacionais mais sérios.

Mas não sejamos ingênuos: a sonegação fiscal anual de mais de 500 bilhões de reais, sete vezes maior que a corrupção política, revela o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional. Só com sua cobrança dispensar-se-ia a Reforma da Previdência. Mas a oligarquia brasileira,atrasada e anti-povo esconde o fato e a imprensa, cúmplice se cala.

Que podemos esperar? É uma incógnita. Por amor ao país e aos condenados da Terra, as grandes maiorias enganadas e iludidas, desejamos que o atual caos seja generativo e a cordialidade signifique benquerença para que a sociedade já muito injusta não seja tão malvada.

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Sheherazade acertou: Frota é um troglodita!


Na terça-feira passada (18), a juíza federal Adriana Freisleben de Zanetti, da 2º Vara de Osasco (SP), condenou o ator-pornô e deputado federal Alexandre Frota (PSL) por divulgar notícias falsas e criminosas contra Jean Wyllys (PSOL-RJ). O fascista foi punido com dois anos e 26 dias de detenção, mas a pena foi suavizada e transformada em multa de R$ 295 mil e prestação de serviços à comunidade – ele deverá picotar folhas de papel dos processos antigos que estão sendo descartados após a informatização da Justiça de Osasco. Descontente com a sentença, Alexandre Frota não recuou e passou a atacar a magistrada nas suas redes sociais. Admiradores do ator-pornô, excitados e tresloucados, também partiram para a baixaria no Facebook. 

Agora, porém, podem ser punidos. No mesmo dia da decisão, o deputado provocador postou: “A Justiça de Osasco reduto do PT me condenou [sic]”. Ele ainda divulgou um vídeo zombando a juíza – que foi compartilhado pelos seguidores. Na gravação, ele corta folhas de papel com uma tesoura e finge chorar. A atitude gerou imediata revolta no Ministério Público Federal. A própria juíza ingressou com uma representação e já foi aberta investigação sobre injúria funcional, quando o agente público é insultado ao desempenhar sua função. A Procuradoria pediu ao Facebook a preservação do conteúdo das postagens ofensivas à magistrada, já que usuários poderiam apagar as mensagens. Em seguida, o caso foi encaminhado ao juiz federal Rafael Bispo, que determinou que o Facebook informe a identidade de cada pessoa por trás dos perfis que atacaram a juíza. 

Adriana Zanetti ainda decidiu processar o deputado na esfera cível, por danos morais. A Associação dos Juízes Federais, que irá auxiliá-la no processo, divulgou nota dizendo que repudia “as agressões e reitera total apoio à magistrada... O respeito às decisões judiciais e ao Poder Judiciário é fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito”, diz a carta assinada pelo presidente Fernando Mendes. Como lembra reportagem da Folha, “esta não é a primeira vez que Alexandre Frota entra em colisão com um integrante do Judiciário. Em julho, ele foi condenado a indenizar em R$ 50 mil Luiz Eduardo Scarabelli por dizer que ‘o juiz não julgou com a cabeça, julgou com a bunda’, um processo movido por ele contra uma ex-ministra de Dilma Rousseff”. Arrogante e doidão, o deputado pode se arrepender das suas maluquices. 

Nesse sentido, a jornalista Rachel Sheherazade, ex-musa da direita nativa que recentemente rompeu com seus seguidores, acertou na mosca ao postar na semana passada: “Não espere entender qualquer coisa que venha daquele troglodita. Perda de tempo! Já o denunciei na Polícia Civil. E ele responde a vários processos por calúnia, injúria e difamação. É um sujeito violento com as palavras e isso lhe rendeu votos dos seus semelhantes para elegê-lo”. Em seu Twitter, ela ainda acrescentou: “[Frota] não ativou o 'modo babaca'. Já veio assim de fábrica! Seja lá de onde esse troglodita tenha vindo". Infelizmente, esse "troglodita" e "babaca" foi eleito pelo "esperto" eleitor de São Paulo. Que tristeza!

sábado, 22 de dezembro de 2018

Cinco razões para defender Battisti

Por Igor Fuser, no site Outras Palavras:

No momento em que escrevo estas linhas, o escritor Cesare Battisti, de 63 anos, estrangeiro regularmente residente no Brasil por decisão de todas as instâncias cabíveis dos poderes públicos deste país, exerce o direito mais fundamental de todo ser humano: o de preservar, por qualquer meio, sua vida e sua liberdade.

Cada dia que Battisti sobrevive à caçada policial é um desgosto para Jair Bolsonaro, impedido de pôr em prática sua concepção ditatorial que encara o cargo de Presidente da República como uma carta branca para qualquer tipo de arbítrio.

Em abril deste ano, o então candidato do PSL, em conversa com o embaixador da Itália, lançou uma de suas típicas bravatas: “No ano que vem, vou mandar um presente para vocês: o Cesare Battisti!”. O assunto só voltou à tona por conta dessa promessa descabida.

Battisti, ex-ativista de esquerda condenado (injustamente, conforme explicarei logo adiante) a prisão perpétua pelo Judiciário da Itália, mora no Brasil desde 2004. É casado com brasileira e tem um filho brasileiro. Sempre respeitou as leis deste país e exerce dignamente sua profissão.

A questão judicial envolvendo sua permanência no Brasil foi definitivamente resolvida em dezembro de 2010, quando o presidente Lula, exercendo um poder a ele atribuído pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tomou a decisão de rejeitar o pedido de extradição feito pelas autoridades italianas.

Sabe-se lá quais foram as obscuras negociatas de bastidores entre Michel Temer e o futuro governante que levaram o impostor em final de mandato a usar a extradição de Battisti como um agrado ao seu sucessor, como se fosse um desses brindes de fim de ano.

O fato é que, em outubro, Temer revogou a decisão de Lula em favor de Cesare Battisti, num ato que foi definido com muita clareza pelo jornalista Josias de Souza, blogueiro da Folha de S.Paulo e figura totalmente insuspeita de esquerdismo:

“Quando o assunto é cadeia, Michel Temer vira um presidente paradoxal. Denunciado duas vezes (corrupção passiva e obstrução de justiça), investigado em outros dois inquéritos (corrupção e lavagem de dinheiro), Temer pega em lanças no Supremo pela prerrogativa de livrar corruptos da cadeia. Com o mesmo ímpeto, ele guerreia pelo direito de extraditar o condenado Cesare Battisti para um cárcere na Itália.” 

Sejam quais forem os motivos da decisão de Temer, ela abriu o caminho para que o juiz Luiz Fux inaugurasse prematuramente as perseguições políticas da era Bolsonaro ao determinar, na quinta-feira dia 13 de dezembro, a prisão de Battisti, que desde então tem conseguido se manter em liberdade, driblando os policiais mobilizados por sua captura. Para sua sorte, o Brasil é um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

Curiosamente, foi o mesmo Fux quem, na década passada, quando o caso tramitava no STF, deu a liminar que travou a extradição, gerando o impasse que culminou com decisão do STF de delegar a Lula a palavra final. Segundo Fux, não se trata de uma incoerência e sim de levar em conta que as “conjunturas sociais” de hoje são bem diferentes daquelas vigentes em 2010. Assim funciona o STF: uma ministra (Rosa Weber) que mantém Lula na prisão apesar de ser dizer favorável à sua soltura, um ministro (Fux) que admite mudar suas próprias decisões de acordo com os ventos da política.

Diante de tudo isso, é importante que os brasileiros realmente comprometidos com a democracia e com os valores humanistas básicos tomem posição em solidariedade a Cesare Battisti neste momento crucial em que se colocam em jogo, ao mesmo tempo, seu destino pessoal e nosso destino coletivo como país (supostamente) civilizado.

Apresento aqui, de forma resumida, cinco razões em favor de que Cesare Battisti possa permanecer no Brasil com sua família, tranquilamente, como lhe é de direito:


1- O mais importante: Battisti é inocente. O episódio da sua condenação, na Itália, é um escândalo comparável à farsa judicial armada por Sergio Moro contra o ex-presidente Lula. O italiano foi preso, no final dos anos 1970, por sua participação num grupo de extrema-esquerda, e condenado a uma pena de treze anos por vários delitos políticos, como subversão. Fugiu da cadeia poucos meses depois e reapareceu na França, onde obteve asilo político. Só então, as autoridades judiciais italianas, como uma espécie de vendetta, decidiram acusá-lo pelo assassinato de quatro homens (três deles, fascistas envolvidos em diversos tipos de violência). Sem qualquer prova, somente com base em delações premiadas de ex-companheiros que dessa forma conseguiram aliviar suas penas, Battisti foi condenado a prisão perpétua. Para saber mais sobre o assunto, recomendo o excelente livro de Carlos Lugarzo, “Os Cenários Ocultos do Caso Battisti” (Geração Editorial, 2012).

2- Vamos falar claro: Battisti está sendo perseguido porque é um homem de esquerda. O caso é de alto interesse à ascendente extrema-direita italiana, doidinha para faturar politicamente com o show da extradição. Não por acaso, o político italiano que já está com as malas prontas para viajar ao Brasil e levar o prisioneiro à Itália, algemado, é o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, um notório fascista conhecido pelo seu ódio aos imigrantes. No Brasil, a polêmica em torno do assunto acompanha, em linhas gerais, a clivagem ideológica existente no país. A extradição de Battisti, desde o início, é uma bandeira dos reacionários dos mais diversos matizes, enquanto a esquerda, em geral, tomou partido em sua defesa (com a triste exceção da revista Carta Capital, que optou por engrossar o coro dos linchadores do escritor). Entregar Battisti à Itália favorece a campanha para desmoralizar a gestão presidencial de Lula e significa, na prática, o sinal de largada para um grande pogrom contra os partidos de esquerda, os movimentos sociais e todos aqueles que Bolsonaro chama de “os vermelhos”.

3- Ao pressionar o Brasil, por diferentes meios e até os dias de hoje, o governo da Itália põe em jogo a soberania política do nosso país. Chegou ao ponto de ameaçar com um boicote à Copa do Mundo de 2014, depois voltou atrás e, no final das contas, isso não fez a menor diferença. Na longa novela do Caso Battisti, não faltou nem mesmo um deputado italiano, Ettore Pirovano, que, em 2009, ao criticar o ministro da Justiça Tarso Genro por sua recusa em conceder a extradição, recorreu ao infame preconceito existente na Europa contra as mulheres brasileiras. “O Brasil é mais conhecido por suas dançarinas do que por seus juristas”, ironizou o parlamentar, do partido neofascista Liga do Norte. Entende-se, aí, o que quis dizer por dançarinas.

4- A extradição de Battisti é uma completa aberração do ponto de vista jurídico. Como bem lembrou o jornalista Celso Lungaretti no seu blog Náufrago da Utopia, “a sentença que a Itália quer fazer valer não só prescreveu em 2013 (trocando em miúdos: também está extinta), como se trata de uma condenação à prisão perpétua, ao passo que as leis brasileiras proíbem a extradição de quem vá cumprir no seu país de origem uma pena superior a 30 anos de reclusão”.

5- Finalmente, a extradição de Cesare Battisti representa uma grave violação ao princípio da segurança jurídica. A decisão de Lula, que negou o pedido de extradição em 2010, foi confirmada no ano seguinte pelo STF. Sim, depois de tudo, o decreto de Lula ainda foi submetido ao STF, que o aprovou no dia 11 de junho de 2011, por seis votos contra três. Os seis juízes que votaram a favor da decisão de Lula e pela rejeição das queixas da Itália foram Fux (impressionante!), Levandowski, Marco Aurélio, Carmen Lúcia, Ayres de Brito e Joaquim Barbosa. Em suma: assunto encerrado, julgado em todas as instâncias possíveis muito além do que seria imaginável. Desde então, Battisti já não é mais um refugiado político, e sim um imigrante com residência permanente, condição que mantém até o presente momento. Aceitar sua prisão e entrega a um governo estrangeiro significa admitir que as garantias jurídicas já não valem mais nada no Brasil, que qualquer cidadão ou cidadã pode a qualquer momento ser vítima do arbítrio do Estado, exatamente como ocorreu durante os 21 anos da ditadura militar – os tempos da tirania, que os fascistas estão tentando implantar novamente, mas não conseguirão.

* Igor Fuser é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC). Este artigo foi elaborado para o projeto Jornalistas pela Democracia.

O pênis de Deus

Jornalismo e entretenimento confusos podem ajudar a proteger criminosos e produzir vítimas


ELIANE BRUM


Você acredita em milagres? Esse foi o título de um programa de Oprah Winfrey sobre João de Deus, o mais famoso meio brasileiro. Em 2012, o apresentador de televisão foi para Abadiânia, a pequena cidade dominada pelo centro de cura, e testemunhou uma operação espiritual. "Comecei a chorar lágrimas de gratidão. Eu tive uma incrível sensação de paz ", comentou ele. Nos últimos dias, mais de 300 mulheres do Brasil e de outros países acusaram o meio de abuso sexual. Oprah removeu as imagens da Internet. O santo está se tornando um monstro.

Segundo as mulheres que denunciaram, João de Deus afirmou que estava fazendo uma "limpeza espiritual". Seu pênis seria um instrumento de Deus e violência sexual, parte do ritual de cura. Ao destruir o corpo e o espírito de suas supostas vítimas durante quatro décadas, João de Deus estava sendo santificado. Menos pela religião e mais pela imprensa e pela indústria do entretenimento. Se já é difícil para uma mulher denunciar qualquer abuso cometido por um homem, e para ser ouvido, como apontar um santo que aparece na televisão ao lado de celebridades?

Oprah não foi o único a legitimar o suposto poder curativo do médium que assegura que incorpora o jesuíta Ignacio de Loyola. Presidentes como Bill Clinton e Lula da Silva estavam com ele, além de dezenas de celebridades. Também é óbvio que Oprah não sabia e, nesse sentido, também é uma vítima. Ela, que corajosamente contou que sofreu abusos na infância, tornou-se uma das principais ativistas contra a violência sexual. Sem o Time's Up e #MeToo, movimentos que ela apoia, talvez as primeiras mulheres que denunciaram João de Deus em um programa de televisão não ousassem expor sua dor.

Mas é importante enfrentar a complexidade da vida real. A questão que nos faz avançar é como um homem pode ter estuprado tantas mulheres por tanto tempo sem ser investigado por ninguém ao seu redor. Em 2008, iniciou-se uma ação legal por abuso sexual, mas considerou-se que a vítima de 16 anos era "incapaz de distinguir a fantasia da realidade". O meio se tornou ainda mais famoso na década seguinte, com muitos relatórios e programas como Oprah.

A resposta pode ser menos fé e mais no mercado. João de Deus alimentou a economia de Abadiânia, ofereceu imagens populares aos políticos, gerou audiência para a indústria do entretenimento. Oprah e todos nós temos uma importante lição. O jornalismo não pode ser confundido com entretenimento e vice-versa. Se alguém acredita em milagres, é uma escolha pessoal. Aqueles que estão a serviço do público devem priorizar os fatos. Não há santos ou monstros. Apenas humanos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

O Doi-Codi do século XXI

Para o Brasil branco, masculino e heteronormativo, as violências do Estado apareceram como erros ou falhas do sistema, corrigíveis se caminhássemos com parcimônia.


Em 13 de dezembro de 1968 foi imposto ao país o Ato Institucional número 5 (AI-5). Momento que marcou o endurecimento da ditadura inaugurada com o golpe militar de 1964. As medidas autoritárias adotadas até então não estavam mais sendo suficientes. Impunha-se nos primeiros anos de regime militar a disseminação da prisão e da tortura (calcula-se que somente nos primeiros meses após o Golpe mais de 20 mil pessoas tenham sido torturadas), o fechamento do Congresso, o cancelamento de eleições, a cassação de opositores das mais variadas forças políticas.

Contudo, o ano de 1968 carregava as marcas da revolta e da resistência. Dezenas de milhares de manifestantes, em passeatas e ocupações de universidades forneciam a amplitude da condenação social e política do governo autoritário. Os sindicatos se reorganização e greves potentes estouraram em vários territórios da produção industrial. Osasco e Contagem foram os destaques. Nessa última cidade, na grande Belo Horizonte, o então ministro-coronel do Trabalho, Jarbas Passarinho, chegou a comparecer pessoalmente a uma assembleia dos trabalhadores metalúrgicos para ameaça-los em caso de continuidade do movimento. Liderados, entre outros, pela mulher negra Maria Imaculada Conceição, os trabalhadores não se intimidaram e no dia seguinte à visita retomaram a paralisação, com ainda mais adesão.

A situação ficava cada vez mais fora do controle projetado pelo governo. Nos meios da esquerda revolucionária e das articulações de forças nacionalistas começava a ser organizada a luta armada para a derrubada da ditadura. O contexto caminhava para o fortalecimento das lutas populares, dos sindicatos, das organizações tradicionais e dos movimentos espontâneos. Parece que o momento dizia que ou os militares e seus aliados aprofundavam a ditadura, ou teriam de engolir uma democracia radicalizada em favor dos setores historicamente memorizados pelo capitalismo industrial que se avolumava no país de herança escravagista.

Há dois elementos que gostaria de destacar do Ato de dezembro de 1968.

O primeiro se refere ao conteúdo discursivo do Preâmbulo, o qual faz uso de vocabulário próprio da democracia e, poderíamos dizer, até dos direitos humanos. Diz-se que os “Atos com os quais se institucionalizou [a ditadura teve] fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana”, bem como seguiria “na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria”.

Do ponto de vista discursivo se identifica claramente uma articulação entre o governo autoritário e o léxico global da democracia. Diria que havia uma preocupação em construir a ideia de continuidade com a história democrática anterior, buscando com isso legitimar o governo militarizado.

O segundo elemento de destaque nas formulações do AI-5 é seu aspecto de liberação da violência institucionalizada. Além do fechamento do Legislativo, da autorização para intervenção em estados e municípios e a proibição completa de qualquer manifestação, outras medidas indicam a organização institucional da repressão política. O artigo décimo simplesmente suspende o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional, o que geraria um explosivo aumento dos desaparecimentos políticos no início dos anos 70. A estrutura é plenamente confirmada pelo artigo décimo-primeiro, no qual “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”, a auto-anistia prévia. Ou, como a história viria a nomear cinquenta anos mais tarde, o excludente de ilicitude.

Pouco tempo depois, sob a orientação repressiva de montagem das estratégias e estruturas da violência de Estado, a ditadura fundou o DOI-CODI. Seria a efetivação da política de centralização da segurança nacional, que abrangeria as ações diretas de “manutenção da ordem”, bem como as análises de informações e a coordenação e planejamento dos diversos órgãos de segurança. Essa instituição foi a responsável, segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, por tortura, assassinato e desaparecimento de centenas de brasileiros.

A violência de Estado ganhou desde então um novo modelo, o do Estado policial securitário.

Cinquenta anos atrás, quando do decreto de imposição do AI-5, se estabeleceu a efeméride do que hoje podemos chamar de “militarização da política”. Com o Ato se institucionalizou definitivamente a tortura como a razão de Estado e o assassinato e desparecimento enquanto as principais formas de se lidar com o pensamento contrário. Hoje, passadas cinco décadas, todo sistema penal, incluindo a cumplicidade do sistema de justiça e também, é claro, os centros de detenção dos adolescentes em conflito com a lei, os hospitais de custódia, os camburões, os territórios sob intervenção militar, momentânea ou mais longa, são espaços anômicos nos quais a tortura é a prática cotidiana. No Brasil inaugurado pelo AI-5 a exceção é a regra.

Inaugurou-se o Estado policial brasileiro por meio do uso combinado de um discurso “democrático” com a fabricação de artefatos de repressão.

No dia 15 de outubro de 2018, em meio aos conflitos da campanha eleitoral para presidente, a mais violenta desde o fim da ditadura, o presidente golpista Michel Temer assinou o decreto de criação da Força Tarefa de Inteligência. Segundo o texto do decreto, trata-se de um órgão destinado a “analisar e compartilhar dados e de produzir relatórios de inteligência” com o objetivo de coordenar as ações de combate ao crime e em defesa da ordem democrática.

Sem deixar claro o que seria “crime” e quais os limites de atuação do grupo, o decreto criado e redigido pelo general Sérgio Etchegoyen colocou o Gabinete de Segurança Institucional no comando da iniciativa. O qual será agora dirigido pelo general Augusto Heleno, talvez o militar mais próximo do presidente-capitão. A Força Tarefa irá coordenar dados e ações de mais de uma dezena de órgãos, como a Agência Brasileira de Informações (Abin), os centros de inteligência das Forças Armadas, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), Polícia e Receita federal, Departamento Penitenciário e Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Se somar à Força Tarefa a Lei Antiterrorismo, de 2016, cujo conteúdo permite a criminalização dos movimentos e lutas sociais, emerge a reestruturação da centralização de políticas repressivas. Fabrica-se, em meio às transformações dos últimos anos, um DOI-CODI do século XXI, manejando centralização com big datas, tecnologias de vigilância e ideologia de segurança nacional. Sabe-se que com o novo governo reacende-se o discurso de que haveria um inimigo da nação e esse seria interno, íntimo.

Há que se notar que a Lei Antiterrorismo tem um adendo em forma de projeto de lei tramitando no Congresso (o PL 10431/2018) que tem entre outras definições a autorização para que o Ministério da Justiça cumpra sanções administrativas sumárias, sem decisão do Poder Judiciário, contra ativos e pessoas denunciadas por terrorismo.

Considerando ainda que o novo Ministério da Justiça é um conglomerado de Lava-Jato (leia-se ação de controle político via Judiciário), polícias e órgãos do Executivo, sob o comando do juiz-político Sérgio Moro, corre-se o risco de nos vermos diante de um novo aparato do Estado policial inaugurado em 1968.

Não se trata de dizer que a ditadura permaneceu existindo após seu fim. Ela acabou. O que permaneceu, neste tema do Estado securitário, foi toda uma estrutura repressiva, violenta e genocida. Sua sobrevivência, transmutação e sofisticação foi possível graças, principalmente, à transformação da doutrina de segurança nacional utilizada pela ditadura, em segurança pública no estado de direito. Sob essa nova vestimenta, as ações de violência do Estado foram sendo limitadas ao genocídio dos jovens negros, pobres e periféricos. Bem como contra as mulheres, as pessoas LGBTs, os indígenas e outras minorias políticas.

O Brasil inaugurando com o Ato Institucional número 5 soube combinar as antigas formas de organização social e de dominação, especialmente o racismo, o patriarcalismo e a desigualdade social, com o uso da institucionalização de sofisticados meios de controle e vigilância.

Também não se trata de desconsiderar todas as conquistas democráticas dos últimos 30 anos. Antes, visamos apontar que paralelamente a esses avanços, manteve-se no estado de direito um Estado policial de modo quase imperceptível para os não negros, os não indígenas, os não mulheres, os não LGBTs, os não presos, os não adolescentes em conflito com a lei etc.

Para o Brasil branco, masculino e heteronormativo, as violências do Estado apareceram como erros ou falhas do sistema, corrigíveis se caminhássemos com parcimônia.

***

Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Militares e evangélicos: nova fonte de poder

Por Ricardo Kotscho, em seu blog:

Os generais estão voltando, sob o comando de um capitão reformado, mas não estão sozinhos para dar as ordens em Brasília.

Junto com eles, chegam ao poder os bispos da grana das igrejas evangélicas neo-pentecostais, que já nomeiam e vetam ministros.

Nada muito diferente de 1964.

Só mudaram as igrejas: naquela época, quem açulou os militares a tomar o poder foram bispos da igreja católica apostólica romana, que promoveram as Marchas da Família, com Deus pela Liberdade, e acenderam o pavio do golpe.

Igrejas e Forças Armadas sempre tiveram muito poder no Brasil. Juntas, podem eleger e derrubar presidentes.

Na semana em que os nostálgicos da ditadura militar comemoram os 50 anos do Ato Institucional Nº 5, o golpe dentro do golpe de 64, Jair Bolsonaro será diplomado pelo TSE ao final do processo eleitoral mais sujo e manipulado da nossa história.

Desta vez, não foi preciso colocar tanques nas ruas: o serviço foi feito nas redes sociais e nos tribunais, “tudo dentro da lei e da ordem, com as instituições em pleno funcionamento”.

Na manhã de sábado, reunido na Agência Pública, um grupo de jornalistas que já passaram pelas principais redações do país discutiu o papel da mídia que foi surpreendida pela onda conservadora bolsonariana nas eleições de outubro.

Nós, repórteres, não vimos germinar nos becos, nas quebradas, nos templos eletrônicos e nos quartéis, muito menos nos algoritmos das redes sociais, as novas fontes de poder.

Nas nossas agendas de fontes, já não havia militares nem religiosos como em outros tempos.

Sabíamos de cabeça os nomes dos generais do Alto Comando do Exército e dos principais líderes da CNBB, agora substituídos pelos cardeais do STF e cruzados da Lava Jato, que viraram astros da televisão ao vivo.

São difusos os interesses dos novos donos do poder, mas o objetivo é o mesmo de 50 anos atrás: tolher as liberdades públicas e rifar os direitos dos trabalhadores, para vender as nossas riquezas naturais na bacia das almas, e atender ao projeto dos grandes interesses multinacionais na Amazônia e no pré-sal.

Ao abdicar de uma política externa independente, para se oferecer como ponta de lança de Donald Trump na América Latina, os senhores proprietários de terras, gado e gente se uniram em torno do capitão para varrer do mapa os movimentos sociais e implantar seu projeto de concentração de renda e de poder.

Até o presidente do STF, Dias Toffoli, e o governador eleito de São Paulo, João Doria, fiéis aliados da nova ordem, já convocaram generais para suas equipes.

Nestes dias de reminiscências do AI-5, voltam as lembranças da época em que a segurança pública em São Paulo era comandada pelo famigerado coronel Erasmo Dias, que tinha tara para bater em estudantes, professores e operários.

Agora, em lugar do coronel, teremos um general e, em lugar dos generais-presidentes, assume um capitão reformado pelo Exército aos 33 anos, que virou deputado do baixo clero e em três décadas de atuação parlamentar nunca passou de uma figura folclórica, defensor da ditadura militar e seus torturadores.

Como a imprensa vai lidar com estas velhas novas fontes de poder, que já tratam repórteres como inimigos da pátria, a exemplo do que faz o presidente americano?

Repórteres, como sabemos, são esses tipos inconvenientes que querem saber: de onde veio e para onde foi o R$ 1,2 milhão do caixa eletrônico da família do PM motorista dos Bolsonaro?

Uma coisa é certa: não será fácil a lida dos jornalistas daqui para a frente para contar o que está acontecendo nos subterrâneos deste poder teocrático-militar.

E vida que segue.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O legado de um comandante invicto

Por Judite Santos, no site do MST:

Neste 25 de novembro completam-se dois anos da partida física do comandante Fidel Castro. Prestarmos nossa homenagem a este que foi sem dúvida, o maior dirigente revolucionário nessa quadra histórica em que vivemos.

Fidel Castro Ruz nasceu em 13 de agosto de 1926, no pequeno povoado de Birán, região oriental de Cuba. Seu pai havia sido recruta do exército espanhol na luta contra a independência de Cuba e depois retornou para instalar seu negócio e fazer sua vida na ilha, sua mãe era filha de camponeses pobres de Pinar del Río, região ocidental de Cuba. Don Angel Castro e Dona Lina Ruz se casaram em 1922 e tiveram 7 sete filhos, entre eles

Fidel e Raul Castro, que futuramente se tornaram os principais líderes da Revolução Cubana.
Desde jovem Fidel Castro começou sua vida política como líder na luta contra o regime ditatorial em Cuba, rebelando-se contra a ordem vigente e construindo na maioria oprimida - o sujeito social como protagonista do processo de libertação nacional.

Após o golpe de março de 1952, que levou ao governo o ditador Fulgêncio Batista, Fidel se dedicou a organizar um movimento clandestino com ideias revolucionarias. A única saída seria a tomada do poder.

O radicalismo do assalto ao quartel Moncada, em 26 de julho de 1953, evidencia o jovem Fidel determinado a organizar uma luta valente e audaciosa para libertar Cuba da tirania.

Além de denunciar os crimes cometidos contra os assaltantes do quartel de Moncada, ele apresentou um consistente programa político do que viria a ser a Revolução Cubana. Fidel anunciou na época, “condenem-me, não importa. A história me absolverá”.

Após o fracasso do assalto ao quartel Moncada, Fidel cumpriu quase dois anos de reclusão, etapa onde pode amadurecer com uma firmeza inabalável os propósitos da Revolução. Saiu da prisão com a missão de fundar um movimento para dar continuidade ao processo revolucionário em Cuba, afirmando que a liberdade nada mais era do que o dever de seguir lutando. Assim, no dia 12 de junho de 1955, fundou o Movimento 26 de Julho, com a participação de Aydée Santamaría, Ñico López e outros revolucionários cubanos.

Logo parte para o exílio no México e ali começa a organizar um grupo de combatentes que voltariam à Cuba para implementar a luta guerrilheira. No México Fidel Castro conheceu Che Guevara e, desde então, tornaram-se amigos com profundo afeto entre si e compromisso com a transformação social.

Aos 30 anos de idade, Fidel Castro parte para Cuba, em um iate com 82 expedicionários a bordo, e desencadeiam a luta revolucionaria na Sierra Maestra, em dezembro de 1956. Surge assim, ao Exército Rebelde que triunfa em pouco mais de dois anos, em janeiro de 1959.

Fidel Castro foi uma liderança que deixou a sua marca na história. Ferrenho defensor da bandeira anti-imperialista, como líder comunista jogou um papel fundamental e influente nos assuntos globais. Seu legado deve emanar na rebeldia, principalmente da juventude, do nosso tempo histórico em que vivemos a reascensão conservadora sob forte ameaça de uma nova forma fascista, com o aprofundamento da violência, perda da soberania e uma crescente pauperização da classe trabalhadora.

Neste sentido, recordamos Fidel como:

Soldado das ideias 

Fidel foi um grande defensor da batalha das ideias, no momento mais difícil da Revolução Cubana. No chamado período especial, lançou o desafio da luta ideológica como forma de enfrentar o imperialismo. O debate massivo sobre os rumos da revolução, a defesa da ética revolucionária, bem como o caráter socialista baseado em princípios e valores éticos, foi o que garantiu a continuidade da unidade nacional e internacional em torno do socialismo.

Para os tempos atuais, é fundamental pensar na batalha ideológica como forma de enfrentar o rebaixamento da luta política que a direita ultraconservadora está tentando nos impor. É necessário que os instrumentos da classe trabalhadora, como partidos, sindicatos e movimentos sociais, tenham em conta a disputa pelo conteúdo ideológico na luta de classes em seus programas para o próximo período.

Fidel foi capaz de elaborar um pensamento crítico que transformou Cuba numa sociedade altiva e disposta a levar adiante a construção de uma nova de sociabilidade. O silêncio que reinava em meio a uma multidão durante as longas horas de discursos na Praça da Revolução era uma prova do seu papel como educador do povo. 

Comandante das massas

Fidel Castro sempre teve um vínculo indissolúvel com as massas. Foi um educador com brilhante oratória e enorme capacidade de dialogar com os setores populares. Entregou-se sem limites à causa da Revolução.

Che Guevara, ao despedir-se em 1965, antes de partir para Bolívia, chamou-o de brilhante estadista ao reconhecer o papel de comandante em chefe num dos momentos mais difíceis de Cuba: a crise dos misseis. Nas palavras de Che “vivi dias magníficos e a teu lado, senti o orgulho de pertencer ao nosso povo nos dias brilhantes, embora tristes, da crise caribenha. Raramente um estadista foi mais brilhante do que você naqueles dias. Orgulho-me, também, de ter te seguido sem vacilar, identificado com tua maneira de pensar e analisar os perigos e os princípios”. 

Os ideólogos da burguesia quiseram atribuir a Fidel um status de assassino, ditador e outros tantos atributos para desconstruir a sua imagem, mas a história demonstrou seu exemplo desde o líder guerrilheiro ao extraordinário estadista carregado de valores humanos como a humildade e o carisma enquanto essência da sua personalidade. Desde jovem soube agregar a militância, construiu a unidade em torno de uma ideia e de um objetivo: salvar Cuba da tirania. 

Quando nos deixou, uma multidão saiu às ruas dar o ultimo adeus àquele que foi artífice da dignidade humana em Cuba. A Caravana da Liberdade, de janeiro de 1959, foi reeditada no sentido inverso até chegar novamente no berço da revolução, em Santiago de Cuba, “onde, como no resto do país, recebeu o testemunho de amor dos cubanos”, como discursou Raul Castro, no dia 03 de dezembro de 2016, na última cerimônia de despedida de Fidel.

Mas não foi somente Cuba que chorou sua partida, nós também choramos, o mundo chorou e não foi um lamento de tristeza, choramos a alegria de haver tido a oportunidade de viver este tempo histórico e conhecido a grandeza deste ser humano. Cada confim deste planeta demonstrou com um gesto simbólico de lealdade e num eco que vinha desde Cuba, também gritamos juntos: “yo soy Fidel”!

Estrategista radical 

Desde o assalto ao quartel Moncada, Fidel Castro demonstrou ter a convicção de que a luta para derrotar o inimigo tinha que ser longa e radical. A tomada do poder era um requisito indispensável para a transformação de Cuba, ele se propunha ir ao “assalto aos céus”, a partir do mundo colonizado chamado América Latina, como nos disse Fernando Martínez Heredia. 

Depois veio o desembarque do iate Granma, surpreendido pelas forças do exército que quase acabou com a epopeia dos jovens revolucionários, e, logo, Sierra Maestra, onde provou sua capacidade como estrategista no Exército Rebelde. Cada combate, cada vitória assegurava que o caminho elegido levaria mais cedo ou mais tarde ao triunfo revolucionário.

Não foram dias fáceis para o Movimento 26 de julho, os meses de guerrilha na Sierra Maestra, somada à luta clandestina de milhares de operários, campesinos estudantes na cidade, tornou possível a vitória estratégica. E após, cinco anos e cinco meses, do Moncada, num 1° de janeiro de 1959, o Exército Rebelde triunfou em Cuba. A luta estava só começando...

Fidel dirigiu a Revolução Cubana durante mais de 50 anos, sempre com a capacidade de olhar para frente, saber escutar e conversar. A revolução foi sem dúvida uma obra coletiva, mas sem a direção de Fidel e seus companheiros possivelmente não teria chegado aonde chegou. Içar a Revolução Cubana como parte fundamental do movimento revolucionário mundial foi um dos seus maiores méritos. 

Anti-imperialista convicto

Fidel sempre soube que o maior inimigo de Cuba era o imperialismo. Ainda na Sierra Maestra, em 6 de junho de 1958, escreveu à Celia Sánchez uma carta onde expressava que seu verdadeiro destino seria a luta contra o imperialismo. E assim, a bandeira anti-imperialista tem sido uma constante na política revolucionária cubana.

Quando os Estados Unidos perceberam que havia uma Revolução embaixo de seu nariz, tentaram de todas as formas esmagá-la. A invasão de Playa Girón, ou Bahia dos Porcos, como é conhecida, foi um dos episódios mais radicais depois do triunfo revolucionário e marcou um momento importante na história da Revolução: foi a primeira derrota imperialista na América Latina.

Este episódio levou Cuba ao seu caminho sem volta, quando Fidel declarou o Caráter Socialista da Revolução, em 16 de abril de 1961.

Fidel foi um dos maiores anti-imperialistas da historia contemporânea. Criticou veementemente todas as formas de opressão, as guerras e as formas de ingerência praticada pelos EUA, durante mais de meio século até os últimos dias da sua vida, afirmando sempre que a soberania nacional é intangível e não se negocia.

Este maestro ensinou que é imprescindível o anti-imperialismo como palavra de ordem do campo popular para guiar os processos de mudanças sociais, principalmente na América Latina.

Internacionalista 

Com o mesmo espírito em que Fidel se tornou anti-imperialista convicto, também se tornou um impulsionador e dirigente internacionalista, afinal, para combater o capitalismo na sua forma imperialista, é preciso travar uma luta de caráter internacional.

O internacionalismo cubano é baseado na solidariedade entre os povos. Foi com este sentido de solidariedade humana que Cuba enviou ajuda a outros povos do mundo na luta contra o colonialismo e a agressão imperialista, sobretudo no continente africano.

A Revolução Cubana foi fundamental para a derrota do regime racista do apartheid Sul-africano, participando decisivamente no processo de independência de Angola e da Namíbia. Sem a participação de meio milhão de cubanos sob comando de Fidel Castro na Operação Carlota, não teria sido possível a vitória de Angola, em 16 anos de guerra pela integridade territorial.

Para Fidel Castro, “solidariedade não é dar o que nos sobra e sim o que nos faz falta”, dessa maneira, o abnegado povo cubano apresentou ao mundo as qualidades humanas forjadas pela Revolução. Desde combatentes, médicos, professores, técnicos e muitas outras profissões, com Fidel sempre à frente, Cuba provou que era possível combater o criminal bloqueio econômico imposto pelos EUA e multiplicar-se de maneira fraterna e solidária no mundo, levando apoio e solidariedade aos povos mais necessitados.

Cuba também abriu as portas para milhares de estudantes do mundo inteiro sem cobrar-lhes um centavo, a maioria proveniente dos países mais pobres. Hoje continuam enviando com médicos e profissionais da saúde para prestar serviços em diferentes partes do mundo.

Certamente, Fidel estaria de braços abertos para receber seu exército de batas brancas, que cumpriram seu mais nobre dever de salvar vidas aqui no Brasil, no Programa Mais Médicos, e os chamaria novamente de “verdadeiro guardião da saúde e da vida, prestes a marchar para qualquer país onde seja necessário, e convencido de que um mundo melhor é possível”.

Estes internacionalistas, médicos extraordinários, agora retornam à sua pátria com o dever cumprido e um profundo sentimento em deixar um país onde a política do ódio prevaleceu ao amor pela vida. Não temos dúvidas de que estes estarão dispostos a sair pelos rincões do mundo cumprir outras missões humanitárias.

É importante sempre, ao evocarmos o legado de Fidel Castro, considerar o momento histórico em que vivemos: não basta exaltar as qualidades extraordinárias deste comandante exemplar, precisamos traduzir Fidel para a nossa realidade e agarrar as suas contribuições como instrumento da nossa ação. 

Homenagear Fidel é reivindicá-lo enquanto autoridade moral na luta pelo socialismo!

"Mais Médicos" e a solidariedade cubana

Por Pedro de Oliveira, no Blog do Renato:

Nesta última semana, diante das ameaças e desqualificações perpetradas pelo presidente eleito do Brasil, Jari Bolsonaro, o Governo da República de Cuba foi obrigado a suspender a participação de médicos cubanos no Programa Mais Médicos. Este programa foi assinado entre Cuba e o Brasil sob o patrocínio da Organização Pan-Americana de Saúde, que faz parte do Sistema das Nações Unidas, instituído no final da década de 40 do século passado, logo em seguida à fundação da ONU.

Em nota, o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, Cebrapaz, assinalou que “durante cinco anos da participação de Cuba no programa, os profissionais de saúde cubanos atenderam 113 milhões de brasileiros, muitos deles pela primeira vez recebendo cuidados médicos”.

O Cebrapaz explica ainda em sua manifestação pública que “os médicos cubanos, por sua formação, encaram a medicina, antes de mais nada, como uma missão humanitária e não como um meio para o enriquecimento pessoal. Assim, iam aonde eram necessários ao povo. Iam aonde outros se recusavam a ir”.

Fidel Castro, o líder revolucionário cubano falecido em 25 de novembro de 2016, estava vivo ainda quando a participação cubana neste programa Mais Médicos foi estabelecido e pode-se dizer com certeza que o compromisso foi fruto do que se poderia chamar uma política de Estado baseada na solidariedade internacional. Em uma série de entrevistas que foram transformadas em livro pelo escritor francês Ignácio Ramonet, Fidel revelou ser portador de um sonho – levar a saúde e o conhecimento, a medicina e a educação aos quatro cantos do mundo – o que Ramonet considerou tratar-se de um sonho impossível, e o que foi contestado pelo seu entrevistado dizendo que “nada é impossível”, como na obra do herói preferido do líder cubano, Dom Quixote.

A solidariedade internacional como política de Estado

Exemplo do tipo de orientação voltada para a solidariedade humanista é a criação do Centro Nacional de Investigações Científicas (CNIC), fundado em 1965. Hoje o CNIC está subordinado ao Grupo de Indústrias Biotecnológica e Farmacêuticas (Bio-Cuba-Farma) – surgido na década de 1980 – que aglutina 38 empresas e 79 fábricas, onde atuam 22 mil trabalhadores, dos quais 400 são doutores e 600 mestres. O Polo Científico de Biotecnologia da Bio-Cuba-Farma já registrou 1.050 patentes e exporta em torno de 650 milhões de dólares a cada ano, sendo a principal pauta de exportação do país. Seus produtos, entre os quais o Interferon, são comercializados em mais de 50 países. Nestas instituições, existem experiências de transferência de tecnologia, como é o caso da China, onde a Bio-Cuba-Farma opera duas empresas mistas. Há dez anos foi constituído, também, um grupo de cooperação científica Cuba-Brasil. Os medicamentos e produtos produzidos são distribuídos às farmácias de todo o país, onde podem ser adquiridos pela população a preços subsidiados. É importante referir que para pacientes internados nos hospitais os medicamentos são fornecidos gratuitamente.

Mais um instrumento de solidariedade reconhecido internacionalmente é a Escola Latino-Americana de Ciências Médicas, a ELACM, que foi criada em 1999 nas instalações da antiga Academia Naval de Cuba, as quais foram adaptadas para recebê-la. Inicialmente foi voltada à formação de médicos para os países da América Central, oriundos de famílias humildes, sem condições de custear os seus estudos em seus países de origem.

A ideia surgiu em fins da década de 1990, quando Cuba prestou uma grande ajuda humanitária a diversos países da América Central, atingidos pelos terríveis furacões George e Mitch, que em outubro/novembro de 1998 devastaram o Caribe e a América Central. Amadureceu, então, a proposta de – além da ajuda com médicos, em momentos de calamidade – criar uma escola para a formação permanente de médicos para esses países. Em um segundo momento, os países africanos foram incluídos no projeto. O sucesso foi tão grande que hoje a ELACM forma médicos de famílias humildes de todas as partes do mundo, inclusive dos Estados Unidos.

Esse espírito solidário do povo cubano já havia ficado demonstrado em 1963 quando Cuba enviou – apesar de haver perdido metade dos 6 mil médicos que possuía antes da Revolução, que preferiram acompanhar o ditador Fulgêncio Batista em seu exílio – 57 médicos para ajudar as vítimas de um forte terremoto em países centro-americanos. Entre 1963 e 2013, Cuba prestou colaboração médica aos países africanos, através de diferentes programas, com a participação de mais de 76.700 colaboradores da área de saúde, dos quais 53.628 médicos. Hoje, Cuba tem mais de 60 mil colaboradores na área da saúde em todo o mundo, principalmente nas áreas mais remotas e desassistidas, como é o caso dos que atuam no Programa Mais Médicos no Brasil – que infelizmente serão todos retirados do país até o final de dezembro.

O papel internacionalista do Instituto Finlay

O Instituto Finlay – mundialmente reconhecido como um centro de excelência na produção de vacinas – iniciou suas atividades produtivas no ano de 1989, especializando-se na produção de vacinas contra enfermidades bacterianas. De 1990 a 2012 fez parte do Polo Científico de Oeste de Havana, tendo a partir de 2012 passado a fazer parte da Bio-Cuba-Farma. Atua no ciclo completo de Investigação, Desenvolvimento e Produção. Está instalado em uma área de 20 mil m2, sendo metade para atividades de produção. Dentre seus 800 funcionários, 27 são doutores, 150 mestres e 70% possuem formação técnica.

Foi ele quem descobriu a vacina contra a meningite B, com a qual Cuba conseguiu enfrentar a epidemia dessa doença que ali se manifestou e que logo também ocorreu no Brasil, na Colômbia e na Argentina. Na ocasião, o Brasil, adquiriu 25 milhões de doses dessa vacina, o que foi fundamental para enfrentar essa grave epidemia. Igualmente a Colômbia e a Argentina ampararam-se na vacina cubana para enfrentar o problema. Posteriormente, foram desenvolvidas com êxito as vacinas contra as meningites A, C e ACW. Além destas, o Instituto Finlay produz a vacina tetravalente (tétano, difteria, coqueluche, hepatite), penta-valente (essas quatro, mais a hemófila influenza), contra a pneumonia e onco BCG (para o câncer de bexiga). Seu trabalho tem sido essencial para o Programa Nacional de Imunização em Cuba, criado em 1991.

Enfim, a participação de Cuba no Programa Mais Médicos é um dos aspectos de uma gigantesca política de solidariedade do Estado cubano com os povos do mundo inteiro que envolve a formação de jovens médicos vindos de inúmeros países – entre estes o Brasil – a produção de vacinas importantes para o tratamento de epidemias – inclusive no Brasil – e o tratamento de várias doenças como é o cuidado médico de centenas de crianças ucranianas afetadas pelas consequências da tragédia atômica ocorrida na Ucrânia, em 26 de abril de 1986, com a explosão em um reator da Usina nuclear de Chernobyl.


* Os dados e informações deste artigo foram coletados in loco na cidade de Havana, durante a viagem de uma delegação parlamentar a Cuba, capitaneada pelo então deputado estadual Raul Carrion, do PCdoB-RS, da qual tive a oportunidade de participar como jornalista.

* Pedro de Oliveira é jornalista, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e da Editoria Executiva do Sitio Internacionalismo 21.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ataque dos machos brancos

A tensão de gênero, raça e classe marcou a eleição de 2018

Eliane Brum

A apresentadora Fernanda Lima foi linchada nas redes sociais por ter encerrado a edição do seu programa “Amor & Sexo”, de 6 de novembro, na TV Globo, com as seguintes palavras. É bom ler vírgula por vírgula, porque a quantidade de gente que comenta, julga e condena sem sequer ler tem se multiplicado mais do que baratas. E, às vezes, com o cérebro de uma. Fernanda disse:

– Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?

O programa havia sido gravado em julho, como ela afirmou nas redes sociais, mas de imediato uma horda de seguidores de Jair Bolsonaro (PSL) interpretou a fala da apresentadora como um manifesto contra a eleição de seu “mito”. Como é possível? É bastante possível, é mesmo até previsível. Se a apresentadora está conclamando as mulheres a lutar contra a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia (ódio às mulheres), e os eleitores de Bolsonaro se ofendem e revidam o que consideram um ataque pessoal ao seu líder, é porque compreendem que o presidente eleito defende e proclama a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia. Entendem tudo muito bem.

Se Fernanda Lima invoca o público a combater a submissão, a tirania e a repressão, e os eleitores de Bolsonaro se ofendem, é porque entendem que Bolsonaro – e também eles – defendem a submissão (das mulheres, dos LGBTQIe dos negros), a tirania e a repressão. Nenhuma novidade. Quem denunciou o projeto autoritário de Bolsonaro já sabia disso. Ao contrário de parte do eleitorado do deputado profissional, quem a ele se opôs acreditou na violência que Bolsonaro propagou publicamente durante quase 30 anos. Acreditou no que ele disse. Exatamente por acreditar, milhões de pessoas lutaram contra a sua candidatura. Esta, a propósito, é mais uma característica curiosa desta eleição: parte dos eleitores dizia não acreditar que seu candidato faria o que dizia que faria – e por isso votaram nele. É difícil de entender? É.

O que talvez ainda pudesse surpreender é uma horda de pessoas linchar verbalmente alguém porque a vítima defende valores fundamentais da civilização, que pareciam já consolidados, como a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e a tirania. Mas chegamos a este ponto. E certamente daqui passaremos para muito mais abaixo. Não estamos nem perto do fundo do poço sem fundo.

1) Quando as “fraquejadas” incomodam

Um dos mais raivosos com a luta de Fernanda Lima contra o machismo respondeu com a elegância e o respeito que caracterizam uma parcela dos seguidores de Bolsonaro, feitos a imagem e semelhança do “mito”. Assim, o cantor Eduardo Costa expressou a si mesmo: “Mais de 60 (sic) milhões de brasileiros e brasileiras votaram no Bolsonaro e agora essa imbecil com esse discurso de esquerdista! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco, e o lado mais fraco hoje é o que ela está. Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela?”.

Que ser de esquerda signifique também combater a tirania, o machismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, perfeitamente justo. E bastante honroso. Mas duvido que parte da direita não compartilhe dos mesmos valores humanitários básicos. Há uma direita que suspeito que possa ficar ofendida por ter sido apartada destes valores. Mas cadê ela? Muda como uma freira que fez voto de silêncio.

Os que não fazem votos de silêncio são os pastores de certas igrejas evangélicas– não todas, definitivamente não todas. Conhecedor de seus fiéis, o deputado Marco Feliciano (Pode) se manifestou na imprensa Gospel com a certeza de que seu público só leria o que ele disse, não o que Fernanda efetivamente falou. E seu público nunca o decepciona. Então mentiu: “Em uma das últimas apresentações, ela (Fernanda Lima) vociferou críticas ferozes e mentirosas ao presidente eleito Jair Bolsonaro. Sua fala denotava um ódio escancarado e uma falta de respeito à maioria do povo brasileiro, entre eles muitos de seus espectadores, numa linguagem de revolucionário clandestino, como se estivesse falando de alguma caverna do Afeganistão”.

Leiam mais uma vez o que Fernanda Lima disse. Como ela pode ter ofendido Jair Bolsonaro? Como as dependências da TV Globo (!!!!) podem ser comparadas com uma caverna do Afeganistão? Para que possamos conversar, é preciso manter uma afinidade mínima com os fatos. Embora se saiba que Bolsonaro defende o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia e a tirania, ter ideias diferentes não é ofender, apenas discordar. Neste caso, apenas cumprir a lei, já que racismo, por exemplo, é crime. Sem contar que Bolsonaro jamais foi citado no programa, gravado muito antes do primeiro turno das eleições.

Mas a fala de Feliciano, um pastor que já foi acusado de tentativa de estupro e que já afirmou que os negros descendem de um “ancestral amaldiçoado por Noé”, não surpreende ninguém. O que surpreende é ele “denunciar” que alguém é contra a opressão das mulheres e o racismo. O evangelismo dele seria a favor? Feliciano pode ser o que ele é e responder pelo que diz e faz na justiça, mas não pode tratar seu comportamento como se fosse a forma correta de se mover numa sociedade. Esta é a insanidade do momento. Tratar comportamentos antiéticos e imorais, alguns deles previstos no Código Penal como crime, como a forma correta de agir – ou como se a eleição de Bolsonaro tivesse bastado para rasgar a Constituição e defecar no Código Penal.

Dias depois do ataque à Fernanda Lima, duas manifestações de homens brancos e velhos clarearam um pouco mais o atual cenário brasileiro. (Para deixar explícito desde já, quem me lê sabe a defesa contundente que eu faço da velhicee minha crítica com relação a expressões como “terceira idade” ou “melhor idade”). Os dois homens brancos e velhos têm vozes com poder de ecoarem longe, um deles tem também microfone e concessão de TV. Mas ambos têm trajetórias bastante diferentes. Neste momento de tantas velhas novidades, porém, também eles se aproximam no pensamento.

O primeiro é Silvio Santos. Ao vivo, na TV, o apresentador e dono do SBT, ao receber a cantora Claudia Leitte, afirmou que não a abraçaria. "Esse negócio de ficar dando abraço me excita e eu não gosto de ficar excitado", disse o apresentador. Surpreendida pelo desrespeito, Claudia retrucou: "No sentido feliz da palavra, né? De alegria, euforia, excitação”. Silvio, obviamente, perdeu a chance de se redimir em público: "Não, não é euforia, não. É excitação mesmo”. E a câmera focou nas pernas da cantora, para deixar claro para os milhões que assistiam ao programa o que deixava o patrão tão sexualmente excitado.

Silvio Santos é notório por pelo menos duas características: bajular todos os governos, ditatoriais ou não, ao ponto do constrangimento, e acreditar que assediar e ofender mulheres é um direito adquirido que não pode ser barrado pelo “politicamente correto”. A expressão, a propósito, é a mais odiada por pessoas como ele, já que acham injusto refrear seus instintos em nome da convivência e do respeito ao outro. Em julho, o dono do SBT fez o seguinte comentário a respeito de Fernanda Lima: “Com essas pernas finas e essa cara de gripe, ela não teria nem amor nem sexo”.

Em entrevista à Band, Fernanda rebateu: “Silvio, por que não te calas?”. Ele disse que não se calaria. Fernanda usou então suas redes sociais: "O corpo da mulher não é território público onde se pode meter a mão, avaliar, invadir, usar, agredir. Sigamos firmes e juntas construindo um grande abrigo de proteção para todas as mulheres contra qualquer violência machista”. O embate entre a apresentadora do Amor & Sexo e os machos alfas da TV não é novo, como se vê. Uma mulher falar de sexo e amor para milhões de telespectadores parece afetar masculinidades inseguras.

No programa Teleton, em 2017, depois da apresentação de um grupo de bailarinas plus size, Silvio chamou uma delas para entrevistar. Saiu-se com essa: "Você é muito graciosa. Embora seja a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade!”. É possível que ele acredite que reconhecer a beleza de uma negra, mesmo com tantas brancas ao redor, seja um elogio, o que já é bastante impressionante. Mas ele é exímio em tornar tudo ainda pior: "Quem casar contigo vai ter dois prazeres: um na hora do bem-bom e outro na hora em que você sai de cima".

Silvio Santos já deveria ter respondido pelas violações da lei que cometeu ao vivo, diante de milhões, em horário nobre, há muito. Mas cresce o número daqueles que o acham apenas “engraçado”. E dos que acreditam que tudo isso é apenas “normal”. O que essas pessoas que normalizam o que jamais poderia ser considerado normal não percebem é o quanto esses exemplos – e sua impunidade – repercutem nos atos cotidianos e se entranham nas relações sociais, estimulando crimes também contra o corpo. Ou percebem. E é por isso que o apoiam.

A manifestação mais surpreendente veio do ator Carlos Vereza. Durante a ditadura civil-militar (1964-85), ele era visto como um dos artistas mais atuantes e engajados contra a opressão. Vereza é também considerado um dos mais brilhantes atores da sua geração. Eleitor de Bolsonaro, ele fez a seguinte afirmação, em entrevista à Folha de S. Paulo: “Uma coisa que eu não entendo é por que, em todo ato de protesto, precisa ficar nu. E são corpos muito feios. (...) São mulheres feias, com cabelo embaixo do braço, barriga. Protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste. Não é nu”.

É claro que Vereza é muito mais sofisticado ao disseminar as suas agressões. Mas a declaração é bastante violenta. Para ele, apenas mulheres com determinado padrão de beleza têm o direito de exibir o corpo em público. Ao mesmo tempo, ele ecoa uma mentira que foi amplamente disseminada no WhatsApp. A última grande manifestação organizada por mulheres foi o movimento #EleNão, em 29 de setembro, contra o autoritarismo representado pela candidatura de Bolsonaro. Não houve nudez naquele protesto. Mas, no WhatsApp, partidários de Bolsonaro difundiram imagens de protestos diferentes, alguns deles nem ocorridos no Brasil. Como as TVs desistiram do jornalismo na ocasião, mal cobrindo as manifestações, virou “verdade”. Havia inclusive imagens de mulheres quebrando símbolos religiosos, o que nunca aconteceu no #EleNão.

Carlos Vereza não se refere nominalmente ao #EleNão, mas podemos suspeitar que, como eleitor de Bolsonaro, pudesse estar se referindo ao maior protesto contra o seu candidato na eleição de 2018. Ainda que não seja a este protesto que ele se refira, e ainda que o #EleNão tivesse de fato envolvido a nudez de mulheres, por que o corpo feminino usado como expressão política seria tão ofensivo? Será que, para Vereza, a nudez feminina só é legítima se servir ao gozo do homem, como foi por tantos séculos (e ainda é em muitos espaços)? Será que seria preciso passar por uma seleção coordenada por Vereza para que ele nos diga se nosso corpo é bom o suficiente para ser exposto sem ofender sua sensibilidade? Por que essa necessidade de atacar as mulheres desqualificando seu corpo?

E, então, a frase mais elitista: “protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste”. Para quem não sabe, Lacoste é uma marca francesa, cara, cujo produto mais famoso são as camisas polo. É aquela que tem um jacarezinho, amplamente pirateada pelos camelôs. O que Vereza está dizendo é que protesto é para homens, usuários mais habituais de camisas polo do que mulheres, gente vestida com roupas de grife, brasileiros capazes de pagar por isso. Protesto, portanto, não seria para pobres, na opinião do ator que já foi um símbolo de resistência contra o autoritarismo.

2) A polarização marcada por gênero e raça

Não me parece que essa coincidência de vozes seja apenas mais um dos ataques que as mulheres sofrem há tanto. A eleição de Bolsonaro, cujas frases desqualificando as mulheres já são bem conhecidas, destampou o ódio – e também o medo – de certo tipo de homem, que sofre por perder seus privilégios. Inclusive o privilégio de poder assediar uma mulher sem ser reprimido por isso. E não destampou apenas entre seus eleitores. Destampou no geral.

A dificuldade em perder privilégios de gênero marca tanto a direita quanto a esquerda, parte dela também machista, misógina e homofóbica. Atravessa as diversas classes sociais – e atravessa também as raças. Às vezes o único “privilégio” que um homem pobre tem é o de se sentir superior à mulher e poder assediar todas as que quiser livremente. Só que, se isso é entendido como privilégio, é preciso começar a compreender que não é um privilégio. É desigualdade e é violência. É inaceitável.

Esse aprendizado foi conquistado pela luta histórica das feministas e, mais recentemente, por movimentos como #primeiroassédio, no Brasil, e #MeToo, nos Estados Unidos, assim como o “Nenhuma a menos”, que se espalhou pela América Latina. Os avanços recentes das mulheres, com a emergência de jovens feministas e o nascimento de novos feminismos, com uma marca forte do crescente protagonismo das mulheres negras, assinalam este momento. Nenhum outro movimento se mostrou tão forte e fez tantas conquistas nos últimos anos quanto o das mulheres.

Bolsonaro reage também a isso. Ele jamais admitirá, mas ele e seus seguidores temem as “fraquejadas”. Bolsonaro é o macho destampado, que disfarça a ignorância como “sinceridade” e “autenticidade”, que se orgulha de poder dizer qualquer barbarismo simplesmente porque é homem e porque é branco. É um macho em defesa feroz do seu lugar no topo da cadeia alimentar. O presidente eleito majoritariamente por homens, mas também por muitas mulheres, representa bastante gente, até quem não confessa que, neste quesito, sente-se secretamente vingado por ele.

A ofensiva contra as mulheres não é algo colateral ou secundário na eleição de 2018, como pode parecer. É central. Na minha opinião, a grande marca desta eleição é gênero, raça e classe social. Como mostrou pesquisa do EL PAÍS, no primeiro turno Bolsonaro venceu nas dez cidades mais ricas do país e Fernando Haddad (PT) ganhou nas dez cidades mais pobres. Como é sabido, no Brasil a maioria dos mais pobres é negra e a maioria dos mais ricos é branca. Na pesquisa do Ibope, encomendada pela TV Globo e pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro ganhava por muito entre os homens (54% a 37%) e perdia por pouco entre as mulheres (41%, contra 44% de Haddad). A pesquisa foi realizada nos dias 26 e 27 de outubro, com margem de erro de 2 pontos e nível de confiança de 95%.

O candidato de extrema direita também ganhava por muito entre os mais escolarizados (53% a 35%) e perdia por muito entre os menos escolarizados (36%, contra 54% de Haddad). O populista também perdia por muito entre os que vivem com até 1 salário mínimo (32%, contra 56% de Haddad) e ganhava por muito entre os que recebem mais de cinco salários mínimos (63% a 29%). O candidato autoritário também ganhava por muito entre os brancos ( 58% a 31%) e perdia por pouco entre os negros (41%, contra os 47% de Haddad).

Esta é a polarização que revela bastante sobre o atual momento do país e sobre o peso das lutas identitárias nesta eleição. Não é a única variável determinante, mas sem dúvida uma delas. A religião, como já havia ficado claro, também é uma variável fundamental. Segundo a mesma pesquisa do Ibope, se entre os católicos houve empate técnico dos candidatos, entre os evangélicos Bolsonaro disparou.

3) As mulheres são a principal oposição a Bolsonaro

A grande oposição a Bolsonaro – e também a mais visível – é representada pelas mulheres. Mas é preciso lembrar que as mulheres não são um genérico. Bolsonaro perdeu mais votos entre as negras do que entre as brancas, entre as nordestinas mais do que entre as do Sul e Sudeste. A divisão regional, que já havia ficado clara na eleição de 2014, é outro indicador importante da partição histórica do Brasil.

A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi o #EleNão, que colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas em 29 de setembro. O #EleNão foi também a maior manifestação da eleição de 2018. Esse protesto foi contra Bolsonaro. E começou numa página de Facebook – “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” – criada por Ludmilla Teixeira, uma mulher nordestina da Bahia, de origem periférica e negra.

Negar a centralidade desse movimento de mulheres na oposição a Bolsonaro e ao autoritarismo que ele representa, na eleição mais complexa da democracia brasileira, obedece à mesma lógica sexista, machista e patriarcal que o presidente eleito representa. Parte da esquerda foi rápida em “culpar” o movimento #EleNão pelo aumento das intenções de voto em Bolsonaro. Intelectuais inteligentes fizeram questão de esquecer de outras variáveis e também que política não é instante, mas processo.

Excluído o #EleNão, haveria muito pouco para a parcela dos brasileiros que rejeitou Bolsonaro poder contar ao mundo, assim como afirmar que fez oposição consistente ao projeto autoritário de poder. O #EleNão foi o principal movimento de resistência a Bolsonaro e, num momento tão polarizado, conseguiu unir pessoas que até então nem se falavam, para muito além dos partidos políticos. Provou algo transgressor em um contexto tão precário: é possível conviver com as diferenças e lutar por aquilo que é comum.

Como Fernanda Lima entra nesta história? Ela, tão sulista, tão branca, tão loira, um modelo de beleza tão padrão que talvez fosse aprovado até mesmo pelos rigorosos critérios de seleção de Carlos Vereza, o que não quer ver “corpos feios” nas ruas? Quando “Amor & Sexo” começou, em 2009, possivelmente muitos esperavam apenas a excitação (no sentido Silvio Santos) de uma mulher jovem e bonita falando de sexo com pouca roupa. Fernanda mostrou que é possível discutir sexo com inteligência e franqueza sem nem se tornar um clichê de revista “feminina” nem uma Barbie para consumo masculino. Com boa direção e equipe de redatores, Amor & Sexo é um programa que foi se tornando cada vez mais interessante.

Especialmente nas últimas duas temporadas, o programa soube interpretar o momento político das lutas identitárias e levou o debate ao palco. Mas não apenas na boca de Fernanda. A apresentadora branca e heterossexual “soube compreender seu “lugar de fala”. Fernanda compartilhou o microfone e o programa tornou-se um espaço para ecoar várias identidades de gênero e de raça. E fez isso num momento em que outras vozes, em especial a de pastores evangélicos neopentecostais e a de sua bancada no Congresso, negociavam poder e recursos públicos a partir de ideias como a de que só existe um tipo de família, a do homem com a mulher, e a de que homossexualidade pode ser “curada”, como se doença fosse.

De objeto do desejo de homens pelo país, a Fernanda que não se deixou objetificar passou a ser odiada por uma parcela dos machos nacionais – e nacionalistas. Ela não só falava de sexo sem ser para o gozo dos homens como repudiava publicamente o assédio sexual. Ao compartilhar o microfone com outras identidades de gênero e raciais, a apresentadora, de certo modo, tornou-se uma traidora de seu gênero e raça, num país marcado pelo racismo e pela homofobia, que agora também tem um presidente declaradamente racista e homofóbico.

Fernanda Lima poderia ser apenas a mãe daquela que alguns consideram a “família perfeita”. Tem um marido igualmente branco, loiro e bonito, tem filhos gêmeos igualmente brancos, loiros e bonitos. Estão prontos para posar para as revistas de celebridades, o que também fazem. Mas Fernanda recusou o que para muitos era seu melhor papel, ou o único, e usou o espaço que conquistou para debater as outras possibilidades de existir neste mundo. É chamada de “imbecil” pelo eleitor de Bolsonaro exatamente por não ser a “imbecil” que esperavam que ela fosse. Se fosse “imbecil”, o clichê da “loira burra”, o bolsomacho estaria coçando a barriga satisfeito, porque acreditaria que tudo tinha voltado ao seu lugar.

4) De Dilma a Amélia, de Marcela a Fernanda

Fernanda é exatamente aquela que não se tornou “bela, recatada e do lar”, como foi descrita a mulher de Michel Temer (MDB), em perfil da revista Veja. O alvoroço causado pela jovem e loira esposa de Michel Temer ainda precisa ser melhor estudado. Ela foi vendida como uma personagem de propaganda de geladeira dos anos 60, mas muitos de seus admiradores, ao falar sobre ela, soavam como personagens de folhetim de Nelson Rodrigues. Quem ela é, de fato, o público não sabe.

O marido de Marcela traiu a companheira de chapa, Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher presidente da história do Brasil – ou presidenta, como ela preferia, que tomou posse ao lado da filha e não de um marido. Temer, o vice conspirador, estreou como presidente, por força de um impeachment, com um ministério totalmente branco e masculino, como se o Brasil ainda estivesse na República Velha.

O deslocamento do lugar da mulher, da primeira presidenta, o papel de máximo protagonismo de um país, para o de uma primeira-dama clássica, a sombra por trás do “grande homem”, não é um dado qualquer. O roteiro do impeachment tem muitas faces, uma delas é a da primeira mulher que assumiu o poder no Brasil sendo expulsa pela traição ética de um homem que ocupava um lugar subalterno e pela imoralidade corrupta de um Congresso composto majoritariamente por homens. A tragédia culminou com a declaração do então deputado Jair Bolsonaro ao votar pelo impeachment: “Em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff....”.

Naquele momento ninguém afirmaria que, apenas dois anos depois, Bolsonaro seria eleito presidente. Mas talvez sua corrida rumo à vitória tenha começado ali, com a intersecção da tortura sofrida durante a ditadura por uma mulher, a presidente que seu voto ajudava a expulsar do posto para o qual foi eleita, e a apologia ao torturador. Quando nada aconteceu após a fala criminosa e sádica de Bolsonaro, quando o impeachment sem justificativa consistente foi consumado, a sociedade brasileira ultrapassou um limite para o qual já não sabemos se há retorno. Naquele momento, o impeachment deixou de ser um instrumento previsto na Constituição. Bolsonaro o converteu em um novo episódio de tortura para Dilma Rousseff. As instituições compactuaram com o crime, e/ou se omitiram, mostrando-se aquém da democracia.

Durante o processo eleitoral, outra vítima de tortura foi atacada pelos seguidores de Bolsonaro. De novo, uma mulher. E, de novo, não acredito que sexo e gênero sejam coincidências. De Amélia Teles, o herói de Bolsonaro primeiro mandou que lhe arrancassem a roupa. Depois, aplicaram choques em seus seios, na vagina, no ânus, no umbigo, nos ouvidos e dentro da boca. Em outra sala de tortura estava seu marido, também sendo torturado. Ele entraria em coma pelos golpes infligidos em seu corpo. Quando Amelinha já estava urinada e vomitada, o militar mandou chamar seus dois filhos: uma menina de cinco anos, um menino de quatro. O menino não reconheceu a mãe, pelo tanto que a tortura a tinha desfigurado. “Só reconheci você pela voz”, ele lembraria muito mais tarde. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Só então Amelinha percebeu que os hematomas tinham deixado seu corpo inteiramente azul.

No segundo turno da campanha eleitoral, a pedido da equipe de Fernando Haddad (PT), Amélia e sua filha gravaram um depoimento para o programa político na TV, testemunhando o que viveram. Na sequência, seguidores de Bolsonaro promoveram um linchamento nas redes sociais: inventaram que ela tinha esquartejado dois militares quando fazia a resistência à ditadura. Criaram uma ficção em que a vítima seria a torturadora e assassina. Inverteram e subverteram a realidade. E a ameaçaram de morte. Agora com 74 anos, é como se Amélia estivesse sendo torturada mais uma vez. O judiciário, que nada fez com relação a apologia ao torturador, cometida por Bolsonaro, desta vez censurou a voz de Amelinha, ao proibir o programa. A liminar que a calou foi concedida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral, com a justificativa de que o programa promovia uma “distopia simulada”.

Os depoimentos das torturadas na ditadura revelam que havia um sadismo particular no ato de infligir sofrimento às mulheres. Primeiro, muitas delas foram estupradas. Ou seja. A violência sexual era usada como tortura. Baratas e ratos enfiados em suas vaginas era outra “técnica” habitual. Ao dar seu depoimento sobre a tortura que sofreu no regime de opressão, a jornalista Miriam Leitão relatou que os torturadores botaram uma jiboia viva em sua cela, apagaram a luz e a deixaram lá. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, comentou na ocasião: “Coitada da cobra!”.

Choques nos seios, no ânus e na vagina eram habituais. Muitas mulheres, como Crimeia Schmidt, foram torturadas mesmo estando grávidas. Irmã de Amelinha, Crimeia foi espancada diretamente por Ustra. Ela estava com sete meses de gestação. Ustra a tirou da cela pelos cabelos e começou dando tapas em seu rosto. Ela foi sendo arrastada pelo corredor, sempre apanhando. Desmaiou e, quando recuperou a consciência, já estava na sala de tortura, toda urinada. Era só o primeiro dia. Nos seguintes, Crimeia foi torturada pela equipe do coronel. Ustra só entrava na sala de tortura para dar uns tapas e ia embora. Este é o homem que inspira Bolsonaro e cujo rosto foi estampado em camisetas exibidas por seus filhos e seguidores durante a campanha eleitoral, sem que o judiciário achasse que fosse um problema.

O ódio das mulheres que ousam sair do lugar destinado a elas emergiu com toda a força neste momento, depois de ser reprimido nos últimos anos pelo “politicamente correto” que Bolsonaro e seus seguidores tanto abominam. Fernanda Lima é só o alvo mais recente. Haverá muitas outras. Logo depois do episódio, um site anunciou que a Globo teria decidido encerrar o programa Amor & Sexo, após o fim da temporada em exibição. A razão seria a “baixa audiência”. Seguidores de Bolsonaro urraram de gozo. É o que acontece com mulheres que enfrentam o “mito”, vociferavam. Não há confirmação oficial.

5) O silenciamento de Marielle Franco

Quando começa um estado de opressão? Quando a exceção se instala? Em The Handmaid’s Tale ( O Conto da Aia), a excelente série de TV baseada num livro de Margareth Atwood, há um diálogo sobre isso. “Mas quando isso começou?”, pergunta a personagem. E a resposta: “Estava acontecendo aos poucos e não percebemos”.

Para quem não viu, The Handmaid’s Tale é a obra que mais reflete o momento do Brasil – e de parte do mundo. Quem só viu a primeira temporada, não deixe de assistir à toda a segunda. “Submissão” (Alfaguara), o já tão falado livro do francês Michel Houellebecq, é outra obra que hoje faz muito mais sentido do que ontem. Tanto a série quanto o livro têm na opressão das mulheres a base do regime comandado por homens. O poder é exercido a partir do controle dos corpos femininos, do sexo e da reprodução. A boa ficção só vai melhorando com o tempo, porque foi capaz de ecoar o que apenas se balbuciava nos cantos da realidade.

Há muitos começos para a eclosão do autoritarismo representado pela eleição de Bolsonaro. Um deles é a escolha da sociedade brasileira e das instituições que a compõem de silenciar sobre os crimes da ditadura, deixando de punir os assassinos, torturadores e sequestradores do regime que oprimiu o país por 21 anos e abdicando de produzir marca e memória. Naquele momento, a democracia se corrompeu e passou a girar em falso. O outro começo, este decisivo para a vitória de Bolsonaro, foi o silenciamento diante da apologia à tortura em pleno parlamento, ligando um torturador, Ustra, à tortura sofrida por Dilma Rousseff – no passado e no presente.

O terceiro começo, este talvez definitivo, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 14 de março deste ano. Negra, lésbica e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle ecoava uma multiplicidade de vozes até então silenciadas. No legislativo, ela representava as várias periferias que avançavam sobre o centro. Então a calaram com quatro tiros na cabeça.

A aterradora impunidade do crime, há mais de oito meses sem resolução, com uma investigação povoada de estranhezas e de censuras, é mais um silenciamento. No sentido simbólico das forças opressoras que se moveram nesta eleição, a execução de Marielle pode ser considerada o ato inaugural da campanha de 2018. Mais tarde, seguidores de Bolsonaro arrancariam a placa de rua que a homenageava no Rio. Dias depois, opositores espalharam mil outras placas com o nome de Marielle.

O abismo vivido pelo Brasil foi escavado por silenciamentos. Em particular pelo silenciamento das vozes de mulheres, no caso de Marielle Franco literalmente. A melhor maneira de enfrentar a opressão que se infiltra desde o cotidiano, nos pequenos atos e nas pequenas desistências, dia após dia um pouco mais, é falar. Junt@s. Mulheres e homens que amam as mulheres: “ninguém solta a mão de ninguém”. Não sabemos quando acabará. Mas o fim do que só começou – ou continuou – depende do tamanho da resistência. E da capacidade de voltar a dar significado às palavras pelo debate e pelo confronto das ideias. O Brasil não pode mais tolerar silenciamentos. Como enfrentar a opressão? Recusando-se a silenciar.