O presidente eleito, o capitão reformado Jair Bolsonaro, tem sido tratado como fascista e representante da extrema-direita por cientistas políticos estrangeiros e pela imprensa internacional. No Brasil, onde sua ação radical se renova e aprofunda a cada dia, há uma suavidade constrangida que escorre dos manuais de redação do jornalismo dito profissional e de acadêmicos titulados. Tem sido vendido como de centro-direita e tratado com uma condescendência servil. Para seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, ele “parece moderado”.
A dissonância não se dá entre o Brasil e o mundo, mas entre os fatos e sua interpretação. É importante destacar que o julgamento da imprensa e a avaliação de um magistrado deveriam ser honestos e competentes o suficiente para analisar declarações e atitudes que sequer exigem muito discernimento. Bolsonaro atacou a liberdade de imprensa, ameaçou quem discorda dele com cadeia ou exílio, fez declarações racistas, misóginas e homofóbicas. E muito mais.
Enumerou medidas de seu governo que vão da censura ao comprometimento da liberdade de cátedra, estimulou a denúncia de professores que pensam diferente de suas convicções, mentiu repetidamente sobre o uso de material didático destinado a educação sexual nas escolas públicas, se mostrou leniente com ações violentas tomadas em seu nome por partidários e eleitores, inclusive espancamentos e mortes.
A lista segue. Defendeu o armamento do cidadão como política de segurança e a liberdade de matar como estratégia de combate à criminalidade. Carregou com ele orgulhosamente o filho deputado que se insurgiu aberta e jocosamente contra o Supremo Tribunal Federal, inclusive em visitas às cortes judiciais. Apontou o horizonte de militarização da administração pública, em setores nos quais as Forças Armadas não têm história ou experiência. Anunciou uma cruzada moralista contra as artes e a cultura, em nome de valores religiosos particulares.
Sem falar das outras promessas de campanha, francamente reativas, antipopulares e liberticidas, igualmente criticadas por 10 de 10 jornais sérios do mundo. Por aqui, seguem vendidas com naturalidade pela mídia nativa, mesmo quando estas são barradas em coletivas, xingadas em discursos públicos e ameaçadas em rede nacional. Como não existe propriamente um programa de governo além dos chavões conservadores e do rascunho neoliberal em economia, vamos recebendo aos poucos as notícias que não surpreendem, mas preocupam.
Vão nessa linha a extinção do Ministério do Trabalho, a guinada provocativa e isolacionista em política externa, a privatização selvagem das empresas públicas, a entrega do setor agrário ao apetite do agronegócio e das empresas produtoras de venenos, sem cuidado com a sustentabilidade ambiental. E, como coroamento, a promessa de tratar movimentos populares como terroristas, algo que nem mesmo Moro conseguiu engolir sem engasgar. Mas acabou engolindo.
Outros tempos, violências permanentes
No entanto, mesmo com tantos e tão fortes atos, parece haver uma dificuldade em carimbar o presidente eleito como fascista. Até mesmo setores progressistas têm levado adiante uma discussão histórica e teórica que matiza o bolsonarismo em nome de filigranas. É claro que não estamos na Itália e na Alemanha das primeiras décadas do século passado. É óbvio que o contexto é outro e as forças que permitiram o crescimento da onda conservadora e antipolítica são distintas. Como são singulares as condições da crise atual e os novos inimigos escolhidos para concentrar a corrente de ódio. A esquerda é diferente, os instrumentos de comunicação são de natureza tecnológica diversa.
Além disso, o estágio do capitalismo internacional é também muito peculiar, o conservadorismo tem outras bandeiras. A tendência à valorização de mitos irracionais se escora em outros tipos de lideranças e signos. O militarismo das hordas se concentra agora na caserna açulada com a perspectiva de poder real sem necessidade de golpe. O anti-intelectualismo tem seu reino absoluto no extermínio das instâncias de pensamento e entronização de nulidades internéticas a vomitar baboseiras e palavrões.
Mesmo as grandes interpretações do fascismo são insuficientes para a atual conjuntura. Das raízes do totalitarismo explicadas por Hannah Arendt ao desenvolvimento da personalidade autoritária decifrada por Adorno. Do ressentimento de classe apontado por Lipset à repressão sexual que funda a violência denunciada por Reich. Do desenraizamento e tensões geradas por um desenvolvimento desigual, analisadas por Parsons, à irracionalidade arcaica e religiosa percebida por Bloch. Além das análises de Gramsci, Fromm, Eugen Weber, Albright e até mesmo cineastas como Fellini, Visconti e Bertolucci.
Tudo isso pode parecer pólvora demais para o cartucho de Bolsonaro. O fato de suas palavras e atitudes – sem falar das ameaças que pairam como urubus no horizonte – não se enquadrarem no figurino do fascismo clássico não tiram dele o perigo e o sinal de alerta. Se não é academicamente fascista, o militar reformado tem se mostrado pródigo naquilo que o historiador americano Robert Paxton chamou de “sentimentos viscerais” em seu livro A anatomia do fascismo.
Entre essas inclinações se destacam: primazia do grupo frente ao quais todos devem se subordinar, mesmo além do direito; autoridade concentrada num comandante único, que encarna o destino do grupo; superioridade do instinto do líder sobre a razão abstrata e universal; beleza da violência e eficácia da vontade; direito do eleito em dominar os demais sem restrições que venham de qualquer tipo de lei humana ou divina. Quem não enxerga o mito nesse diagnóstico deve trabalhar na Globo News.
O mais grave, contudo, não é fugir dos fatos solares do autoritarismo explicito para se aferrar à letra do conceito ou da singularidade histórica. Se o fascismo ainda não chegou, já mandou vários whatsApps. Qualquer estratégia de resistência deve considerar a realidade histórica do fascismo para se mostrar à altura do desafio atual. Esqueça a palavra, combata o mal.
Como alertou o historiador Donald Sasson em seu livro Mussolini e a ascensão do fascismo: “Mussolini poderia ter sido contido, mas aqueles capazes de bloquear sua trajetória – os liberais, a esquerda, a Igreja, a monarquia – não souberam ou não quiseram fazê-lo, caminhando para 20 anos de ditadura como se tivessem de olhos vendados”. Substitua o nome do ditador italiano e torça para não esperar 20 anos.
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