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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O legado de um comandante invicto

Por Judite Santos, no site do MST:

Neste 25 de novembro completam-se dois anos da partida física do comandante Fidel Castro. Prestarmos nossa homenagem a este que foi sem dúvida, o maior dirigente revolucionário nessa quadra histórica em que vivemos.

Fidel Castro Ruz nasceu em 13 de agosto de 1926, no pequeno povoado de Birán, região oriental de Cuba. Seu pai havia sido recruta do exército espanhol na luta contra a independência de Cuba e depois retornou para instalar seu negócio e fazer sua vida na ilha, sua mãe era filha de camponeses pobres de Pinar del Río, região ocidental de Cuba. Don Angel Castro e Dona Lina Ruz se casaram em 1922 e tiveram 7 sete filhos, entre eles

Fidel e Raul Castro, que futuramente se tornaram os principais líderes da Revolução Cubana.
Desde jovem Fidel Castro começou sua vida política como líder na luta contra o regime ditatorial em Cuba, rebelando-se contra a ordem vigente e construindo na maioria oprimida - o sujeito social como protagonista do processo de libertação nacional.

Após o golpe de março de 1952, que levou ao governo o ditador Fulgêncio Batista, Fidel se dedicou a organizar um movimento clandestino com ideias revolucionarias. A única saída seria a tomada do poder.

O radicalismo do assalto ao quartel Moncada, em 26 de julho de 1953, evidencia o jovem Fidel determinado a organizar uma luta valente e audaciosa para libertar Cuba da tirania.

Além de denunciar os crimes cometidos contra os assaltantes do quartel de Moncada, ele apresentou um consistente programa político do que viria a ser a Revolução Cubana. Fidel anunciou na época, “condenem-me, não importa. A história me absolverá”.

Após o fracasso do assalto ao quartel Moncada, Fidel cumpriu quase dois anos de reclusão, etapa onde pode amadurecer com uma firmeza inabalável os propósitos da Revolução. Saiu da prisão com a missão de fundar um movimento para dar continuidade ao processo revolucionário em Cuba, afirmando que a liberdade nada mais era do que o dever de seguir lutando. Assim, no dia 12 de junho de 1955, fundou o Movimento 26 de Julho, com a participação de Aydée Santamaría, Ñico López e outros revolucionários cubanos.

Logo parte para o exílio no México e ali começa a organizar um grupo de combatentes que voltariam à Cuba para implementar a luta guerrilheira. No México Fidel Castro conheceu Che Guevara e, desde então, tornaram-se amigos com profundo afeto entre si e compromisso com a transformação social.

Aos 30 anos de idade, Fidel Castro parte para Cuba, em um iate com 82 expedicionários a bordo, e desencadeiam a luta revolucionaria na Sierra Maestra, em dezembro de 1956. Surge assim, ao Exército Rebelde que triunfa em pouco mais de dois anos, em janeiro de 1959.

Fidel Castro foi uma liderança que deixou a sua marca na história. Ferrenho defensor da bandeira anti-imperialista, como líder comunista jogou um papel fundamental e influente nos assuntos globais. Seu legado deve emanar na rebeldia, principalmente da juventude, do nosso tempo histórico em que vivemos a reascensão conservadora sob forte ameaça de uma nova forma fascista, com o aprofundamento da violência, perda da soberania e uma crescente pauperização da classe trabalhadora.

Neste sentido, recordamos Fidel como:

Soldado das ideias 

Fidel foi um grande defensor da batalha das ideias, no momento mais difícil da Revolução Cubana. No chamado período especial, lançou o desafio da luta ideológica como forma de enfrentar o imperialismo. O debate massivo sobre os rumos da revolução, a defesa da ética revolucionária, bem como o caráter socialista baseado em princípios e valores éticos, foi o que garantiu a continuidade da unidade nacional e internacional em torno do socialismo.

Para os tempos atuais, é fundamental pensar na batalha ideológica como forma de enfrentar o rebaixamento da luta política que a direita ultraconservadora está tentando nos impor. É necessário que os instrumentos da classe trabalhadora, como partidos, sindicatos e movimentos sociais, tenham em conta a disputa pelo conteúdo ideológico na luta de classes em seus programas para o próximo período.

Fidel foi capaz de elaborar um pensamento crítico que transformou Cuba numa sociedade altiva e disposta a levar adiante a construção de uma nova de sociabilidade. O silêncio que reinava em meio a uma multidão durante as longas horas de discursos na Praça da Revolução era uma prova do seu papel como educador do povo. 

Comandante das massas

Fidel Castro sempre teve um vínculo indissolúvel com as massas. Foi um educador com brilhante oratória e enorme capacidade de dialogar com os setores populares. Entregou-se sem limites à causa da Revolução.

Che Guevara, ao despedir-se em 1965, antes de partir para Bolívia, chamou-o de brilhante estadista ao reconhecer o papel de comandante em chefe num dos momentos mais difíceis de Cuba: a crise dos misseis. Nas palavras de Che “vivi dias magníficos e a teu lado, senti o orgulho de pertencer ao nosso povo nos dias brilhantes, embora tristes, da crise caribenha. Raramente um estadista foi mais brilhante do que você naqueles dias. Orgulho-me, também, de ter te seguido sem vacilar, identificado com tua maneira de pensar e analisar os perigos e os princípios”. 

Os ideólogos da burguesia quiseram atribuir a Fidel um status de assassino, ditador e outros tantos atributos para desconstruir a sua imagem, mas a história demonstrou seu exemplo desde o líder guerrilheiro ao extraordinário estadista carregado de valores humanos como a humildade e o carisma enquanto essência da sua personalidade. Desde jovem soube agregar a militância, construiu a unidade em torno de uma ideia e de um objetivo: salvar Cuba da tirania. 

Quando nos deixou, uma multidão saiu às ruas dar o ultimo adeus àquele que foi artífice da dignidade humana em Cuba. A Caravana da Liberdade, de janeiro de 1959, foi reeditada no sentido inverso até chegar novamente no berço da revolução, em Santiago de Cuba, “onde, como no resto do país, recebeu o testemunho de amor dos cubanos”, como discursou Raul Castro, no dia 03 de dezembro de 2016, na última cerimônia de despedida de Fidel.

Mas não foi somente Cuba que chorou sua partida, nós também choramos, o mundo chorou e não foi um lamento de tristeza, choramos a alegria de haver tido a oportunidade de viver este tempo histórico e conhecido a grandeza deste ser humano. Cada confim deste planeta demonstrou com um gesto simbólico de lealdade e num eco que vinha desde Cuba, também gritamos juntos: “yo soy Fidel”!

Estrategista radical 

Desde o assalto ao quartel Moncada, Fidel Castro demonstrou ter a convicção de que a luta para derrotar o inimigo tinha que ser longa e radical. A tomada do poder era um requisito indispensável para a transformação de Cuba, ele se propunha ir ao “assalto aos céus”, a partir do mundo colonizado chamado América Latina, como nos disse Fernando Martínez Heredia. 

Depois veio o desembarque do iate Granma, surpreendido pelas forças do exército que quase acabou com a epopeia dos jovens revolucionários, e, logo, Sierra Maestra, onde provou sua capacidade como estrategista no Exército Rebelde. Cada combate, cada vitória assegurava que o caminho elegido levaria mais cedo ou mais tarde ao triunfo revolucionário.

Não foram dias fáceis para o Movimento 26 de julho, os meses de guerrilha na Sierra Maestra, somada à luta clandestina de milhares de operários, campesinos estudantes na cidade, tornou possível a vitória estratégica. E após, cinco anos e cinco meses, do Moncada, num 1° de janeiro de 1959, o Exército Rebelde triunfou em Cuba. A luta estava só começando...

Fidel dirigiu a Revolução Cubana durante mais de 50 anos, sempre com a capacidade de olhar para frente, saber escutar e conversar. A revolução foi sem dúvida uma obra coletiva, mas sem a direção de Fidel e seus companheiros possivelmente não teria chegado aonde chegou. Içar a Revolução Cubana como parte fundamental do movimento revolucionário mundial foi um dos seus maiores méritos. 

Anti-imperialista convicto

Fidel sempre soube que o maior inimigo de Cuba era o imperialismo. Ainda na Sierra Maestra, em 6 de junho de 1958, escreveu à Celia Sánchez uma carta onde expressava que seu verdadeiro destino seria a luta contra o imperialismo. E assim, a bandeira anti-imperialista tem sido uma constante na política revolucionária cubana.

Quando os Estados Unidos perceberam que havia uma Revolução embaixo de seu nariz, tentaram de todas as formas esmagá-la. A invasão de Playa Girón, ou Bahia dos Porcos, como é conhecida, foi um dos episódios mais radicais depois do triunfo revolucionário e marcou um momento importante na história da Revolução: foi a primeira derrota imperialista na América Latina.

Este episódio levou Cuba ao seu caminho sem volta, quando Fidel declarou o Caráter Socialista da Revolução, em 16 de abril de 1961.

Fidel foi um dos maiores anti-imperialistas da historia contemporânea. Criticou veementemente todas as formas de opressão, as guerras e as formas de ingerência praticada pelos EUA, durante mais de meio século até os últimos dias da sua vida, afirmando sempre que a soberania nacional é intangível e não se negocia.

Este maestro ensinou que é imprescindível o anti-imperialismo como palavra de ordem do campo popular para guiar os processos de mudanças sociais, principalmente na América Latina.

Internacionalista 

Com o mesmo espírito em que Fidel se tornou anti-imperialista convicto, também se tornou um impulsionador e dirigente internacionalista, afinal, para combater o capitalismo na sua forma imperialista, é preciso travar uma luta de caráter internacional.

O internacionalismo cubano é baseado na solidariedade entre os povos. Foi com este sentido de solidariedade humana que Cuba enviou ajuda a outros povos do mundo na luta contra o colonialismo e a agressão imperialista, sobretudo no continente africano.

A Revolução Cubana foi fundamental para a derrota do regime racista do apartheid Sul-africano, participando decisivamente no processo de independência de Angola e da Namíbia. Sem a participação de meio milhão de cubanos sob comando de Fidel Castro na Operação Carlota, não teria sido possível a vitória de Angola, em 16 anos de guerra pela integridade territorial.

Para Fidel Castro, “solidariedade não é dar o que nos sobra e sim o que nos faz falta”, dessa maneira, o abnegado povo cubano apresentou ao mundo as qualidades humanas forjadas pela Revolução. Desde combatentes, médicos, professores, técnicos e muitas outras profissões, com Fidel sempre à frente, Cuba provou que era possível combater o criminal bloqueio econômico imposto pelos EUA e multiplicar-se de maneira fraterna e solidária no mundo, levando apoio e solidariedade aos povos mais necessitados.

Cuba também abriu as portas para milhares de estudantes do mundo inteiro sem cobrar-lhes um centavo, a maioria proveniente dos países mais pobres. Hoje continuam enviando com médicos e profissionais da saúde para prestar serviços em diferentes partes do mundo.

Certamente, Fidel estaria de braços abertos para receber seu exército de batas brancas, que cumpriram seu mais nobre dever de salvar vidas aqui no Brasil, no Programa Mais Médicos, e os chamaria novamente de “verdadeiro guardião da saúde e da vida, prestes a marchar para qualquer país onde seja necessário, e convencido de que um mundo melhor é possível”.

Estes internacionalistas, médicos extraordinários, agora retornam à sua pátria com o dever cumprido e um profundo sentimento em deixar um país onde a política do ódio prevaleceu ao amor pela vida. Não temos dúvidas de que estes estarão dispostos a sair pelos rincões do mundo cumprir outras missões humanitárias.

É importante sempre, ao evocarmos o legado de Fidel Castro, considerar o momento histórico em que vivemos: não basta exaltar as qualidades extraordinárias deste comandante exemplar, precisamos traduzir Fidel para a nossa realidade e agarrar as suas contribuições como instrumento da nossa ação. 

Homenagear Fidel é reivindicá-lo enquanto autoridade moral na luta pelo socialismo!

"Mais Médicos" e a solidariedade cubana

Por Pedro de Oliveira, no Blog do Renato:

Nesta última semana, diante das ameaças e desqualificações perpetradas pelo presidente eleito do Brasil, Jari Bolsonaro, o Governo da República de Cuba foi obrigado a suspender a participação de médicos cubanos no Programa Mais Médicos. Este programa foi assinado entre Cuba e o Brasil sob o patrocínio da Organização Pan-Americana de Saúde, que faz parte do Sistema das Nações Unidas, instituído no final da década de 40 do século passado, logo em seguida à fundação da ONU.

Em nota, o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, Cebrapaz, assinalou que “durante cinco anos da participação de Cuba no programa, os profissionais de saúde cubanos atenderam 113 milhões de brasileiros, muitos deles pela primeira vez recebendo cuidados médicos”.

O Cebrapaz explica ainda em sua manifestação pública que “os médicos cubanos, por sua formação, encaram a medicina, antes de mais nada, como uma missão humanitária e não como um meio para o enriquecimento pessoal. Assim, iam aonde eram necessários ao povo. Iam aonde outros se recusavam a ir”.

Fidel Castro, o líder revolucionário cubano falecido em 25 de novembro de 2016, estava vivo ainda quando a participação cubana neste programa Mais Médicos foi estabelecido e pode-se dizer com certeza que o compromisso foi fruto do que se poderia chamar uma política de Estado baseada na solidariedade internacional. Em uma série de entrevistas que foram transformadas em livro pelo escritor francês Ignácio Ramonet, Fidel revelou ser portador de um sonho – levar a saúde e o conhecimento, a medicina e a educação aos quatro cantos do mundo – o que Ramonet considerou tratar-se de um sonho impossível, e o que foi contestado pelo seu entrevistado dizendo que “nada é impossível”, como na obra do herói preferido do líder cubano, Dom Quixote.

A solidariedade internacional como política de Estado

Exemplo do tipo de orientação voltada para a solidariedade humanista é a criação do Centro Nacional de Investigações Científicas (CNIC), fundado em 1965. Hoje o CNIC está subordinado ao Grupo de Indústrias Biotecnológica e Farmacêuticas (Bio-Cuba-Farma) – surgido na década de 1980 – que aglutina 38 empresas e 79 fábricas, onde atuam 22 mil trabalhadores, dos quais 400 são doutores e 600 mestres. O Polo Científico de Biotecnologia da Bio-Cuba-Farma já registrou 1.050 patentes e exporta em torno de 650 milhões de dólares a cada ano, sendo a principal pauta de exportação do país. Seus produtos, entre os quais o Interferon, são comercializados em mais de 50 países. Nestas instituições, existem experiências de transferência de tecnologia, como é o caso da China, onde a Bio-Cuba-Farma opera duas empresas mistas. Há dez anos foi constituído, também, um grupo de cooperação científica Cuba-Brasil. Os medicamentos e produtos produzidos são distribuídos às farmácias de todo o país, onde podem ser adquiridos pela população a preços subsidiados. É importante referir que para pacientes internados nos hospitais os medicamentos são fornecidos gratuitamente.

Mais um instrumento de solidariedade reconhecido internacionalmente é a Escola Latino-Americana de Ciências Médicas, a ELACM, que foi criada em 1999 nas instalações da antiga Academia Naval de Cuba, as quais foram adaptadas para recebê-la. Inicialmente foi voltada à formação de médicos para os países da América Central, oriundos de famílias humildes, sem condições de custear os seus estudos em seus países de origem.

A ideia surgiu em fins da década de 1990, quando Cuba prestou uma grande ajuda humanitária a diversos países da América Central, atingidos pelos terríveis furacões George e Mitch, que em outubro/novembro de 1998 devastaram o Caribe e a América Central. Amadureceu, então, a proposta de – além da ajuda com médicos, em momentos de calamidade – criar uma escola para a formação permanente de médicos para esses países. Em um segundo momento, os países africanos foram incluídos no projeto. O sucesso foi tão grande que hoje a ELACM forma médicos de famílias humildes de todas as partes do mundo, inclusive dos Estados Unidos.

Esse espírito solidário do povo cubano já havia ficado demonstrado em 1963 quando Cuba enviou – apesar de haver perdido metade dos 6 mil médicos que possuía antes da Revolução, que preferiram acompanhar o ditador Fulgêncio Batista em seu exílio – 57 médicos para ajudar as vítimas de um forte terremoto em países centro-americanos. Entre 1963 e 2013, Cuba prestou colaboração médica aos países africanos, através de diferentes programas, com a participação de mais de 76.700 colaboradores da área de saúde, dos quais 53.628 médicos. Hoje, Cuba tem mais de 60 mil colaboradores na área da saúde em todo o mundo, principalmente nas áreas mais remotas e desassistidas, como é o caso dos que atuam no Programa Mais Médicos no Brasil – que infelizmente serão todos retirados do país até o final de dezembro.

O papel internacionalista do Instituto Finlay

O Instituto Finlay – mundialmente reconhecido como um centro de excelência na produção de vacinas – iniciou suas atividades produtivas no ano de 1989, especializando-se na produção de vacinas contra enfermidades bacterianas. De 1990 a 2012 fez parte do Polo Científico de Oeste de Havana, tendo a partir de 2012 passado a fazer parte da Bio-Cuba-Farma. Atua no ciclo completo de Investigação, Desenvolvimento e Produção. Está instalado em uma área de 20 mil m2, sendo metade para atividades de produção. Dentre seus 800 funcionários, 27 são doutores, 150 mestres e 70% possuem formação técnica.

Foi ele quem descobriu a vacina contra a meningite B, com a qual Cuba conseguiu enfrentar a epidemia dessa doença que ali se manifestou e que logo também ocorreu no Brasil, na Colômbia e na Argentina. Na ocasião, o Brasil, adquiriu 25 milhões de doses dessa vacina, o que foi fundamental para enfrentar essa grave epidemia. Igualmente a Colômbia e a Argentina ampararam-se na vacina cubana para enfrentar o problema. Posteriormente, foram desenvolvidas com êxito as vacinas contra as meningites A, C e ACW. Além destas, o Instituto Finlay produz a vacina tetravalente (tétano, difteria, coqueluche, hepatite), penta-valente (essas quatro, mais a hemófila influenza), contra a pneumonia e onco BCG (para o câncer de bexiga). Seu trabalho tem sido essencial para o Programa Nacional de Imunização em Cuba, criado em 1991.

Enfim, a participação de Cuba no Programa Mais Médicos é um dos aspectos de uma gigantesca política de solidariedade do Estado cubano com os povos do mundo inteiro que envolve a formação de jovens médicos vindos de inúmeros países – entre estes o Brasil – a produção de vacinas importantes para o tratamento de epidemias – inclusive no Brasil – e o tratamento de várias doenças como é o cuidado médico de centenas de crianças ucranianas afetadas pelas consequências da tragédia atômica ocorrida na Ucrânia, em 26 de abril de 1986, com a explosão em um reator da Usina nuclear de Chernobyl.


* Os dados e informações deste artigo foram coletados in loco na cidade de Havana, durante a viagem de uma delegação parlamentar a Cuba, capitaneada pelo então deputado estadual Raul Carrion, do PCdoB-RS, da qual tive a oportunidade de participar como jornalista.

* Pedro de Oliveira é jornalista, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e da Editoria Executiva do Sitio Internacionalismo 21.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ataque dos machos brancos

A tensão de gênero, raça e classe marcou a eleição de 2018

Eliane Brum

A apresentadora Fernanda Lima foi linchada nas redes sociais por ter encerrado a edição do seu programa “Amor & Sexo”, de 6 de novembro, na TV Globo, com as seguintes palavras. É bom ler vírgula por vírgula, porque a quantidade de gente que comenta, julga e condena sem sequer ler tem se multiplicado mais do que baratas. E, às vezes, com o cérebro de uma. Fernanda disse:

– Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?

O programa havia sido gravado em julho, como ela afirmou nas redes sociais, mas de imediato uma horda de seguidores de Jair Bolsonaro (PSL) interpretou a fala da apresentadora como um manifesto contra a eleição de seu “mito”. Como é possível? É bastante possível, é mesmo até previsível. Se a apresentadora está conclamando as mulheres a lutar contra a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia (ódio às mulheres), e os eleitores de Bolsonaro se ofendem e revidam o que consideram um ataque pessoal ao seu líder, é porque compreendem que o presidente eleito defende e proclama a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia. Entendem tudo muito bem.

Se Fernanda Lima invoca o público a combater a submissão, a tirania e a repressão, e os eleitores de Bolsonaro se ofendem, é porque entendem que Bolsonaro – e também eles – defendem a submissão (das mulheres, dos LGBTQIe dos negros), a tirania e a repressão. Nenhuma novidade. Quem denunciou o projeto autoritário de Bolsonaro já sabia disso. Ao contrário de parte do eleitorado do deputado profissional, quem a ele se opôs acreditou na violência que Bolsonaro propagou publicamente durante quase 30 anos. Acreditou no que ele disse. Exatamente por acreditar, milhões de pessoas lutaram contra a sua candidatura. Esta, a propósito, é mais uma característica curiosa desta eleição: parte dos eleitores dizia não acreditar que seu candidato faria o que dizia que faria – e por isso votaram nele. É difícil de entender? É.

O que talvez ainda pudesse surpreender é uma horda de pessoas linchar verbalmente alguém porque a vítima defende valores fundamentais da civilização, que pareciam já consolidados, como a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e a tirania. Mas chegamos a este ponto. E certamente daqui passaremos para muito mais abaixo. Não estamos nem perto do fundo do poço sem fundo.

1) Quando as “fraquejadas” incomodam

Um dos mais raivosos com a luta de Fernanda Lima contra o machismo respondeu com a elegância e o respeito que caracterizam uma parcela dos seguidores de Bolsonaro, feitos a imagem e semelhança do “mito”. Assim, o cantor Eduardo Costa expressou a si mesmo: “Mais de 60 (sic) milhões de brasileiros e brasileiras votaram no Bolsonaro e agora essa imbecil com esse discurso de esquerdista! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco, e o lado mais fraco hoje é o que ela está. Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela?”.

Que ser de esquerda signifique também combater a tirania, o machismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, perfeitamente justo. E bastante honroso. Mas duvido que parte da direita não compartilhe dos mesmos valores humanitários básicos. Há uma direita que suspeito que possa ficar ofendida por ter sido apartada destes valores. Mas cadê ela? Muda como uma freira que fez voto de silêncio.

Os que não fazem votos de silêncio são os pastores de certas igrejas evangélicas– não todas, definitivamente não todas. Conhecedor de seus fiéis, o deputado Marco Feliciano (Pode) se manifestou na imprensa Gospel com a certeza de que seu público só leria o que ele disse, não o que Fernanda efetivamente falou. E seu público nunca o decepciona. Então mentiu: “Em uma das últimas apresentações, ela (Fernanda Lima) vociferou críticas ferozes e mentirosas ao presidente eleito Jair Bolsonaro. Sua fala denotava um ódio escancarado e uma falta de respeito à maioria do povo brasileiro, entre eles muitos de seus espectadores, numa linguagem de revolucionário clandestino, como se estivesse falando de alguma caverna do Afeganistão”.

Leiam mais uma vez o que Fernanda Lima disse. Como ela pode ter ofendido Jair Bolsonaro? Como as dependências da TV Globo (!!!!) podem ser comparadas com uma caverna do Afeganistão? Para que possamos conversar, é preciso manter uma afinidade mínima com os fatos. Embora se saiba que Bolsonaro defende o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia e a tirania, ter ideias diferentes não é ofender, apenas discordar. Neste caso, apenas cumprir a lei, já que racismo, por exemplo, é crime. Sem contar que Bolsonaro jamais foi citado no programa, gravado muito antes do primeiro turno das eleições.

Mas a fala de Feliciano, um pastor que já foi acusado de tentativa de estupro e que já afirmou que os negros descendem de um “ancestral amaldiçoado por Noé”, não surpreende ninguém. O que surpreende é ele “denunciar” que alguém é contra a opressão das mulheres e o racismo. O evangelismo dele seria a favor? Feliciano pode ser o que ele é e responder pelo que diz e faz na justiça, mas não pode tratar seu comportamento como se fosse a forma correta de se mover numa sociedade. Esta é a insanidade do momento. Tratar comportamentos antiéticos e imorais, alguns deles previstos no Código Penal como crime, como a forma correta de agir – ou como se a eleição de Bolsonaro tivesse bastado para rasgar a Constituição e defecar no Código Penal.

Dias depois do ataque à Fernanda Lima, duas manifestações de homens brancos e velhos clarearam um pouco mais o atual cenário brasileiro. (Para deixar explícito desde já, quem me lê sabe a defesa contundente que eu faço da velhicee minha crítica com relação a expressões como “terceira idade” ou “melhor idade”). Os dois homens brancos e velhos têm vozes com poder de ecoarem longe, um deles tem também microfone e concessão de TV. Mas ambos têm trajetórias bastante diferentes. Neste momento de tantas velhas novidades, porém, também eles se aproximam no pensamento.

O primeiro é Silvio Santos. Ao vivo, na TV, o apresentador e dono do SBT, ao receber a cantora Claudia Leitte, afirmou que não a abraçaria. "Esse negócio de ficar dando abraço me excita e eu não gosto de ficar excitado", disse o apresentador. Surpreendida pelo desrespeito, Claudia retrucou: "No sentido feliz da palavra, né? De alegria, euforia, excitação”. Silvio, obviamente, perdeu a chance de se redimir em público: "Não, não é euforia, não. É excitação mesmo”. E a câmera focou nas pernas da cantora, para deixar claro para os milhões que assistiam ao programa o que deixava o patrão tão sexualmente excitado.

Silvio Santos é notório por pelo menos duas características: bajular todos os governos, ditatoriais ou não, ao ponto do constrangimento, e acreditar que assediar e ofender mulheres é um direito adquirido que não pode ser barrado pelo “politicamente correto”. A expressão, a propósito, é a mais odiada por pessoas como ele, já que acham injusto refrear seus instintos em nome da convivência e do respeito ao outro. Em julho, o dono do SBT fez o seguinte comentário a respeito de Fernanda Lima: “Com essas pernas finas e essa cara de gripe, ela não teria nem amor nem sexo”.

Em entrevista à Band, Fernanda rebateu: “Silvio, por que não te calas?”. Ele disse que não se calaria. Fernanda usou então suas redes sociais: "O corpo da mulher não é território público onde se pode meter a mão, avaliar, invadir, usar, agredir. Sigamos firmes e juntas construindo um grande abrigo de proteção para todas as mulheres contra qualquer violência machista”. O embate entre a apresentadora do Amor & Sexo e os machos alfas da TV não é novo, como se vê. Uma mulher falar de sexo e amor para milhões de telespectadores parece afetar masculinidades inseguras.

No programa Teleton, em 2017, depois da apresentação de um grupo de bailarinas plus size, Silvio chamou uma delas para entrevistar. Saiu-se com essa: "Você é muito graciosa. Embora seja a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade!”. É possível que ele acredite que reconhecer a beleza de uma negra, mesmo com tantas brancas ao redor, seja um elogio, o que já é bastante impressionante. Mas ele é exímio em tornar tudo ainda pior: "Quem casar contigo vai ter dois prazeres: um na hora do bem-bom e outro na hora em que você sai de cima".

Silvio Santos já deveria ter respondido pelas violações da lei que cometeu ao vivo, diante de milhões, em horário nobre, há muito. Mas cresce o número daqueles que o acham apenas “engraçado”. E dos que acreditam que tudo isso é apenas “normal”. O que essas pessoas que normalizam o que jamais poderia ser considerado normal não percebem é o quanto esses exemplos – e sua impunidade – repercutem nos atos cotidianos e se entranham nas relações sociais, estimulando crimes também contra o corpo. Ou percebem. E é por isso que o apoiam.

A manifestação mais surpreendente veio do ator Carlos Vereza. Durante a ditadura civil-militar (1964-85), ele era visto como um dos artistas mais atuantes e engajados contra a opressão. Vereza é também considerado um dos mais brilhantes atores da sua geração. Eleitor de Bolsonaro, ele fez a seguinte afirmação, em entrevista à Folha de S. Paulo: “Uma coisa que eu não entendo é por que, em todo ato de protesto, precisa ficar nu. E são corpos muito feios. (...) São mulheres feias, com cabelo embaixo do braço, barriga. Protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste. Não é nu”.

É claro que Vereza é muito mais sofisticado ao disseminar as suas agressões. Mas a declaração é bastante violenta. Para ele, apenas mulheres com determinado padrão de beleza têm o direito de exibir o corpo em público. Ao mesmo tempo, ele ecoa uma mentira que foi amplamente disseminada no WhatsApp. A última grande manifestação organizada por mulheres foi o movimento #EleNão, em 29 de setembro, contra o autoritarismo representado pela candidatura de Bolsonaro. Não houve nudez naquele protesto. Mas, no WhatsApp, partidários de Bolsonaro difundiram imagens de protestos diferentes, alguns deles nem ocorridos no Brasil. Como as TVs desistiram do jornalismo na ocasião, mal cobrindo as manifestações, virou “verdade”. Havia inclusive imagens de mulheres quebrando símbolos religiosos, o que nunca aconteceu no #EleNão.

Carlos Vereza não se refere nominalmente ao #EleNão, mas podemos suspeitar que, como eleitor de Bolsonaro, pudesse estar se referindo ao maior protesto contra o seu candidato na eleição de 2018. Ainda que não seja a este protesto que ele se refira, e ainda que o #EleNão tivesse de fato envolvido a nudez de mulheres, por que o corpo feminino usado como expressão política seria tão ofensivo? Será que, para Vereza, a nudez feminina só é legítima se servir ao gozo do homem, como foi por tantos séculos (e ainda é em muitos espaços)? Será que seria preciso passar por uma seleção coordenada por Vereza para que ele nos diga se nosso corpo é bom o suficiente para ser exposto sem ofender sua sensibilidade? Por que essa necessidade de atacar as mulheres desqualificando seu corpo?

E, então, a frase mais elitista: “protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste”. Para quem não sabe, Lacoste é uma marca francesa, cara, cujo produto mais famoso são as camisas polo. É aquela que tem um jacarezinho, amplamente pirateada pelos camelôs. O que Vereza está dizendo é que protesto é para homens, usuários mais habituais de camisas polo do que mulheres, gente vestida com roupas de grife, brasileiros capazes de pagar por isso. Protesto, portanto, não seria para pobres, na opinião do ator que já foi um símbolo de resistência contra o autoritarismo.

2) A polarização marcada por gênero e raça

Não me parece que essa coincidência de vozes seja apenas mais um dos ataques que as mulheres sofrem há tanto. A eleição de Bolsonaro, cujas frases desqualificando as mulheres já são bem conhecidas, destampou o ódio – e também o medo – de certo tipo de homem, que sofre por perder seus privilégios. Inclusive o privilégio de poder assediar uma mulher sem ser reprimido por isso. E não destampou apenas entre seus eleitores. Destampou no geral.

A dificuldade em perder privilégios de gênero marca tanto a direita quanto a esquerda, parte dela também machista, misógina e homofóbica. Atravessa as diversas classes sociais – e atravessa também as raças. Às vezes o único “privilégio” que um homem pobre tem é o de se sentir superior à mulher e poder assediar todas as que quiser livremente. Só que, se isso é entendido como privilégio, é preciso começar a compreender que não é um privilégio. É desigualdade e é violência. É inaceitável.

Esse aprendizado foi conquistado pela luta histórica das feministas e, mais recentemente, por movimentos como #primeiroassédio, no Brasil, e #MeToo, nos Estados Unidos, assim como o “Nenhuma a menos”, que se espalhou pela América Latina. Os avanços recentes das mulheres, com a emergência de jovens feministas e o nascimento de novos feminismos, com uma marca forte do crescente protagonismo das mulheres negras, assinalam este momento. Nenhum outro movimento se mostrou tão forte e fez tantas conquistas nos últimos anos quanto o das mulheres.

Bolsonaro reage também a isso. Ele jamais admitirá, mas ele e seus seguidores temem as “fraquejadas”. Bolsonaro é o macho destampado, que disfarça a ignorância como “sinceridade” e “autenticidade”, que se orgulha de poder dizer qualquer barbarismo simplesmente porque é homem e porque é branco. É um macho em defesa feroz do seu lugar no topo da cadeia alimentar. O presidente eleito majoritariamente por homens, mas também por muitas mulheres, representa bastante gente, até quem não confessa que, neste quesito, sente-se secretamente vingado por ele.

A ofensiva contra as mulheres não é algo colateral ou secundário na eleição de 2018, como pode parecer. É central. Na minha opinião, a grande marca desta eleição é gênero, raça e classe social. Como mostrou pesquisa do EL PAÍS, no primeiro turno Bolsonaro venceu nas dez cidades mais ricas do país e Fernando Haddad (PT) ganhou nas dez cidades mais pobres. Como é sabido, no Brasil a maioria dos mais pobres é negra e a maioria dos mais ricos é branca. Na pesquisa do Ibope, encomendada pela TV Globo e pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro ganhava por muito entre os homens (54% a 37%) e perdia por pouco entre as mulheres (41%, contra 44% de Haddad). A pesquisa foi realizada nos dias 26 e 27 de outubro, com margem de erro de 2 pontos e nível de confiança de 95%.

O candidato de extrema direita também ganhava por muito entre os mais escolarizados (53% a 35%) e perdia por muito entre os menos escolarizados (36%, contra 54% de Haddad). O populista também perdia por muito entre os que vivem com até 1 salário mínimo (32%, contra 56% de Haddad) e ganhava por muito entre os que recebem mais de cinco salários mínimos (63% a 29%). O candidato autoritário também ganhava por muito entre os brancos ( 58% a 31%) e perdia por pouco entre os negros (41%, contra os 47% de Haddad).

Esta é a polarização que revela bastante sobre o atual momento do país e sobre o peso das lutas identitárias nesta eleição. Não é a única variável determinante, mas sem dúvida uma delas. A religião, como já havia ficado claro, também é uma variável fundamental. Segundo a mesma pesquisa do Ibope, se entre os católicos houve empate técnico dos candidatos, entre os evangélicos Bolsonaro disparou.

3) As mulheres são a principal oposição a Bolsonaro

A grande oposição a Bolsonaro – e também a mais visível – é representada pelas mulheres. Mas é preciso lembrar que as mulheres não são um genérico. Bolsonaro perdeu mais votos entre as negras do que entre as brancas, entre as nordestinas mais do que entre as do Sul e Sudeste. A divisão regional, que já havia ficado clara na eleição de 2014, é outro indicador importante da partição histórica do Brasil.

A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi o #EleNão, que colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas em 29 de setembro. O #EleNão foi também a maior manifestação da eleição de 2018. Esse protesto foi contra Bolsonaro. E começou numa página de Facebook – “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” – criada por Ludmilla Teixeira, uma mulher nordestina da Bahia, de origem periférica e negra.

Negar a centralidade desse movimento de mulheres na oposição a Bolsonaro e ao autoritarismo que ele representa, na eleição mais complexa da democracia brasileira, obedece à mesma lógica sexista, machista e patriarcal que o presidente eleito representa. Parte da esquerda foi rápida em “culpar” o movimento #EleNão pelo aumento das intenções de voto em Bolsonaro. Intelectuais inteligentes fizeram questão de esquecer de outras variáveis e também que política não é instante, mas processo.

Excluído o #EleNão, haveria muito pouco para a parcela dos brasileiros que rejeitou Bolsonaro poder contar ao mundo, assim como afirmar que fez oposição consistente ao projeto autoritário de poder. O #EleNão foi o principal movimento de resistência a Bolsonaro e, num momento tão polarizado, conseguiu unir pessoas que até então nem se falavam, para muito além dos partidos políticos. Provou algo transgressor em um contexto tão precário: é possível conviver com as diferenças e lutar por aquilo que é comum.

Como Fernanda Lima entra nesta história? Ela, tão sulista, tão branca, tão loira, um modelo de beleza tão padrão que talvez fosse aprovado até mesmo pelos rigorosos critérios de seleção de Carlos Vereza, o que não quer ver “corpos feios” nas ruas? Quando “Amor & Sexo” começou, em 2009, possivelmente muitos esperavam apenas a excitação (no sentido Silvio Santos) de uma mulher jovem e bonita falando de sexo com pouca roupa. Fernanda mostrou que é possível discutir sexo com inteligência e franqueza sem nem se tornar um clichê de revista “feminina” nem uma Barbie para consumo masculino. Com boa direção e equipe de redatores, Amor & Sexo é um programa que foi se tornando cada vez mais interessante.

Especialmente nas últimas duas temporadas, o programa soube interpretar o momento político das lutas identitárias e levou o debate ao palco. Mas não apenas na boca de Fernanda. A apresentadora branca e heterossexual “soube compreender seu “lugar de fala”. Fernanda compartilhou o microfone e o programa tornou-se um espaço para ecoar várias identidades de gênero e de raça. E fez isso num momento em que outras vozes, em especial a de pastores evangélicos neopentecostais e a de sua bancada no Congresso, negociavam poder e recursos públicos a partir de ideias como a de que só existe um tipo de família, a do homem com a mulher, e a de que homossexualidade pode ser “curada”, como se doença fosse.

De objeto do desejo de homens pelo país, a Fernanda que não se deixou objetificar passou a ser odiada por uma parcela dos machos nacionais – e nacionalistas. Ela não só falava de sexo sem ser para o gozo dos homens como repudiava publicamente o assédio sexual. Ao compartilhar o microfone com outras identidades de gênero e raciais, a apresentadora, de certo modo, tornou-se uma traidora de seu gênero e raça, num país marcado pelo racismo e pela homofobia, que agora também tem um presidente declaradamente racista e homofóbico.

Fernanda Lima poderia ser apenas a mãe daquela que alguns consideram a “família perfeita”. Tem um marido igualmente branco, loiro e bonito, tem filhos gêmeos igualmente brancos, loiros e bonitos. Estão prontos para posar para as revistas de celebridades, o que também fazem. Mas Fernanda recusou o que para muitos era seu melhor papel, ou o único, e usou o espaço que conquistou para debater as outras possibilidades de existir neste mundo. É chamada de “imbecil” pelo eleitor de Bolsonaro exatamente por não ser a “imbecil” que esperavam que ela fosse. Se fosse “imbecil”, o clichê da “loira burra”, o bolsomacho estaria coçando a barriga satisfeito, porque acreditaria que tudo tinha voltado ao seu lugar.

4) De Dilma a Amélia, de Marcela a Fernanda

Fernanda é exatamente aquela que não se tornou “bela, recatada e do lar”, como foi descrita a mulher de Michel Temer (MDB), em perfil da revista Veja. O alvoroço causado pela jovem e loira esposa de Michel Temer ainda precisa ser melhor estudado. Ela foi vendida como uma personagem de propaganda de geladeira dos anos 60, mas muitos de seus admiradores, ao falar sobre ela, soavam como personagens de folhetim de Nelson Rodrigues. Quem ela é, de fato, o público não sabe.

O marido de Marcela traiu a companheira de chapa, Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher presidente da história do Brasil – ou presidenta, como ela preferia, que tomou posse ao lado da filha e não de um marido. Temer, o vice conspirador, estreou como presidente, por força de um impeachment, com um ministério totalmente branco e masculino, como se o Brasil ainda estivesse na República Velha.

O deslocamento do lugar da mulher, da primeira presidenta, o papel de máximo protagonismo de um país, para o de uma primeira-dama clássica, a sombra por trás do “grande homem”, não é um dado qualquer. O roteiro do impeachment tem muitas faces, uma delas é a da primeira mulher que assumiu o poder no Brasil sendo expulsa pela traição ética de um homem que ocupava um lugar subalterno e pela imoralidade corrupta de um Congresso composto majoritariamente por homens. A tragédia culminou com a declaração do então deputado Jair Bolsonaro ao votar pelo impeachment: “Em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff....”.

Naquele momento ninguém afirmaria que, apenas dois anos depois, Bolsonaro seria eleito presidente. Mas talvez sua corrida rumo à vitória tenha começado ali, com a intersecção da tortura sofrida durante a ditadura por uma mulher, a presidente que seu voto ajudava a expulsar do posto para o qual foi eleita, e a apologia ao torturador. Quando nada aconteceu após a fala criminosa e sádica de Bolsonaro, quando o impeachment sem justificativa consistente foi consumado, a sociedade brasileira ultrapassou um limite para o qual já não sabemos se há retorno. Naquele momento, o impeachment deixou de ser um instrumento previsto na Constituição. Bolsonaro o converteu em um novo episódio de tortura para Dilma Rousseff. As instituições compactuaram com o crime, e/ou se omitiram, mostrando-se aquém da democracia.

Durante o processo eleitoral, outra vítima de tortura foi atacada pelos seguidores de Bolsonaro. De novo, uma mulher. E, de novo, não acredito que sexo e gênero sejam coincidências. De Amélia Teles, o herói de Bolsonaro primeiro mandou que lhe arrancassem a roupa. Depois, aplicaram choques em seus seios, na vagina, no ânus, no umbigo, nos ouvidos e dentro da boca. Em outra sala de tortura estava seu marido, também sendo torturado. Ele entraria em coma pelos golpes infligidos em seu corpo. Quando Amelinha já estava urinada e vomitada, o militar mandou chamar seus dois filhos: uma menina de cinco anos, um menino de quatro. O menino não reconheceu a mãe, pelo tanto que a tortura a tinha desfigurado. “Só reconheci você pela voz”, ele lembraria muito mais tarde. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Só então Amelinha percebeu que os hematomas tinham deixado seu corpo inteiramente azul.

No segundo turno da campanha eleitoral, a pedido da equipe de Fernando Haddad (PT), Amélia e sua filha gravaram um depoimento para o programa político na TV, testemunhando o que viveram. Na sequência, seguidores de Bolsonaro promoveram um linchamento nas redes sociais: inventaram que ela tinha esquartejado dois militares quando fazia a resistência à ditadura. Criaram uma ficção em que a vítima seria a torturadora e assassina. Inverteram e subverteram a realidade. E a ameaçaram de morte. Agora com 74 anos, é como se Amélia estivesse sendo torturada mais uma vez. O judiciário, que nada fez com relação a apologia ao torturador, cometida por Bolsonaro, desta vez censurou a voz de Amelinha, ao proibir o programa. A liminar que a calou foi concedida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral, com a justificativa de que o programa promovia uma “distopia simulada”.

Os depoimentos das torturadas na ditadura revelam que havia um sadismo particular no ato de infligir sofrimento às mulheres. Primeiro, muitas delas foram estupradas. Ou seja. A violência sexual era usada como tortura. Baratas e ratos enfiados em suas vaginas era outra “técnica” habitual. Ao dar seu depoimento sobre a tortura que sofreu no regime de opressão, a jornalista Miriam Leitão relatou que os torturadores botaram uma jiboia viva em sua cela, apagaram a luz e a deixaram lá. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, comentou na ocasião: “Coitada da cobra!”.

Choques nos seios, no ânus e na vagina eram habituais. Muitas mulheres, como Crimeia Schmidt, foram torturadas mesmo estando grávidas. Irmã de Amelinha, Crimeia foi espancada diretamente por Ustra. Ela estava com sete meses de gestação. Ustra a tirou da cela pelos cabelos e começou dando tapas em seu rosto. Ela foi sendo arrastada pelo corredor, sempre apanhando. Desmaiou e, quando recuperou a consciência, já estava na sala de tortura, toda urinada. Era só o primeiro dia. Nos seguintes, Crimeia foi torturada pela equipe do coronel. Ustra só entrava na sala de tortura para dar uns tapas e ia embora. Este é o homem que inspira Bolsonaro e cujo rosto foi estampado em camisetas exibidas por seus filhos e seguidores durante a campanha eleitoral, sem que o judiciário achasse que fosse um problema.

O ódio das mulheres que ousam sair do lugar destinado a elas emergiu com toda a força neste momento, depois de ser reprimido nos últimos anos pelo “politicamente correto” que Bolsonaro e seus seguidores tanto abominam. Fernanda Lima é só o alvo mais recente. Haverá muitas outras. Logo depois do episódio, um site anunciou que a Globo teria decidido encerrar o programa Amor & Sexo, após o fim da temporada em exibição. A razão seria a “baixa audiência”. Seguidores de Bolsonaro urraram de gozo. É o que acontece com mulheres que enfrentam o “mito”, vociferavam. Não há confirmação oficial.

5) O silenciamento de Marielle Franco

Quando começa um estado de opressão? Quando a exceção se instala? Em The Handmaid’s Tale ( O Conto da Aia), a excelente série de TV baseada num livro de Margareth Atwood, há um diálogo sobre isso. “Mas quando isso começou?”, pergunta a personagem. E a resposta: “Estava acontecendo aos poucos e não percebemos”.

Para quem não viu, The Handmaid’s Tale é a obra que mais reflete o momento do Brasil – e de parte do mundo. Quem só viu a primeira temporada, não deixe de assistir à toda a segunda. “Submissão” (Alfaguara), o já tão falado livro do francês Michel Houellebecq, é outra obra que hoje faz muito mais sentido do que ontem. Tanto a série quanto o livro têm na opressão das mulheres a base do regime comandado por homens. O poder é exercido a partir do controle dos corpos femininos, do sexo e da reprodução. A boa ficção só vai melhorando com o tempo, porque foi capaz de ecoar o que apenas se balbuciava nos cantos da realidade.

Há muitos começos para a eclosão do autoritarismo representado pela eleição de Bolsonaro. Um deles é a escolha da sociedade brasileira e das instituições que a compõem de silenciar sobre os crimes da ditadura, deixando de punir os assassinos, torturadores e sequestradores do regime que oprimiu o país por 21 anos e abdicando de produzir marca e memória. Naquele momento, a democracia se corrompeu e passou a girar em falso. O outro começo, este decisivo para a vitória de Bolsonaro, foi o silenciamento diante da apologia à tortura em pleno parlamento, ligando um torturador, Ustra, à tortura sofrida por Dilma Rousseff – no passado e no presente.

O terceiro começo, este talvez definitivo, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 14 de março deste ano. Negra, lésbica e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle ecoava uma multiplicidade de vozes até então silenciadas. No legislativo, ela representava as várias periferias que avançavam sobre o centro. Então a calaram com quatro tiros na cabeça.

A aterradora impunidade do crime, há mais de oito meses sem resolução, com uma investigação povoada de estranhezas e de censuras, é mais um silenciamento. No sentido simbólico das forças opressoras que se moveram nesta eleição, a execução de Marielle pode ser considerada o ato inaugural da campanha de 2018. Mais tarde, seguidores de Bolsonaro arrancariam a placa de rua que a homenageava no Rio. Dias depois, opositores espalharam mil outras placas com o nome de Marielle.

O abismo vivido pelo Brasil foi escavado por silenciamentos. Em particular pelo silenciamento das vozes de mulheres, no caso de Marielle Franco literalmente. A melhor maneira de enfrentar a opressão que se infiltra desde o cotidiano, nos pequenos atos e nas pequenas desistências, dia após dia um pouco mais, é falar. Junt@s. Mulheres e homens que amam as mulheres: “ninguém solta a mão de ninguém”. Não sabemos quando acabará. Mas o fim do que só começou – ou continuou – depende do tamanho da resistência. E da capacidade de voltar a dar significado às palavras pelo debate e pelo confronto das ideias. O Brasil não pode mais tolerar silenciamentos. Como enfrentar a opressão? Recusando-se a silenciar.

sábado, 17 de novembro de 2018

Brasil: Uma biografia


A pergunta que não quer calar

248 dias.
Quem matou Marielle? Quem matou Anderson?
Quem mandou matar Marielle?

Aécio Neves já pediu desculpas a Moro?




O tucano Aécio Neves, um dos principais responsáveis pelo Brasil ter ingressado na era das trevas – com o golpe do impeachment, a quadrilha de Michel Temer, as hordas fascistas e a vitória do troglodita Jair Bolsonaro –, é recordista em denúncias de corrupção no país. Apesar disto, ele nunca foi seriamente incomodado pela seletiva “Justiça”. O cambaleante sempre teve grandes amigos neste poder elitista – basta lembrar os afagos e risadas entre ele e o "justiceiro" Sergio Moro em um convescote da revista QuantoÉ. Agora, porém, sua situação ficou mais complicada. Ele virou pó na política e aspira pouco na carreira. Nesta sexta-feira (16), o jornal O Globo publicou uma matéria ácida contra o ex-chefão do falido PSDB. 

A reportagem de Aguirre Talento traz trechos do depoimento sigiloso de Waldir Rocha Pena, dono de um supermercado em Belo Horizonte. O empresário afirma que seu estabelecimento foi usado pela JBS para pagar propina a políticos e que ele pessoalmente fez entregas de dinheiro vivo a um primo do senador Aécio Neves (PSDB-MG), Frederico Pacheco, e a um ex-assessor do senador Zezé Perrella (MDB-MG), Mendherson Souza. Essas entregas, relatou o empresário, foram feitas em caixas de sabão em pó. Como aponta o jornal, o depoimento dado à Receita Federal e enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) corrobora a delação da JBS e constitui mais uma prova contundente do pagamento de propina ao grão-tucano e ao famoso dono do “helicoca”. 

Em sua delação premiada, Ricardo Saud, ex-diretor da JBS, havia relatado que garantiu os repasses para Aécio Neves por meio de operações financeiras com um supermercado de Belo Horizonte e da entrega de dinheiro a Frederico Pacheco, primo do tucano. Ele revelou ter repassado cerca de R$ 4 milhões ao tucano nessas operações. Waldir Pena, sócio do Supermercado BH Comércio de Alimentos, confirmou as denúncias e apenas deu novos detalhes. Ele não citou valores, mas a investigação obteve documentos contábeis que apontam que as entregas em dinheiro vivo totalizaram cerca de R$ 6 milhões, informa O Globo. 

Agora como superministro da Justiça de um governo neofascista, o ex-juiz Sergio Moro talvez nem se pronuncie sobre a nova denúncia contra Aécio Neves. Mas se for incomodado pela mídia chapa-branca, ele pode usar o mesmo argumento utilizado para aliviar a barra de Onyx Lorenzoni, que também foi acusado de usar caixa dois em campanhas eleitorais. O implacável justiceiro afirmou que seu novo coleguinha de ministério “já admitiu o erro e pediu desculpas”, o que já garantiria a sua inocência. Como ironizou o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, criou uma nova norma penal. “É a extinção de punibilidade se houver pedido de desculpas. Talvez ele possa colocar isso nas tais medidas que está dizendo que vai aprovar contra a corrupção".

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A guerra ideológica do bolsonarismo



Por Tereza Cruvinel, no Jornal do Brasil:

A eleição passou mas os grupos de whatsapp do bolsonarismo continuam em franca atividade, alimentando a guerra ideológica e cultural que o presidente eleito também atiça, ao investir contra as universidades e contra o Enem, cujas provas promete fiscalizar, como fez na transmissão de sexta-feira à noite por uma rede social. 

A “ideologia de gênero” e sua maior lenda, o kit gay, o antipetismo e o comunismo continuam com a cotação alta nos grupos, indicando que o obscurantismo e a intolerância não foram espasmos da campanha. Vieram para ficar.

A continuidade da guerrilha digital não decorre de fanatismo dos adoradores do mito mas de uma estratégia de marketing que o clã Bolsonaro e seus aliados puseram em prática, conhecida lá fora como “firehosing”, de matriz russa. Em tradução aproximada, seria a técnica do uso da mangueira de fogo, o despejo constante de informações, em sua maioria fake news, distorcendo a realidade e forjando percepções coletivas. 

O “firehosing” mantém as pessoas mobilizadas em torno dos temas pautados e desligadas das decisões que realmente importam.

Ao jornal El País, o administrador de 75 grupos de WhatsApp, o empreendedor Carlos Nacli, radicado em Portugal, disse que a estrutura foi mantida para dar suporte às “pautas que serão importantes ao desenvolvimento do Brasil” pois, a seu ver, grande parte da mídia persegue Bolsonaro. 

Os disparos em massa que o TSE está investigando certamente cessaram mas o fluxo continua, em ritmo menor.

As mensagens dos últimos dias passam ao lago dos fatos polêmicos produzidos pelo presidente eleito e sua equipe. Não comentam decisões mal recebidas, como a de fundir os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, da qual ele recuou, nem a de acabar com o Ministério do Trabalho. 

Ignoraram a reação do Egito ao anúncio de que a embaixada brasileira em Israel poderia ser transferida para Jerusalém e o empenho em aprovar logo a reforma previdenciária. Já o aumento do Judiciário é atacado como sabotagem do Congresso a Bolsonaro.

Em compensação, ontem circularam intensamente trechos da fala de Bolsonaro na noite de sexta, como aquela em que ele criticou a prova do Enem, tomando como pregação da tal ideologia de gênero a questão que deu como exemplo de dialeto a linguagem da comunidade LGBT. 

“Essa prova do Enem, com a linguagem particular daquelas pessoas, é um absurdo. Vai obrigar a molecada a aprender sobre isso? Não vai ter questão dessa forma no ano que vem porque nós vamos ver a prova antes”. 

E ainda a parte em que ele compara o centro acadêmico da UnB a “um ninho de ratos”, com camisinhas e maconha pelo chão. “Vão me chamar de fascista, vão me chamar de ditador, mas vamos tentar mudar isso aí, tá ok? Boa parte do dinheiro nas universidades é jogado fora". 

Essa convicção da extrema-direita e dos conservadores de que existe um aparelhamento ideológico da educação brasileira explica o incentivo às delações de professores e o empenho pela aprovação do projeto Escola Sem Partido, que Bolsonaro apoia. Ele planeja mudar a lei que estabelece a escolha de reitores a partir de lista tríplice votada pela comunidade acadêmica.

O PT e o “comunismo” seguem como temas bem cotados.


Em circulação, o vídeo em que um pastor da Igreja Universal “exorciza” uma “entidade de esquerda” do corpo de uma mulher possuída, que guincha e se estrebucha.
A performance termina com um quadro negro dividido em duas colunas.

Na da esquerda, a lista das desgraças que a esquerda traz: vícios, doenças, brigas, suicídio e outros mais. Na da direita, virtudes e conquistas, como paz, prosperidade, libertação, sucesso e autocontrole.

Não é a palavra que importa, são as atitudes

Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:


O presidente eleito, o capitão reformado Jair Bolsonaro, tem sido tratado como fascista e representante da extrema-direita por cientistas políticos estrangeiros e pela imprensa internacional. No Brasil, onde sua ação radical se renova e aprofunda a cada dia, há uma suavidade constrangida que escorre dos manuais de redação do jornalismo dito profissional e de acadêmicos titulados. Tem sido vendido como de centro-direita e tratado com uma condescendência servil. Para seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, ele “parece moderado”.


A dissonância não se dá entre o Brasil e o mundo, mas entre os fatos e sua interpretação. É importante destacar que o julgamento da imprensa e a avaliação de um magistrado deveriam ser honestos e competentes o suficiente para analisar declarações e atitudes que sequer exigem muito discernimento. Bolsonaro atacou a liberdade de imprensa, ameaçou quem discorda dele com cadeia ou exílio, fez declarações racistas, misóginas e homofóbicas. E muito mais.

Enumerou medidas de seu governo que vão da censura ao comprometimento da liberdade de cátedra, estimulou a denúncia de professores que pensam diferente de suas convicções, mentiu repetidamente sobre o uso de material didático destinado a educação sexual nas escolas públicas, se mostrou leniente com ações violentas tomadas em seu nome por partidários e eleitores, inclusive espancamentos e mortes.

A lista segue. Defendeu o armamento do cidadão como política de segurança e a liberdade de matar como estratégia de combate à criminalidade. Carregou com ele orgulhosamente o filho deputado que se insurgiu aberta e jocosamente contra o Supremo Tribunal Federal, inclusive em visitas às cortes judiciais. Apontou o horizonte de militarização da administração pública, em setores nos quais as Forças Armadas não têm história ou experiência. Anunciou uma cruzada moralista contra as artes e a cultura, em nome de valores religiosos particulares.

Sem falar das outras promessas de campanha, francamente reativas, antipopulares e liberticidas, igualmente criticadas por 10 de 10 jornais sérios do mundo. Por aqui, seguem vendidas com naturalidade pela mídia nativa, mesmo quando estas são barradas em coletivas, xingadas em discursos públicos e ameaçadas em rede nacional. Como não existe propriamente um programa de governo além dos chavões conservadores e do rascunho neoliberal em economia, vamos recebendo aos poucos as notícias que não surpreendem, mas preocupam.

Vão nessa linha a extinção do Ministério do Trabalho, a guinada provocativa e isolacionista em política externa, a privatização selvagem das empresas públicas, a entrega do setor agrário ao apetite do agronegócio e das empresas produtoras de venenos, sem cuidado com a sustentabilidade ambiental. E, como coroamento, a promessa de tratar movimentos populares como terroristas, algo que nem mesmo Moro conseguiu engolir sem engasgar. Mas acabou engolindo.

Outros tempos, violências permanentes

No entanto, mesmo com tantos e tão fortes atos, parece haver uma dificuldade em carimbar o presidente eleito como fascista. Até mesmo setores progressistas têm levado adiante uma discussão histórica e teórica que matiza o bolsonarismo em nome de filigranas. É claro que não estamos na Itália e na Alemanha das primeiras décadas do século passado. É óbvio que o contexto é outro e as forças que permitiram o crescimento da onda conservadora e antipolítica são distintas. Como são singulares as condições da crise atual e os novos inimigos escolhidos para concentrar a corrente de ódio. A esquerda é diferente, os instrumentos de comunicação são de natureza tecnológica diversa.

Além disso, o estágio do capitalismo internacional é também muito peculiar, o conservadorismo tem outras bandeiras. A tendência à valorização de mitos irracionais se escora em outros tipos de lideranças e signos. O militarismo das hordas se concentra agora na caserna açulada com a perspectiva de poder real sem necessidade de golpe. O anti-intelectualismo tem seu reino absoluto no extermínio das instâncias de pensamento e entronização de nulidades internéticas a vomitar baboseiras e palavrões.

Mesmo as grandes interpretações do fascismo são insuficientes para a atual conjuntura. Das raízes do totalitarismo explicadas por Hannah Arendt ao desenvolvimento da personalidade autoritária decifrada por Adorno. Do ressentimento de classe apontado por Lipset à repressão sexual que funda a violência denunciada por Reich. Do desenraizamento e tensões geradas por um desenvolvimento desigual, analisadas por Parsons, à irracionalidade arcaica e religiosa percebida por Bloch. Além das análises de Gramsci, Fromm, Eugen Weber, Albright e até mesmo cineastas como Fellini, Visconti e Bertolucci.

Tudo isso pode parecer pólvora demais para o cartucho de Bolsonaro. O fato de suas palavras e atitudes – sem falar das ameaças que pairam como urubus no horizonte – não se enquadrarem no figurino do fascismo clássico não tiram dele o perigo e o sinal de alerta. Se não é academicamente fascista, o militar reformado tem se mostrado pródigo naquilo que o historiador americano Robert Paxton chamou de “sentimentos viscerais” em seu livro A anatomia do fascismo.

Entre essas inclinações se destacam: primazia do grupo frente ao quais todos devem se subordinar, mesmo além do direito; autoridade concentrada num comandante único, que encarna o destino do grupo; superioridade do instinto do líder sobre a razão abstrata e universal; beleza da violência e eficácia da vontade; direito do eleito em dominar os demais sem restrições que venham de qualquer tipo de lei humana ou divina. Quem não enxerga o mito nesse diagnóstico deve trabalhar na Globo News.

O mais grave, contudo, não é fugir dos fatos solares do autoritarismo explicito para se aferrar à letra do conceito ou da singularidade histórica. Se o fascismo ainda não chegou, já mandou vários whatsApps. Qualquer estratégia de resistência deve considerar a realidade histórica do fascismo para se mostrar à altura do desafio atual. Esqueça a palavra, combata o mal.

Como alertou o historiador Donald Sasson em seu livro Mussolini e a ascensão do fascismo: “Mussolini poderia ter sido contido, mas aqueles capazes de bloquear sua trajetória – os liberais, a esquerda, a Igreja, a monarquia – não souberam ou não quiseram fazê-lo, caminhando para 20 anos de ditadura como se tivessem de olhos vendados”. Substitua o nome do ditador italiano e torça para não esperar 20 anos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Edir Macedo e as demissões na TV Gazeta

Por Altamiro Borges

Nesta segunda-feira (5), a Fundação Cásper Líbero demitiu cerca de 80 funcionários, metade deles da TV Gazeta. Em uma nota lacônica, ela afirmou tratar-se de “reestruturação interna com o objetivo de equalizar as despesas à realidade das receitas do momento”, e culpou “a situação macroeconômica, com forte retração no mercado publicitário” pelo doloroso facão. É certo que a recessão – e a própria crise do modelo de negócios da mídia tradicional – contribuiu para os cortes. Mas há boatos de que as dispensas também já refletem as trevas de Jair Bolsonaro. O bispo “charlatão” Edir Macedo, dono da Record, poderia estar por traz das demissões. 

O jornalista Flávio Ricco, do site UOL, foi o primeiro a levantar essa suspeita no artigo intitulado “Gazeta renova com a Universal e praticamente extingue o jornalismo”. Conforme observou, a componente surpresa neste facão foi a retomada das negociações da emissora com a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). O contrato de publicidade havia terminado em setembro, mas foi refeito inesperadamente nos bastidores. “A saída da Igreja Universal da TV Gazeta foi só por um mês, em outubro. O antigo contrato terminou em 30 de setembro e a sua programação voltou a ser veiculada, como se nada tivesse acontecido, no dia 1º de novembro. A Iurd, em relação à TV Gazeta, continua ocupando os mesmos horários, 6h às 7h da manhã, 8h às 10h da noite. Só não existem informações, claro, sobre os valores do antigo e atual contratos”. 

Já o jornalista Mauricio Stycer registra que “a TV Gazeta está promovendo um corte drástico de pessoal na área de jornalismo. Cerca de 25 profissionais foram demitidos nesta segunda-feira, incluindo executivos, apresentadores, produtores e repórteres da emissora paulista. O corte representa cerca de 70% do departamento do jornalismo. Entre os afastados estão Dácio Nitrini, diretor do departamento, Wagner Kotsura, chefe de redação, Sérgio Galvão, editor-chefe do ‘Jornal da Gazeta’, Gabriel Cruz e Stella Gontijo, apresentadores. O ‘Jornal da Gazeta’, edição das 22h, foi extinto. O principal, a edição das 19h, permanece, mas de forma limitada, já que apenas dois repórteres foram preservados das demissões”. Ele também lembra que “a TV Gazeta sofreu um baque recente nas receitas devido à renegociação da venda de horários para a Igreja Universal”.

A área de jornalismo da TV Gazeta vinha destoando da linha editorial das demais emissoras privadas. Com profissionais mais críticos, como o jornalista Bob Fernandes, ela fez uma cobertura mais isenta do golpe do impeachment contra Dilma Rousseff e também apontou os riscos da candidatura ultradireitista de Jair Bolsonaro. Mas a emissora da Fundação Cásper Libero, com baixa audiência e pouco faturamento em publicidade, há muito que já dependia dos recursos da Iurd, que ocupa parte importante da sua grade de programação. Como o "bispo" Edir Macedo, dono da Iurd e da Record, virou um cabo eleitoral do fascista, as suspeitas de represálias têm consistência.

domingo, 4 de novembro de 2018

A recompensa do cabo eleitoral Sergio Moro

Por Rodrigo Martins, na revista CartaCapital:


Com a sua habitual sinceridade e, aparentemente, total falta de senso de oportunidade, o general Hamilton Mourão, vice-presidente eleito, revelou poucas horas antes do anúncio oficial o arranjo que levou o juiz Sergio Moro a aceitar o convite para assumir um “superministério” da Justiça no governo de Jair Bolsonaro.

Segundo Mourão, a sondagem ficou a cargo de outro futuro “superministro” (esta administração mais parece um filme da Marvel), o economista Paulo Guedes, ainda no primeiro turno. “Isso faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, descreveu o militar.

Vamos esclarecer a situação: Moro foi sondado quando a campanha estava em curso. Mesmo assim, não teve pudor em valer-se de sua posição de magistrado para dar uma força ao candidato que lhe prometera um cargo no governo e acenara com outra possibilidade, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal.

Uma semana antes do primeiro turno, quando a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas ainda não tinha se transformado em um tsunami, o juiz abriu o sigilo de trechos da delação do ex-ministro Antonio Palocci que repisavam acusações contra Lula e o Partido dos Trabalhadores, cujo candidato Fernando Haddad experimentava até então certo crescimento na preferência do eleitorado.

No despacho que avocou trechos da delação e os tornou públicos, Moro deixou claro que as acusações de Palocci não teriam nenhuma serventia no inquérito que investigava o suposto pagamento de propina de empreiteiras na reforma de um sítio em Atibaia atribuído ao ex-presidente Lula.

Sem utilidade para o processo, as declarações do ex-ministro alimentaram por dias o noticiário e engrossaram as iniciativas, entre elas a farta distribuição de notícias falsas contra a candidatura de Fernando Haddad nas redes sociais, para reavivar o antipetismo. 

“É de uma gravidade espantosa a revelação de Mourão. É a prova testemunhal da relação criminosa e perversa da Lava Jato e Bolsonaro. Quando Moro vazou a delação de Palocci, já se sabia que, se Bolsonaro fosse eleito, ele seria ministro”, protesta o deputado Paulo Pimenta, líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados.

“Agora fica mais fácil entender a implacável perseguição da Lava Jato contra Lula, o desespero de Moro para que o habeas corpus para soltá-lo não fosse cumprido e a decisão para que permanecesse isolado durante a campanha, sem nenhum contato com a imprensa.”

A atuação na reta final do primeiro turno, que a revelação de Mourão permite definir como deliberada, partidária e eleitoreira, coroa a atuação parcial de Moro desde o início da Operação Lava Jato. Para eliminar o principal adversário de Bolsonaro na corrida presidencial, ele afrontou repetidas vezes o Estado Democrático de Direito.

Ordenou a espetaculosa condução coercitiva de Lula sem antes chamá-lo para depor, mandou grampear o escritório dos advogados de defesa, divulgou escutas ilegais com a então presidente da República, Dilma Rousseff, entre outras arbitrariedades consentidas pelas cortes superiores. 

De olho no calendário eleitoral e articulado com os desembargadores do TRF da 4ª Região, Moro acelerou a condenação do petista sem provas, por “crimes indeterminados”. Concluída a interdição judicial de Lula, franco favorito a vencer as eleições deste ano, empenhou-se para mantê-lo amordaçado. Decidiu até mesmo adiar depoimentos do réu para impedir qualquer manifestação pública que pudesse influir no processo eleitoral. 

De fato, poucos se empenharam tanto em impulsionar a campanha do capitão da reserva do Exército. O inquisidor de Curitiba nem precisaria ter se exposto tanto, como fez ao parabenizar Bolsonaro pela vitória com 98% das urnas apuradas. “Encerradas as eleições, cabe congratular o presidente eleito e desejar que faça um bom governo”, manifestou-se por meio de nota.

Exultante, a esposa do magistrado, Rosângela Moro, compartilhou nas redes sociais um vídeo, no qual a estátua do Cristo Redentor se move em reverência ao número 17. “Feliz”, dizia a legenda. Em outro post, divulgou uma ilustração do mapa do Brasil, com a frase “Sob nova direção”.

Bolsonaro só revelou a intenção de nomear Moro para o Ministério da Justiça ou para o STF na segunda-feira 29, em sua primeira entrevista exclusiva após a vitória, para a TV Record de Edir Macedo. Depois, diante da bancada do Jornal Nacional, da Rede Globo, reiterou o convite público, deixando a critério do magistrado escolher o caminho a trilhar.

“É um homem com passado exemplar no combate à corrupção e, em qualquer uma das duas casas, levaria avante a sua proposta”, afirmou o novo presidente. “Fico honrado com a lembrança. Caso efetivado oportunamente o convite, será objeto de ponderada discussão e reflexão”, disse Moro no dia seguinte, deixando a expectativa no ar.

Após encontrar-se com Bolsonaro no Rio de Janeiro, na manhã da quinta-feira 1º de novembro, Moro pôs fim às especulações ao anunciar, por meio de nota, ter aceitado o “honrado convite”. Para o juiz paranaense, o Ministério da Justiça é uma forma de antecipar a sua ida para Brasília, uma vez que a primeira vaga na Suprema Corte só deve ser aberta em 2020, quando o ministro Celso de Mello completa 75 anos e será aposentado compulsoriamente.

“Fiz com certo pesar, pois terei de abandonar 22 anos de magistratura. No entanto, a perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado levaram-me a tomar essa decisão”, afirmou o juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba.

“A Operação Lava Jato seguirá em Curitiba com os valorosos juízes locais. De todo modo, para evitar controvérsias desnecessárias, devo desde logo afastar-me de novas audiências.” Curiosa mudança. Em novembro de 2016, em entrevista a O Estado de S. Paulo, Moro foi peremptório: “Jamais entraria para a política”.

O magistrado deixou o condomínio onde mora Bolsonaro por volta das 10h45 da quinta-feira 1º, após cerca de uma hora e meia de reunião. Na saída, Moro chegou a descer do carro onde estava para falar com jornalistas, mas desistiu de dar qualquer declaração após o tumulto criado em sua volta.

A ele, foi oferecido o tal superministério, fusão das estruturas da Justiça, Segurança Pública, Transparência e Controladoria-Geral da União e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), este último ligado atualmente ao Ministério da Fazenda. Dessa forma, o juiz teria não apenas o controle da Polícia Federal, mas livre acesso às movimentações financeiras de qualquer cidadão.

Em novembro 2016, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça havia dispensado a exigência de autorização judicial para que a corporação policial pudesse consultar dados do Coaf, mas jamais houve tanto poder concentrado nas mãos de um único ministro. Ademais, o que ocorreria se o órgão de fiscalização e controle interno do governo identificasse algum malfeito na pasta a qual estaria subordinado?

Pelo Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, dono de uma invejável fortuna, celebrou a indicação de Moro, paladino do combate à corrupção que jamais o importunou. “Preferia vê-lo no STF”, opinou o tucano. Exultantes, auxiliares de Bolsonaro já especulam sobre a possibilidade de o juiz disputar a Presidência da República em 2022, como sucessor do “mito”. 

Para o senador petista Lindbergh Farias, essa é “a mais escandalosa promoção” por serviços prestados. “Depois de prender Lula e, objetivamente, influenciar na disputa eleitoral em benefício de Bolsonaro, Moro recebe como prêmio uma cadeira privilegiada para passar um bom ano revirando escaninhos e buscando vírgulas para gerar manchetes e perseguir o PT, a CUT e os governos populares, enquanto aguarda a aposentadoria de Celso de Mello no STF.”

“Moro aceitou integrar a equipe de Bolsonaro por saber que é muito complicada a nomeação de um juiz de primeira instância para o Supremo, passando por cima de grandes nomes da advocacia, do Ministério Público, do STJ, de tribunais regionais”, observa Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da USP. “A nomeação de um ministro da Justiça não é, porém, algo tão incomum. Foi assim com Alexandre de Moraes, Maurício Corrêa e Paulo Brossard, para citar alguns exemplos.

Mas não deixa de ser irônica essa situação. Nos últimos anos, muitos magistrados de cortes superiores passaram a mão na cabeça de Moro, perdoaram os seus pecados e, agora, podem ficar subordinados a ele. Outra questão: o Senado vai aprovar a nomeação de um juiz que criminalizou a política?”

Professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, o advogado Pedro Serrano estranha a forma como o anúncio foi feito. “Nunca vi um ministro ser convidado em público. Não é assim que se faz. Normalmente, é feita uma sondagem discreta, até para evitar constrangimentos ao presidente em caso de negativa”, observou Serrano, antes de Mourão entregar o jogo de cena. “Ao aceitar esse convite, Moro apenas reforça a impressão de que atuou politicamente na Lava Jato desde o início.”

Não era preciso esperar a confissão de Moro para constatar que o magistrado está na origem do golpe de 2016, e um dia haverá de prestar contas à história. Como apontaram diferentes delatores, a corrupção na Petrobras remonta ao período do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), em que a estatal era comandada por Shigeaki Ueki.

Com novos atores, o esquema manteve-se ativo durante todos os governos democráticos que se sucederam, inclusive na gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso, vestal intocável. Moro optou, porém, por circunscrever a operação aos malfeitos ocorridos nos governos petistas, elegendo Lula como o seu alvo preferencial. 

O magistrado, é forçoso reconhecer, jamais se preocupou em dissimular a atuação política e nunca hesitou em participar de convescotes com adversários do PT. Confraternizou com João Doria em Nova York e participou de palestras promovidas pelo Lide, empresa de eventos mantida pelo tucano, recém-eleito governador de São Paulo após pregar o voto “BolsoDoria”.

Em uma premiação promovida pela revista IstoÉ, foi flagrado em animadas conversas ao pé do ouvido com o senador Aécio Neves, recordista de inquéritos na Lava Jato. Michel Temer também figurava na foto. Da mesma forma, posou para selfies com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht. 

“Moro não é juiz, é político e deveria assumir logo esse ministério. Assim, ele poderia mostrar como pode ajudar o Brasil sem os arbítrios judiciais”, afirmou o pedetista Ciro Gomes, que terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, enquanto Moro ainda dissimulava hesitação diante da proposta de assumir a pasta da Justiça.

Nas alegações finais do processo relacionado à suposta compra de um terreno para o Instituto Lula, a defesa do ex-presidente voltou a apontar a suspeição de Moro. Como ignorar a flagrante parcialidade do magistrado após essa nebulosa negociação com Bolsonaro em plena campanha?

Na quarta-feira 31, a Executiva Nacional do PT disse que vai reforçar a campanha Lula Livre no Brasil e no exterior. A decisão de Moro acabou por reforçar a denúncia de perseguição política contra o ex-presidente. Em março do próximo ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU deve analisar a queixa apresentada pela defesa de Lula. 

Difícil será explicar aos conselheiros das Nações Unidas a declaração do candidato derrotado do PT à Presidência, que em 17 de outubro afirmou ao SBT que Moro não apresentou provas contra Lula, mas no geral “fez um bom trabalho”. Desconfia-se que a bajulação não rendeu um único e escasso voto a Haddad.

Para alguns, a maior surpresa foi a súbita admiração manifestada por Bolsonaro. Em março de 2017, o capitão perseguiu Moro no saguão do aeroporto de Brasília. Ao aproximar-se, bateu continência para o magistrado, que o cumprimentou sem entusiasmo e tratou de apertar o passo. A fria reação, registrada em vídeo, virou motivo de chacota nas redes sociais contra o então parlamentar.

“Moro é um juiz partidário, antipetista, que em momento algum se declarou impedido de julgar as causas do PT”, afirma Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff. “Engana-se, porém, quem acha que ele é tucano. Antes de mais nada, ele é antipetista. Até então o antipetismo estava centralizado no tucanato. Agora, tem outro dono.” 

A corrida presidencial ficou marcada por um ativismo sem precedentes de setores do Judiciário, sobretudo de magistrados de primeiro grau. O “Partido da Justiça” entrou de cabeça na coligação de Bolsonaro. A três dias do segundo turno, para citar o episódio mais assombroso, uma ação coordenada de juízes eleitorais determinou batidas policiais em 17 universidades de 9 estados.

“Foi uma clara tentativa de censurar alunos e professores, que se manifestavam de forma genérica contra o autoritarismo ou a favor dos direitos humanos”, lamenta Bercovici. “Repare o absurdo: proibiram a fixação de faixas contra o fascismo porque supostamente isso prejudicaria o candidato do PSL. Bolsonaro foi declarado fascista por decisão judicial.”

Diante da avalanche de manifestações de repúdio à tentativa de intimidação, a ministra Cármen Lúcia, do STF, concedeu uma liminar suspendendo todas as ações policiais em universidades. Na quarta-feira 31, por unanimidade, a Corte confirmou a decisão. “São atos inequivocamente autoritários”, observou Luís Roberto Barroso em seu voto. “Remontam a um passado que não queremos que volte.”

Os ministros do Supremo só passaram a reagir com mais firmeza após a divulgação de um vídeo no qual Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, afirmou que “para fechar o STF bastam um cabo e um soldado”. Antes disso, o vale-tudo corria solto. Logo no início da campanha, o presidente da Corte, Dias Toffoli, chegou a confidenciar, durante um evento para celebrar os 30 anos da Constituição, que, após uma aula do ministro da Justiça Torquato Jardim, passou a se referir ao golpe de 1964 como “movimento”.

Democrata, a desembargadora paulista Kenarik Boujikian recriminou a declaração, a “tripudiar sobre a história brasileira”. Acabou coagida pelo Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu um prazo de 15 dias para a magistrada “dar explicações” sobre a crítica.

Da mesma forma, a atuação do Tribunal Superior Eleitoral ficou maculada por episódios de parcialidade. No segundo turno, o ministro Luís Felipe Salomão chegou a impedir Haddad de associar o adversário à tortura na propaganda eleitoral. “Foi uma decisão teratológica, a campanha petista apresentava declarações públicas do Bolsonaro”, observa Bercovici.

“No caso de denúncias mais graves, como a dos empresários que financiaram disparos em massa de notícias falsas contra o PT no WhatsApp, os ministros da Corte foram absolutamente lenientes, nem sequer chamaram os acusados para depor. Não expediram um único mandado de busca e apreensão. Todos os rastros puderam ser apagados.”

O WhatsApp, aplicativo que pertence desde 2014 ao Facebook, bloqueou contas ligadas às quatro agências citadas na denúncia feita pela Folha de S.Paulo. Anunciou ainda ter banido 100 mil usuários em uma tentativa de conter desinformação, spam e notícias falsas.

A iniciativa, convém lembrar, partiu da própria empresa, e não por provocação da Justiça Eleitoral, que se limitou a acolher uma representação do PT e notificar Bolsonaro e representantes das empresas acusadas a apresentar defesa.

“A falta de isonomia entre os candidatos se fez notar, mas não acredito que a atuação do TSE tenha interferido no resultado final das eleições”, pondera Serrano. “Não tenho dúvidas de que houve, porém, forte ativismo por parte de juízes da primeira instância, como o próprio Supremo reconheceu, ao suspender as decisões que ordenaram ações policiais nas universidades. Essas batidas representam profunda agressão à autonomia universitária e à liberdade de pensamento. Não há sociedade democrática sem centros de reflexão com espaço garantido para o livre-pensar.”

Entre tantos cabos eleitorais de Bolsonaro, o Partido da Injustiça, como se vê, foi um dos mais ativos.