Não vou negar que o resultado me deixou abatido mas, não perdi a capacidade de continuar acreditando que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária. O que me preocupa, por um lado, é que a esquerda não se entende. Há muitos conflitos sobre meios e rumos a serem seguidos. Cabe aqui ressaltar que os dados de abstenção, nulos e brancos é um recado da crise de representatividade e do descrédito nas instituições, gerando uma negação da política.
Um blogue que defende a justiça social, a liberdade, os direitos humanos e o exercício do pensamento crítico..
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segunda-feira, 30 de novembro de 2020
segunda-feira, 7 de setembro de 2020
Os violoncelos que o racismo quer silenciar
Negros em posição de poder incomodam porque sua liberdade nunca foi presumida
Uma peça em três atos. Primeiro ato: Presidência dos EUA emitiu um memorando no último sábado (04) determinando que todas as agências federais cancelem treinamentos sobre racismo; numa canetada apaga a expressão “privilégio branco” do vernáculo presidencial. Sai a expressão, permanece a prática que a sustenta.
Segundo ato: na sexta-feira (03), o Secretário de Cultura Mario Frias encena uma espécie de Malhação versão Goebbels sobre heróis nacionais, numa estética europeia oitocentista cafona. Imagino que Luiz Gama, Zumbi dos Palmares ou Zeferina não ocuparão o panteão heroico oficial. Nunca faltaram narradores para contar as histórias dos senhores de escravos, disse certa feita o abolicionista Frederick Douglass.
Terceiro ato: Demétrio Magnoli nos alertou neste jornal no último dia 4 sobre o “avanço da doutrina racialista” e sobre os “ressentimentos [com o qual cotas] nutrem o racismo”. Lamenta que negros veem a política “como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio” e incluí-los na história política significaria “alçar ‘negros’ a empregos bem remunerados”.
Para efeitos de debate, o problema não é ser contra cotas raciais nas universidades ou na política (esta Folha ainda se opõe às primeiras). Vejo problemas em negar políticas afirmativas, mas deixemos este debate para outro dia.
O problema, aqui, é se incomodar em ver negros em posições de poder e escrever isso com todas as letras em um jornal que preza pela democracia. Se com racismo não há democracia, a cor da democracia não é só o amarelo: são todas as cores, ou não será democracia.
Retrato de Luiz Gama no livro "Lições de Resistência", organizado pela professora Ligia Ferreira para as Edições Sesc. Divulgação/
O advogado e abolicionista Luiz Gama, na capa do nº 26 da revista Bahia Ilustrada, de janeiro de 1920.. Coleção Emanoel Araújo/
Apesar de serem três atos de distintas naturezas e localidades, a peça tem algo em comum: dificuldade de olhar na cara da História.
Raça não é importante porque nós, os ditos “racialistas” na expressão pejorativa, dizemos que é. Raça é constitutiva das nações do transatlântico negro, porque estas nações foram construídas sobre os ossos de pessoas negras escravizadas. Literalmente: basta ver o cemitério dos pretos novos no centro da capital do império.
No mundo de hoje, felizmente, não há monopólio sobre narrativas históricas. Concorde ou não com políticas de equidade racial, apagar o fator racial é ignorar parte da História que vai além dos heróis oficiais.
O texto de Magnoli é errado em muitos sentidos. Destaco dois. Primeiro, é ofensivo. Não sei se perdi algo no argumento, mas é errado negros “alçarem” a postos de poder? Se brancos, desde que puseram os pés nesta terra, fizeram da política sua carreira e do Estado seu patrimônio, e se a maioria do Congresso Nacional é composto estatisticamente de brancos milionários, por que incomoda tanto negros ascenderem ao poder?
Segundo, e principal, o texto ignora bibliotecas inteiras de estudos sérios. Prefere esconder-se no lugar de fala de um certo racialismo ressentido e, portanto, cancelar o bom debate sobre o tema. O que não deixa de ser, ao menos, engraçado, considerando que Magnoli escreveu há duas semanas que o “lado bom do cancelamento” é que, com ele, “adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares”, numa espécie de “separate but equal” informacional.
Já que o autor também falava de racismo nesse outro texto, pergunto-me quem seriam os adultos e quem seriam as crianças na metáfora proposta.
Sou contra o cancelamento, prefiro que argumentos –sejam a favor, sejam contra – sejam postos à mesa, porque assim podemos ver quão esquelético é um argumento quando tiramos dele a poeira do ressentimento. Este é o caso.
Se por ruído incômodo entendermos dados empíricos, aí não há cancelamento de ruído que apague a realidade.
Vejamo: políticas de cotas apenas sociais não foram capazes de promover a inserção de estudantes negros no Brasil tanto quanto as cotas raciais combinadas com sociais (ver estudo “Affirmative action in Brazilian universities” de dezembro de 2019 na Economics of Education Review).
Opor cotas sociais a raciais é ignorar que a lei federal combina as duas. Ressaltar a transitoriedade das cotas raciais é desconsiderar que, embora a política de cotas tenha prazo, este prazo presume estudos sérios sobre sua eficácia, o que o Estado brasileiro tem ignorado.
Ademais, o texto de Magnoli lamenta que se advogue perante o TSE por 30% de candidaturas negras em cada partido, esquecendo que na realidade candidatos negros nos principais partidos já somam 34,2% das candidaturas em 2018, mas apenas 23,9% daquelas com mais recursos.
Para quem quer ter um debate racional sobre o tema, há de se lembrar estudos sérios, ambos de 2015, como “A cor dos eleitos” de Campos e Machado, e o livro “Inclusion Without Representation” de Htun, publicado por Cambridge, que trata de reservas por gênero e raça na América Latina. Não é uma jabuticaba brasileira da cabeça dos ministros racialistas do TSE, como faz crer o texto.
O autor, ademais, compara setor privado a setor público. Ignora a parcela expressiva de negros no serviço público por concurso, que conta com menos vieses raciais na contratação do que o setor privado. Vieses esses provados estatisticamente no estudo “Assortative Matching or Exclusionary Hiring", publicado na National Bureau of Economic Research em 2018) sobre empresas brasileiras.
Já que é 7 de Setembro, lembro que, na descolonização, a retórica da escravidão era comum, como nos ensina João José Reis no belo texto “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”, sobre a resistência negra no Brasil oitocentista. À época era comum escutar que o Brasil era “escravo” de Portugal, e que “a independência nos ‘libertaria’ dos ‘grilhões’ portugueses”. Alguns escravizados escutaram esta retórica e presumiram que se falava de sua própria liberdade da escravidão. Muitos pagaram com a vida por isso.
Até hoje negros pagam caro por presumir-se livres.
Negro, o violoncelista Luiz Carlos Justino, preso na última quarta-feira por ter sido confundido com um assaltante, somente foi liberado no domingo, apesar de haver provas de que estava tocando no momento e hora do crime ao qual é acusado.
Não deixemos que o estrondoso ruído incômodo da branquitude ressentida ofusque o som do violoncelo dos 20 músicos que tocaram no sábado por uma hora na frente do presídio onde estava Justino.
Que este seja o ato final desta peça chamada Brasil, o ato de liberdade.
Fonte:https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/thiago-amparo/2020/09/os-violoncelos-que-o-racismo-quer-silenciar.shtml?__twitter_impression=true
domingo, 26 de julho de 2020
Pauta identitária
A militância dos movimentos identitários precisa entender que as políticas governamentais abarca todas as pautas de interesse da sociedade. Portanto, uma causa não pode sobrepor o conjunto de ações da agenda estatal. O campo progressista deve voltar suas energias para barrar essa agenda neoliberal e criar mecanismos para capitalizar o voto dos trabalhadores(as) que são explorados, e vem perdendo seus direitos para fortalecer o "deus mercado". O momento é de unidade e luta no combate dessa campanha difamatória e moralista com as demandas de políticas populares. Chega de vaidade ideológica
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Piero Leirner: militares acabarão por criar ‘anomia’ da qual tanto falam
Para antropólogo, militares buscam espécie de "conversão cultural" de corações e mentes do povo brasileiro - por Pedro Marin | Revista Opera
Quando o antropólogo Piero Leirner, sob a insistência de sua orientadora, Maria Lúcia Montes, decidiu estudar o Exército, o Brasil vivia seu primeiro governo eleito por voto direto em 21 anos. A ideia de Leirner era fazer um estudo de campo em pelotões de fronteira na Amazônia, tema comum do discurso público dos militares nos idos dos anos 90. Acabou parando na Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) no começo de 1992, onde, diz ele, foi “tratado como uma espécie de orientando ou estagiário”, posto para ler textos e fazer fichamentos, enquanto se preparava para estudar o que realmente queria. Acabou ficando lá por três anos, sem conseguir o tão desejado acesso aos pelotões de fronteira. “Um dia pensei ‘caramba, eu estou há anos aqui, indo toda hora para a Escola de Comando, e isso não é campo?’ Notei que eu tinha feito um campo; que muitas coisas sobre esse campo eram regidas pelas ideias de hierarquia militar”, diz. Transformou a experiência em um trabalho de mestrado, segundo estudo antropológico feito no Brasil sobre o tema, defendido em 1995 e publicado em 1997 pela FGV: “Meia volta volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar”.
23 anos depois, num momento em que se diz cansado do Exército, o professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) volta mais uma vez os olhos aos militares, dessa vez em um cenário em que retornam ao centro do poder político, no trabalho “O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica”. Em entrevista à Revista Opera, Piero Leirner explica sua pesquisa e a forma como vê a ascensão militar.
Revista Opera: Peço que você fale dessa sua nova tese, do porquê decidiu escrevê-la e porque escolheu essa abordagem, da Guerra Híbrida.
Piero Leirner: É uma tese que fiz para o cargo de professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que é onde dou aula, onde estou há 22 anos. Depois do doutorado eu tinha trabalhado um monte de coisas, mas o tema do Exército tinha me enchido o saco. Tinha me afastado dessa conversa toda.
Em 2010 eu fui para a Amazônia, fui para a área dos pelotões de fronteira, e voltei em 2013 – morei lá durante um semestre, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Mas eu estava mais interessado em etnologia indígena do que nos militares; queria estudar os índios que estavam servindo lá, no Exército, mas de novo foi muito difícil, simplesmente o comandante “sumiu”. Então decidi partir para outra, disse que não queria nunca mais saber desse assunto. Fui estudar parentesco e hierarquia entre os índios Tukano da região do Alto Rio Negro.
Mas em 2016, quando começa a história do impeachment e todas aquelas agitações, a Maria Lúcia começou a demandar que eu passasse a fazer uma leitura sobre o que estava acontecendo com os militares. E nós entramos em um grupo de discussão por internet, no blog do Romulus – que tinha acabado de conhecer quando ele ainda era comentarista do GGN –, e fui puxado de novo para a discussão sobre os militares. E de fato comecei a suspeitar que eles estavam mexendo os pauzinhos de uma maneira muito estranha – porque você deve se lembrar bem, vocês na Opera provavelmente foram os primeiros a detectar isso, ninguém mais falava que eles iriam agir como atores primários nesse processo. O que o general [Eduardo] Villas Bôas transmitia o tempo inteiro é que eles se mantinham absolutamente neutros e distantes de todo o processo político. Foi aí que eu comecei a olhar um pouco a essa literatura sobre Guerra Híbrida, mais como uma curiosidade – mas nessa época começou a cair no meu colo textos em que os próprios militares descreviam o que eles consideravam ser uma Guerra Híbrida. Tinha alguma noção do que eles falavam pois por volta de 2008 acabei estudando, em um pós-doutorado, justamente manuais de operações psicológicas, contrapropaganda, etc. Isso porque havia nos EUA um uso institucional de antropólogos nas Forças Armadas, no Iraque e Afeganistão. E eu comecei a perceber, nesse processo, que os textos que eles escreviam aqui eram instrumentos de produção de desinformação, típicos de uma Guerra Híbrida: ou seja, eles estavam produzindo uma Guerra Híbrida interna.
Então, sobre a Guerra Híbrida, vejo muito mais como conceito nativo do que como uma realidade concreta e autoexplicativa, entende? Mas o conceito nativo começa a ser tão usado que passa a fazer sentido por ele próprio, quando os atores começam a acreditar demais naquilo que eles escrevem. Foi a partir disso que eu resolvi reunir as coisas que estava pensando de 2016 para cá e, em junho de 2019, comecei a escrever essa tese; terminei ela em setembro e defendi em dezembro.
Revista Opera: Na sua tese você cita algo que é um pouco desconhecido, no geral; essa aproximação que os militares têm mantido, pelo menos desde a redemocratização, com intelectuais, jornalistas, empresários, etc. Como você vê esse tipo de aproximação?
Piero Leirner: Logo depois do Plano Collor, eles estavam extremamente decepcionados com os rumos que o Collor tinha tomado, porque depositavam uma fé muito grande nele. Isso me era falado o tempo inteiro nessa época – e eles foram sucateados, era impressionante como às vezes eu pegava carona em viatura que servia coronel ou até general, e a porta da viatura não tinha tranca, o soldado ia segurando com o braço para fora. Estavam realmente muito preocupados e desconfiados com os rumos que a democracia estava tomando, o que casava um pouco com aquelas teorias sobre as ONGs e o interesse internacional na Amazônia, que estava começando a virar um protoplasma ideológico e algo doutrinário entre eles. Por que? Porque nesse momento, com o fim da Guerra Fria, falavam claramente que não ganharam nada no processo de alinhamento com os Estados Unidos, que na verdade saíram prejudicados, ao contrário do que aconteceu com a Europa depois da Segunda Guerra. Então pensavam que era necessário procurar um alinhamento nosso, próprio, autóctone – é daí que veio toda essa mitologia da Amazônia associada a Guararapes, ao nascimento da nacionalidade, etc. “Invenção do Exército Brasileiro” é um livro interessante de Celso Castro, no qual ele mostra como eles criam, a partir de coisas mais ou menos dispersas, essa história de Guararapes e sua associação à Amazônia.
Bom, nesse ínterim eles identificaram que não havia um projeto nacional; diziam “somos uma Força Armada procurando a nossa raiz e o nosso norte, mas a gente não tem na sociedade o mesmo tipo de movimentação. Então nós é que temos que fazer isso”. E o que fazem? Tiram da cartola, de novo, a ideia de que eles são a ossatura da nacionalidade, que vão conduzir o processo de gestão e formação da Nação. É nesse momento que eles começam a trazer, para dentro da Escola de Comando, um monte de gente; mas uma coisa meio sem critério, que ia de José Genoíno a Olavo de Carvalho. Então o que eu acho que eles estavam fazendo nessa época? Sondando as teorias que se encaixavam ali, produzindo a cacofonia que nós estamos vendo hoje, uma coisa absolutamente maluca. Juntar a ideia de soberania na Amazônia com a entrega da EMBRAER, sei lá eu. Parece algo completamente esquizofrênico – e é mesmo [risos]. Essa é a minha opinião: eles passaram por um processo de dissonância cognitiva, é o que acho que aconteceu durante anos ali dentro.
A partir disso eles começaram a armar essa rede, nos anos 90. Mas ela fica mais sólida quando eles acionam uma reação ao “comunismo” que estava voltando pro Brasil. Foi isso que galvanizou, a partir dos anos Lula, mas que aumenta para valer a partir de 2010, com a Dilma, que é quando eles procuram fazer costuras mais efetivas – sobretudo com empresários, por meios desses institutos, “Instituto Liberal”, “Mises”, etc., – mas também, sobretudo, botando lenha na ESG (Escola Superior de Guerra), chamando gente do próprio Estado lá para dentro. Você olha as listas a partir de 2010 dos frequentadores dos cursos da ESG e vê um monte de procurador e juiz entrando lá. O que é isso? De novo a formação daqueles complexos tipo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática) no pré-64. Igualzinho; a mesma coisa.
Revista Opera: Na tese você diz que se por um lado eles fazem esse movimento para dentro, isto é, esse processo de dissonância, há também um movimento de “domesticação do mundo de fora a partir do mundo militar”.
Piero Leirner: Sim, é um pouco do que vi como experiência etnográfica na Amazônia. Essa noção, de que eles têm de carregar o País nas costas, no fundo ela é acompanhada pela noção de que eles são uma espécie de administradores de uma fazenda que têm como tarefa domesticar animais selvagens. O que significa isso? De certa maneira, trazer todo o campo de diferenças sociais para uma conversão, uma espécie de digestão e projeção, a respeito do que eles entendem como sendo parte da realidade. Que é uma realidade muito monótona (no sentido “narcísico” do termo), não é? Então não acho que seja um processo de tutela – tutela se faz com uma criança, na tutela você pressupõe que a criança estará sempre na mesma condição – o que eles querem é a conversão da população a uma outra forma, acho que há um projeto “cultural” de transformação da realidade, de corações e mentes alteradas. Por isso acho que é um projeto que embute, em seu interior, muito dessas operações psicológicas. Não é suficiente dizer que é só um interesse por cargos que faz eles irem nessa direção nos últimos anos.
Revista Opera: Você mencionou essa relação que os militares mantêm com setores do Judiciário. Cita na tese as relações que mantinham com gente do TRF-1, TRF-2 e TRF-4 – o que chama atenção. Como você vê agora, com esses militares do governo, essas relações? Como você vê isso tudo, levando em consideração a recente saída do Moro do governo?
Piero Leirner: A primeira coisa a se fazer é procurar escapar de uma visão trivial a respeito da posição deles em relação ao governo e a política. No processo que podemos recuar desde 2016 para cá, tudo é produzido em um movimento de pinça; sempre com estruturas mais ou menos duais. Se fôssemos resumir, eu diria o seguinte: eles usam um para-raios, tocam fogo em uma situação, e eles mesmos são os bombeiros que vão apagar o fogo que eles criaram. Em certo sentido o Bolsonaro representa esse papel. Uma coisa é falar em Bolsonaro, outra em governo – eu diria que ambos são governo, mas o governo em si é algo meio dualista.
O que eu vejo, por exemplo, em situações como a saída do Santos Cruz, que virou esse personagem imaculado que a imprensa toda mima. Creio que a saída do Santos Cruz, que pareceu ser uma saída por conta de conflitos com o governo, é uma válvula de escape do próprio governo – não que ele não tenha saído do governo, mas o governo, lato sensu, botou ele em uma posição de oposição controlada, compreende? Porque agora ele assume uma voz na oposição, de sensatez – sei lá como poderíamos chamar isso – mas não deixa de ser operado pelos mesmos agentes que era antes; os militares. É a válvula de escape dos militares operando como se fosse oposição, mas não é. Eles controlam ambas as posições.
E eu acho que, em certa medida, o Moro entra nessa chave. Eles sempre vão estar batendo com um porrete e amansando com a outra mão. Interessa para eles uma posição que é de confronto, sempre, entre o Bolsonaro e uma outra posição, e eles aparecem como mediadores mais ou menos equidistantes disso. Não sei ainda qual vai ser o desfecho da questão da Polícia Federal, mas me parece que será exatamente essa posição: não vão nem pegar o Moro, nem o Bolsonaro, e vão pegar os dois ao mesmo tempo. Esse é meu palpite. Quer dizer, deve se repetir a mesma forma de Santos Cruz; Moro passa para uma “oposição” – bem entre aspas. [A entrevista foi realizada no dia 13 de maio, portanto antes de ser revelado o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro].
Então eu acho que, primeiro, todas essas manifestações do Bolsonaro são provocadas, não são acidentais, estão dentro de um esquema que foi pensado – não precisa fazer muito plano para elaborar, basta bater nas costas do sujeito e dizer “vai lá, Jair, vai na manifestação e faça o que você faria normalmente”. A provocação para criar um dualismo com o Judiciário é evidente, mas ao mesmo tempo o Judiciário é refém deles faz tempo. Quem está lá? O general Ajax [Porto Pinheiro]. Olhe o vídeo do general Ajax a quinze dias das eleições. Todas as teses que estão no “Carta no Coturno” estão lá, todas, pode conferir. De que os comunistas estão prestes a transformar o Brasil na Venezuela, que o PT quer mexer dentro da sua casa, com seus valores, toda aquela paranoia. Quinze dias depois ele estava no STF, dizendo o que pode e o que não pode.
Então eu acho que o STF entrou agora nessa chave que eles estão produzindo: o STF estica a corda de um lado, o Bolsonaro estica do outro, e os militares vão aparecer como solução de ordem para algo que parece cada vez mais caótico. Porque vai chegar um ponto em que a tese que eles estão pondo, de que o Brasil está para entrar em uma situação de anomia, vai acontecer. Mas é uma anomia que foi provocada por eles mesmos. E aí eles vêm e se oferecem, “somos a solução para isso”. Você junta isso com um cenário de pandemia.
Veja bem se essa “sinergia” que eles falavam ter com o TRF-4, se acabou. Outro dia mesmo eu vi, Heleno passou a tarde tomando chá com duas desembargadoras – isso estava na agenda dele. Continuam distribuindo medalhas a torto e a direito para procuradores e juízes. Então como é essa história? Não brigou de fato com o Judiciário. Pelo contrário. Estão causando a cismogênese dentro dele, é isso que está acontecendo.
Piero Leirner: A virada foi um pouco antes. O que aconteceu na verdade foi que, no último ano do governo Lula, em 2010, a Casa Civil – cuja ministra era a Dilma – começou a esboçar a Comissão da Verdade. E o que acontece nessa época? Começa a ter um zum-zum-zum de militares, e temos também o primeiro militar da ativa que sai para falar a questão da Comissão da Verdade. Quem é esse camarada aí? É o general Maynard Santa Rosa, que estava no governo até pouco. O general Maynard foi exonerado da função em que estava em 2010, foi jogado para escanteio – já houve aí uma pequena reação, entende? Eles ficaram incomodados com a Dilma. Quando ela se torna o projeto do Lula para a continuação do Partido dos Trabalhadores no governo, esses caras ficam de cabelo em pé. Essa história já tinha se espalhado.
E aí ela se elege em 2010 e, no final de 2011, oficializa a CNV. Já começa a tensão entre a CNV e os militares porque, entre outras coisas, um monte de oficiais da ativa, especialmente do Exército, eram parentes de militares que tiveram participação na ditadura. Se não era algo que atingia a pessoa física deles, no mínimo atingia a “pessoa familiar”, vamos dizer. E dentro desse conceito de família militar que eles têm, que é algo complicadíssimo.
Seja como for, isso vai pegando, e quem vai se manifestando são os de sempre – sempre ao redor do Clube Militar. E aí há de considerar outro processo, que são aqueles grupos que tinham ficado de escanteio logo na abertura, que tinham passado por um processo de “limpeza” produzido pelo Geisel, que pegou todo o porão da máquina de repressão e informação e jogou para fora da hierarquia – nenhum deles subiu para general, Brilhante Ustra, etc. Muitas dessas pessoas ficaram nesses grupelhos, associações “civis” – TERNUMA, Inconfidência, Guararapes. Cada vez que acontecia de um militar entrar em atrito com a política, ele corria para esses grupos. Quando houve aquela briga do general Heleno com o Lula em 2008, por causa da Raposa Serra do Sol – que é uma briga prototípica, digamos, quase um arquétipo – Heleno correu para o TERNUMA. E esses grupos todos orbitando o Clube Militar, desde sempre, que passa a ser uma espécie de válvula de escape, um lugar onde se começa a expressar uma contrariedade em relação à Comissão Nacional da Verdade, e eles lançam um manifesto, acho que no início de 2012.
A Dilma fala para o Celso Amorim, ministro da Defesa na época, que tire esse manifesto do Clube, o Amorim ordena ao general Enzo Martins Peri fazer isso, e o general passa um pito no Clube Militar, que é uma associação da reserva, entende? Eles refazem o manifesto, agora com a indignação de terem sido “calados” por uma ordem “autoritária” – percebe como começa a inversão do jogo? – e hospedam um novo manifesto na página da internet do Ustra, “A Verdade Sufocada”. Esse movimento do porão da ditadura sempre existiu, mas era marginal – Ustra, coisas que o Olavo de Carvalho escrevia. Eles até podiam ter uma entrada dentro dos militares, mas não era algo assumido. São 800 coronéis que assinaram esse manifesto, não sei quantos generais, da reserva, da ativa, de tudo que é lugar. Aí você percebe que, bom, a guerra estava declarada.
Mas não foi só isso. Foi uma série de preocupações que eles estavam nutrindo. Por que? Somava-se isso a coisa das ONGs, da Amazônia, da “dissolução da família, dos valores”, por coisa de gays, etc. Aí vão começando a fabricar uma meleca, é assim que começam a ativar uma teoria interna, que parece ser algo que compram, mas na verdade fazem um rearranjo dela para os próprios propósitos, que é essa ideia da Guerra Híbrida. De que na verdade o centro emissor da Guerra Híbrida no Brasil eram o PT e o Governo Federal. Não é doido um negócio desses? Uma Guerra Híbrida produzida pelo núcleo do poder de um Estado? Mas é o que eles diziam: que o objetivo final do PT era dividir o País e aniquilar as Forças Armadas. E é isso o que eles pensam até hoje.
Revista Opera: Isso tem muitas semelhanças com certas leituras que eles faziam na década de 90 em relação a 1964. E é algo na verdade até anterior, porque na década de 50 eles falavam disso, usavam um termo engraçado pra quem seria pró-Getúlio, que era “Gregórios”, em referência ao Gregório Fortunato, chefe da guarda do Getúlio. Em 1964, há uma continuação, esses “Gregórios” agora chegam ao poder com João Goulart, e eles querem “comunizar o Brasil”, etc. Você vê essas semelhanças?
Piero Leirner: Sempre fazendo microatualizações, mas a coisa vem sempre em uma linha de continuidade. Em 1935, por exemplo, a Intentona Comunista vira uma espécie de “mito de origem” na cabeça deles. Em 1961 eles começam a falar de Guerra Revolucionária, e conseguem plasmar o anticomunismo nessa história. Aí vem 1964, depois a coisa esfria – mas a Amazônia está ali, entendeu? Ressuscitam a questão, mas invertendo o sinal: dizendo que o Exército teria que agir como uma resistência colonial contra os interesses das grandes potências. E o que fazem a partir de 2010? Começam a inventar a ideia de que o comunismo internacional estaria plasmado com o globalismo, que é um pouco essa ideia do Olavo de Carvalho. Então a resistência teria que ser contra esse comunismo que estaria embutido, “invisível”, eles gostam de dizer “homiziado” – têm uns termos assim – no interior da ideologia globalista, mas com os propósitos de fazer um “comunismo 2.0” vingar aqui no Brasil.
Então eles vêem a Dilma, o aspecto direto, e o aspecto indireto na ideia de que ela estaria disposta a vender o Brasil para a China. O que eles tiram do chapéu, para dar conta dessa realidade? A história da Guerra Híbrida. Pegam os paladinos das Forças Especiais, como o general Álvaro Pinheiro, que foi na Comissão da Verdade, porque participou no Araguaia, e que é alguém que estava introduzindo essa ideia sobre a Guerra Híbrida. Como eles lêem a Guerra Híbrida? Pensam como algo que gera a dissolução entre as fronteiras da guerra e da política, e que dilui militares e civis, galvanizando terrorismo, organizações criminosas e interesses anti-nacionais globalistas. Vira tudo uma coisa só, e eles começam a dizer que há uma suposta associação entre PT, FARC, Hezbollah e PCC, como um “grande projeto” de transformação do Brasil em uma espécie de Colômbia sob domínio chinês, onde as oligarquias instituiriam um comunismo chinês 2.0. Então tem essa história toda que começa a ganhar corpo. Um comunismo difuso, ressuscitando várias teorias, e agora pondo esse verniz novo da Guerra Híbrida, como se adicionassem um personagem numa historinha, para dar consistência a ela. Quando cruza a ideia de que o PT seria uma organização criminosa, é tudo que eles precisavam, porque casa com a teoria que eles estavam lendo a partir de Washington.
Revista Opera: Sobre esse cenário caótico, de vários acontecimentos que por vezes sequer conseguimos recompor, uma coisa que me chamou atenção na sua tese é que você menciona como o general Heleno diz que ao longo da carreira ele consolidou uma “longa experiência” trabalhando com a imprensa, foi até consultor de um grupo, parece. Isso é interessante porque aquela briga com o Congresso, que começou pouco antes da chegada da pandemia, foi justamente por causa de um “vazamento” de uma conversa em que ele dizia que o Congresso estava chantageando o governo. A senha para esse conflito entre governo e Congresso, que agora chega até o STF, foi dada por ele.
Piero Leirner: Claro. E ele soube o momento certo de recuar e parar de aparecer. Antes o que ele estava fazendo? Assumiu o protagonismo, estava sempre à direita do Bolsonaro, sentado, dando a palavra final. Quando a corda começou a esticar para valer, ele recuou. Botam o Braga Netto em uma chamada posição de “presidente operacional”, e o Bolsonaro começa a elevar o grau de tensão dos raios que caem na própria cabeça. É impressionante o jogo do Heleno. Há uma entrevista para estudantes de jornalismo em que ele diz que “tomou muito gosto por esse negócio de comunicação”.
Agora, a bomba mesmo eu vi recentemente, algo que eu nunca tinha me dado conta. O discurso de saída do general Rego Barros para assumir como porta-voz da Presidência da República, em fevereiro de 2019. A frase é simplesmente inacreditável: “Coube ao Exército mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portal responsivo, e-blog, etc., e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil. Exigiu sangue frio e interlocução sem rosto, típica da internet […]”. Literalmente dizendo que o Exército foi para o submundo do Whatsapp. Esse negócio do “gabinete do ódio” é uma lorota. Botam o Bolsonaro e os filhos como os bois-de-piranha. Para mim ficou claríssimo que esse problema todo, que está no STF agora por conta das fake news do Whatsapp, em que o Bolsonaro aparece querendo proteger os filhos, no fundo interessa a quem? Interessa ao Exército. Porque os camufla de terem feito uma operação nessa coisa do Whatsapp. Está claro no discurso do Rego Barros, é impressionante.
Piero Leirner: Primeiro as demissões: como disse sobre Santos Cruz, eles têm um mecanismo de válvula de escape, que já está um pouco pré-programado; com ou sem os demitidos terem ciência disso. Eu não sei por exemplo se o Santos Cruz é esse gênio todo, como dizem, para saber que ele estava indo em direção a uma fogueira que já estava armada. Aos poucos eles vão enxotando alguns militares e colocando outros em posições-chave – como se estivessem na oposição, para acentuar a ideia de que têm um aspecto técnico e neutro. Essas pessoas viram uma oposição controlada e potencial, para o futuro – sabe Deus se em 2022 ou o quê. Esse é o primeiro ponto: Moro e Santos Cruz são quase duas faces da mesma moeda.
E aí lucram nessa operação, jogando no colo do Bolsonaro e na família dele a ideia de que são completamente irascíveis, de que a loucura parte deles, que há um problema de personalidade, de que é tudo reflexo de uma chamada “ala ideológica” que é incontrolável e irracional, enquanto, por contraste, os militares são iluminados como salvadores da Pátria.
O que engata na segunda pergunta: agora estão em uma posição em que não aparecem como os emissores do caos, mas como a solução de ordem – como se eles não estivessem lá. E para isso eles têm de ocupar todas as posições do cenário.
Qual é o plano, então? Se eu fosse pensar em uma metáfora, que é aquela com a qual eu finalizo a tese, é que se isso fosse um sistema de computação, eles farão uma espécie de reinicialização, em que o computador é reiniciado em modo de segurança, são os administradores, que dizem o que pode e o que não pode operar no sistema. Não é todo programa que está instalado que vai rodar, entende? Primeiro a tomada do aparelho do Estado – aparelhar o Estado o máximo possível, isso eles já estão fazendo. Segundo, o processo – que é mais complicado – de “conversão ideológica” das pessoas. Algo mais complexo, mas considerando que eles tentam se colocar como elementos de mediação, de meio-termo, de bom senso, sensatos, nós vamos ver crescentemente eles aparecendo como “meio” entre dois polos radicais. Não é à toa que há quem esteja nesse esforço desesperado em dizer que Bolsonaro e Lula são a mesma coisa, para sugerir que o Brasil tem de “sair dos extremos” e eles se colocarem como força de coesão ideológica.
Então eu acho que é isso: primeiro um processo de aparelhamento de fato e depois vão para uma solução cultural de estilo “gramsciana” (falo ironicamente). Acho então que, a princípio, era melhor para eles manter o Bolsonaro até o fim do mandato, porque esse edifício continua todo de pé. Agora, é óbvio que em um campo cheio de incertezas, como a gente está, talvez não dê para segurar ele. As pessoas me perguntam: “Ele vai cair? Vai ter golpe?” – essa é a pergunta mais absurda, se vai ter golpe. Eu sempre falo: “Amigo, você acha que aconteceu o que? Recua aí na tua cabeça e se pergunte se teve!”. Então tendo a achar, sim, que o melhor seria manter a solução como está – mas concordo com você, meio que tanto faz. O ponto para eles é controlar o processo todo, como administradores do sistema; quem entra e quem sai. Aí, de fato, a posição de presidente é a que menos conta.
Revista Opera: Um outro ponto abordado na tese é a posição que o general Etchegoyen manteve dentro do governo Temer. Porque quando o Temer entra, ele reergue o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o Etchegoyen fica responsável por isso. No meio de uma crise gerada por aquela gravação do Joesley, algo que no mínimo seria um descuido do GSI, é justamente Etchegoyen quem sai como homem forte e, até certo ponto, mantém o governo em pé.
Piero Leirner: Sim. Isso em 2017, até que eles arrematam isso em 2018 com a intervenção no Rio. Aí não sobra nada em pé, porque neutralizam completamente o governo Temer, e toda possibilidade do PSDB, por exemplo, conduzir uma transição para uma eleição em que eles estariam capitalizados. Porque durante a intervenção não tem mais Congresso para fazer votação de Reforma da Previdência, e esse era o grande ativo. Essa enorme psy-op (operação psicológica) no Rio de Janeiro serve para eles irem testando a ideia de intervenção militar como solução. Isso já está colocado no inconsciente das pessoas. E não é à toa que o Braga Netto, que era interventor, esteja hoje na posição que está. Interessantíssimo também o discurso de despedida do cargo do Villas Bôas, algo que não tinha me dado conta, onde ele diz que o Brasil tem três heróis nacionais: Bolsonaro, que tinha permitido nos livrarmos do comunismo, o Moro, que estava limpando a corrupção, e o Braga Netto – que ele deixa suspenso no ar. Ninguém deu bola para isso, quando ele falou isso o Braga Netto não era ainda o chamado “presidente operacional” do Brasil [risos]. Isso sugere que foi parte da armação, realmente começaram a construir isso, viram a janela de oportunidade para valer com o Temer assumindo.
Revista Opera: Como você avalia a postura dos últimos governos petistas em relação aos militares? Porque vendo o processo histórico a partir de 2016, fica evidente que o PT manteve, durante todo o tempo, uma postura quase que de anestesia em relação aos militares, como se eles não pudessem mais aparecer como atores na política. E mesmo quando apareciam – por exemplo com os tuítes do Villas Bôas, ou com a movimentação sobre a Comissão da Verdade – parece que ninguém levava isso a sério, o governo não levou a sério.
Piero Leirner: Você usou a palavra certa: é anestesia. Se blindaram para olhar o mundo, não viram um monte de coisas. Mas com os militares é talvez a postura mais absurda de todas; porque eles acharam, de fato, que poderiam prescindir deles. E talvez o que tenha acontecido tenha sido um processo narcísico tão absurdo, por conta de um governo que estava dando certo, que eles não perceberam que o tapete estava sendo puxado debaixo. Uma coisa é dizer: “Mas o Lula ouvia o conselho dos generais”. Mas ele tinha um serviço de informações decente? Ele tinha gente que falava o que estava se passando de A a Z? Tinha preocupação em ver o que estava sendo ensinado dentro das academias militares? Tinha preocupação em participar dos eventos militares, que é algo que para eles é dar doce para criança? Os militares diziam isso, em 2013, 2014: falavam de eventos em que os cadetes ficaram horas esperando debaixo do sol esperando alguém do governo chegar… Isso ia criando um ódio dentro deles. E eles começaram a sabotar. E então veio a Lava-Jato, o pessoal abrindo a porteira para a espionagem norte-americana. Furaram o que já era uma peneira, não é? E isso culminou com a Dilma querendo peitar eles; extinguindo o GSI, etc. E aí veio aquele grampo – que eu acho que era ambiental, não era no telefone do Lula, porque se ouve tudo o que estava se passando no gabinete antes do Lula atender a ligação – um absurdo, a imprensa obliterou isso, e não vi sequer o PT fazendo o escândalo que merecia. É a mesma história do Joesley; o GSI permitiu esse furo, que acabou com o governo do Temer. Então eu não sei, creio que foi de uma irresponsabilidade completa. Não leram Maquiavel: é preciso ter boas leis e boas armas. Fizeram leis terríveis e não deram bola nenhuma para as armas. Sobrou o que sobrou. Se eu acho que tem alguma coisa nesse sentido, de que é necessário a eles tirar os esqueletos do armário e fazer a autocrítica, é essa: “não prestamos atenção nos setores essenciais”. Vai além, mas aí é só ir tirando uma carta de cima da outra. Deixaram uma juristocracia condescendente tomar conta do partido, se estabelecendo como hegemônica, e ao mesmo tempo não prestaram atenção na questão mais essencial que poderia segurar o governo, como segurou o governo Temer até o fim. Por que Temer não caiu? Porque eles não deixaram. Só por isso. E foi assim que se instalaram no Planalto.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Duas teses sobre a transição socialista
Tese I: Socialismo não é modo de produção. É comum em certa esquerda idealista afirmar que as experiências do século XX não foram socialistas por manterem “aspectos capitalistas” ou não estar de acordo com o cânone de determinado “texto sagrado” (o texto é mais importante que a realidade). É importante esclarecer: a teoria clássica da transição socialista, sintetizada no livro O Estado e a Revolução, de Lênin, defende que um bloco das classes oprimidas liderado pelo proletariado deve tomar o poder de estado e a partir daí começar o processo de transformação revolucionária da sociedade. O sentido dessa transformação revolucionária é: socialização da riqueza, do poder e da cultura. Na economia a propriedade pública dos meios de produção, a planificação econômica e a riqueza produzida é para atender as necessidades plenas de toda sociedade; na política a democracia participativa, de base e a autogestão em várias esferas são ampliadas ao máximo, e a cultura é socializada de uma forma onde saber científico, técnico e filosófico deixa de ser privilégio de uma pequena classe de exploradores e a produção cultural e ideológica é pautada na solidariedade, internacionalismo, senso coletivo e combate às formas de opressão.
Logo, se socialismo não é modo de produção, mas uma fase de transição entre a sociedade antiga (capitalista) e a nova (comunista), manter relações da antiga sociedade não é só “aceitável”, como normal. Os ritmos de transformação, os avanços e recusou, são ditados por uma síntese dialética entre condições objetivas e subjetivas; ou seja, as próprias condições socioeconômicas onde começa a experiência de transição, a correlação de forças e a dinâmica da luta de classes interna e externa (na geopolítica) e toda tradição ídeocultural do povo. Logo, constatar que em certas experiências, como a URSS, mantiveram relações sociais típicas do capitalismo, como o fordismo nos processos de trabalho, e depois disso afirmar que a URSS nunca foi socialista, mas sim “capitalismo de estado” ou qualquer outro conceito obtuso, é negar a perspectiva da totalidade e da processualidade do socialismo. É achar que a tomada do poder cria automaticamente a transformação de todas as relações sociais da sociedade capitalista e desconsiderar as condições objetivas - isso é algo da tradição anarquista e não marxista (como Lênin tão bem demonstrou nas usas obras, em especial, de novo, no O Estado e a Revolução).
Dando um exemplo concreto. A Rússia pós-revolução estava numa situação de miséria extrema (resultado do próprio subdesenvolvimento do país, da primeira guerra mundial e da guerra civil) e fome epidêmica. Nessa conjuntura concreta a direção revolucionária tomou como prioridade o desenvolvimento das forças produtivas ao máximo como forma de garantir a sobrevivência material (biológica) do povo e garantir a defesa militar contra agressões imperialistas. Nessa conjuntura, onde a prioridade absoluta era criar uma indústria de base e conseguir produzir comida, roupas, medicamentos, etc. para todos, afirmar que por não ter autogestão completa nas fábricas a URSS traiu o socialismo e tornou-se “capitalismo de estado” nos anos 30, como faz Alysson Leandro Mascaro e Marcio Bilharinho Naves (dois grandes juristas marxistas), é achar que é possível construir relações de produção comunistas ignorando a situação material imediata, e transformar tudo ao bel prazer da “vontade política”.
Tese II: a transição socialista é relacional. Se o socialismo não é um modo de produção, mas toda uma época histórica de duração variada na transformação da sociedade e na criação da sociedade comunista; deveria ser claro, mas infelizmente não é, que o ritmo e as formas de transformação dependente das formas que um país (ou bloco de países) está inserido no mercado mundial e no sistema geopolítico (imperialista). Lênin, de novo, nos ajudar a pensar a questão. O líder bolchevique afirmou que é possível o proletariado conquistar o poder político num país subdesenvolvido e começar a transição socialista, mas o sucesso dessa transição, ao mesmo tempo, depende dos ritmos do movimento revolucionário mundial. Parece uma antinomia, mas não é. A questão é simples. Um país atacado de todas as formas pelo imperialismo com bloqueios econômicos, sabotagens, terrorismo, pressões diplomáticas, guerra de desinformação, invasões militares (as pessoas esquecem que Cuba, Rússia, Vietnã, Angola e Coréia do Norte são experiências socialistas invadidas militarmente pela ação do imperialismo), etc. terá, é lógico, dificuldades de desenvolver plenamente a democracia operária de base e autogestionária. Não existe nenhuma experiência histórica que mostre o desenvolvimento da democracia numa situação de estado de guerra permanente (até os teóricos liberais sabiam disso). Logo, por exemplo, o enfrentamento geopolítico com o imperialismo vai condicionar de forma negativa o sistema político socialista (é claro, porém, que as decisões do grupo dirigente revolucionário podem ampliar esse “fechamento” necessário ou combatê-lo dentro do possível: na URSS decisões erradas ampliaram esse “fechamento” necessário, em Cuba ao contrário, mesmo em estado de guerra permanente a democracia operária conseguiu-se manter em bom termo).
Podemos dizer o mesmo da economia. Se um país socialista não tem capacidade de produzir todo alimento – por exemplo - que necessita ele precisará necessariamente importar. Para importar são necessários dólares. Para ter dólares a economia socialista terá que manter um setor de exportação que consiga esse capital e isso fará com que a economia socialista tenha que criar setores ou de mercado ou ainda atrelados à lógica de mercado e sujeitos às vicissitudes do mercado mundial. Como nenhum país é auto-suficiente em tudo (principalmente os pequenos como Cuba) e o mundo ainda é, infelizmente, capitalista e dominado pela hegemonia norte-americana, relações comerciais com o capital internacional são necessárias e importantes. Caso contrário o país fica isolado do mundo e sofrendo escassez de vários produtos (como aconteceu com Cuba e Coréia do Norte pós-derrubada da URSS e com a própria URSS durante os anos 20 e 30). Logo, é um truísmo dizer que a revolução tem que ser mundial. Todo mundo sabe disso. Essa afirmação não diz nada dos desafios que um país específico terá ao iniciar sua transição socialista.
À guisa de conclusão: se socialismo não é modo de produção, mas toda uma longa época histórica de transformações revolucionárias e se essas próprias transformações são relacionais, ou seja, dependem de condições concretas e objetivas que ditam limites e possibilidades, desconsiderar as experiências concretas de transição socialista comparando de forma mecânica os desafios histórico-concretos da realidade com trechos de livros de Marx e Engels (que não foram escritos levando em conta essa realidade histórico-concreta) é idealismo. Ficar horrorizado com recuos táticos nas experiências de transição socialista, como a NEP na Rússia e as reformas em curso em Cuba, e clamar pela pureza de um socialismo já perfeito aqui e agora também é idealismo. E como todas e todos sabem: idealismo é antagônico ao marxismo.
Fonte
http://makaveliteorizando.blogspot.com/2015/05/duas-teses-sobre-atransicao-socialista.html?m=1
sábado, 23 de maio de 2020
O Estado miliciano em funcionamento
Não digeri as imagens de ontem e não consigo pensar em outra coisa. Elas documentam o Estado miliciano em funcionamento. Bolsonaro é um marginal. Governa o país como um gângster de Rio das Pedras. Weintraub, Salles e Damares são delinquentes. Guedes e sua vaidade são um nojo.
Os ministros promovem uma gincana para agradar o chefe. Ganha quem delinquir mais, quem prometer ser mais bárbaro. A satisfação de Bolsonaro com as falas bandidas mostra onde estamos. Todos os presentes são cúmplices. A história há de julgar essa gente. Por ora estamos fodidos.
A reunião do escritório do crime
Ontem tivemos dois indícios da degradação profunda da vida política no Brasil.
Um foi o vídeo da reunião ministerial. Outro foi a percepção, amplamente difundida, de que a divulgação do vídeo não foi negativa para Bolsonaro. Talvez até tenha sido positiva.
Não estou dizendo que a percepção é errada. A meu ver, não é errada nem correta: o efeito da divulgação do vídeo ainda está em disputa.
Mas o fato de que estamos em um país em que um vídeo como aqueles pode ser encarado como normal - esse fato mostra a dimensão do buraco em que estamos.
Já estive em reuniões de departamento que não alcançaram nem 5% daquele conteúdo e se tornaram escândalos lendários, lembrados por anos em toda a universidade.
O presidente da República e seus ministros (em reunião oficial, é bom frisar) se comportando como pinguços no boteco.
Em meio a uma pandemia que àquela altura já tinha tirado a vida de milhares de brasileiros, nenhuma palavra sobre o assunto.
Ou melhor: xingamentos pesados contra governadores que faziam ou fingiam fazer alguma coisa para conter a doença. E a fala de Ricardo Salles louvando a oportunidade que o vírus gerava - "passar a boiada", destruir o que fosse possível de legislação e direitos, enquanto o país estava ocupado salvando vidas.
Ministros sugerindo abertamente variadas formas de intervenção de força na política nacional. O presidente namorando a ideia de transformar sua base em milícias armadas.
Guedes chamando o patrimônio público de "essa porra".
E sobre a intervenção na Polícia Federal? Só num país em que estamos acostumados a aceitar as desculpas mais esfarrapadas é que a fala de Bolsonaro não conta como evidência de que ele planejava interferir na PF com o intuito de proteger seus próximos de investigações.
Convence o gado? Não, é claro. Mas esses não seriam convencidos nem se Bolsonaro aparecesse abraçado ao Queiroz dizendo "vou safar meus filhinhos criminosos".
Mas, do nosso lado, acho que não devemos minimizar o vídeo.
Há surpresas? Não, certamente não. Mas o vídeo mostra a cúpula do Poder Executivo, em reunião oficial, desprezando solenemente suas responsabilidades com um país mergulhado numa crise sanitária devastadora, focada exclusivamente em seus interesses mesquinhos, tramando abertamente contra a Constituição e a lei.
Um grupo de ineptos, de amorais, de bandidos.
Isso não pode ser aceito como normal.
Moro continua ruim de prova
Fernando Horta
O que o vídeo da tal reunião mostra??
Mostra muito pouco.
A verdade é que Moro tem uma visão completamente distorcida do que seja "prova". Talvez fruto da má formação acadêmica dele, talvez de anos empregando mal a ideia de prova e abusando do seu poder de juiz. O que se sabe é que Moro é traiçoeiro e Bolsonaro fascista.
Nesta briga, ganha o fascista.
Moro arquitetou a gravação. Deixou a prova ali para quando precisasse. Deu um depoimento sem "denunciar nenhum crime" de Bolsonaro, mas apontou para a gravação. O que Moro fez foi exatamente o que ele fazia nos tempos de Lava a Jato. Ele "esquentou" a prova que já sabia existir.
A questão é: a tal "prova" de Moro existe?
A reunião é um caos. Desrespeito institucional, falta de preparo, covardia, ignorância, bagunça e tudo o que a população brasileira minimamente cordata não gostaria de ver no momento em que morriam mais de 2600 brasileiros por COVID.
No meu entendimento a fala de Bolsonaro sobre "trocar ministro" era claramente para o Moro e sim ele fala em intervir na PF. O problema é que o contexto todo da fala é passível de ser flexibilizado, minorado, amainado e tornado bem sem importância. A tal "reunião ministerial" parecia um trabalho em grupo de alunos de sétimo ano que não sabiam muito bem o que pesquisar.
Salles é eticamente um criminoso. Damares uma alucinada. Guedes serve a seus patrões (bancos) fielmente. Onyx consegue ser mais alucinado que o chanceler Ernesto e Bolsonaro é um incapaz que jamais poderia ter sido votado para síndico, quanto mais a presidente. Mas crime mesmo, preto no branco, bala de prata, inquestionável? Não tem.
O que o vídeo prova é que Bolsonaro fala do mesmo jeito com a imprensa e com seus subalternos. Ele é aquele bronco incapaz mesmo, que repete chavões psicóticos sem nenhum sentido. Seus apoiadores ficarão ainda mais contentes. O fascismo ganha força no Brasil. E o general Heleno, aquele acusado de chacinas no Haiti, ameaçou o Supremo. Celso de Mello recuou.
No final das contas, Bolsonaro marcou um estrondoso gol, Moro segue seu caminho para a desimportância, o Brasil continua um país à deriva, e hoje morreram mais 1001 brasileiros de "gripezinha".
Fique em casa e se não acreditar em Deus, reze mesmo assim.
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Quando ele tiver de se explicar
Um dia, diante do tribunal, Bolsonaro não poderá dizer Caso encerrado!
No dia ainda incerto, mas infalível, em que Jair Bolsonaro se sentar no banco dos réus, veremos se usará a tática a que se habituou no poder para se impor numa discussão —silenciar seus interlocutores cortando-lhes a palavra e repetindo aos gritos seus bordões, como “Chance zero!”, “Ponto final!”, “Caso encerrado!”, “Próxima pergunta!”, “O recado está dado!”, “Cala a boca!” e “E daí?”.
A Justiça não se contentará com uma argumentação tão lacônica. Bolsonaro terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda.
Será fascinante seguir Bolsonaro pela TV, defendendo-se no julgamento com seu vocabulário indigente, português estropiado, expressões chulas, sotaque caipira, estoque de palavrões e abuso de taoquêis. E mais ainda porque, apesar de velho político, ele nunca fora contestado para valer —como deputado de quinta, ninguém perdia tempo com ele e, presidente, achava-se poderoso demais para discutir. Condenado em várias instâncias, mas à espera de que se esgotem os recursos, Bolsonaro, como ex-presidente, deverá ter direito a uma sala de Estado Maior num quartel da Polícia Federal.
Talvez, então, ele já terá sido abandonado por seus seguidores. Aqueles que, nos áureos tempos, exerciam em seus ataques aos opositores um laconismo igual ao do chefe: “Lixo!”, “Chega de mimimi!”, “Simples assim!”, “Entendeu ou quer que desenhe?” e “Aceitem que dói menos!”.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
“As milícias bolsonaristas não vão aceitar a derrota e as esquerdas precisam se precaver”, diz historiador
Por Laércio Portela
Bolsonaro constituiu um dispositivo de milicianos e paramilicianos ligados às polícias militares que não vão aceitar a alternância de poder em caso de derrota no projeto de reeleição do atual presidente. A análise é do historiador Daniel Aarão Reis, professor da pós-graduação em História na Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em revoluções socialistas no século XX e pesquisador das esquerdas e da ditadura de 1964 no Brasil.
Aarão Reis compara o que pode acontecer em 2022 com a ação dos grupos radicais que se mobilizaram no final dos anos 1970 para desestabilizar o processo de transição para a democracia no país, praticando uma série de atentados. “É um pessoal truculento, agressivo e tá muito autoconfiante. Têm armas na mão e, provavelmente, vão usá-las se não forem dissuadidos”.
Autor de livros de referência sobre a ditadura militar no Brasil, Daniel Aarão Reis critica em entrevista à Marco Zero Conteúdo a postura dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff em relação às Forças Armadas brasileiras. “Nunca houve uma investida séria em chamar as Forças Armadas para discutir seu papel na democracia e reformular os seus currículos. Os governos sempre foram muito lenientes e civicamente covardes de enfrentar essas coisas”, analisa o historiador, contrapondo o Brasil ao que aconteceu no governo Néstor Kirchner, na Argentina, quando o Estado pediu desculpas públicas pelos crimes cometidos durante o regime de exceção.
Para Aarão, existem pelo menos três dimensões de análise para entender a ascensão de Bolsonaro até a Presidência da República: as tradições estruturais do autoritarismo no Brasil, a longa conjuntura (a partir do processo de redemocratização até 2018) e a conjuntura curta (a eleição presidencial propriamente). Teria contribuído decisivamente para a derrota, o fato de as esquerdas subestimarem o debate em torno da corrupção e da segurança pública. “São temas que extravasaram a classe média e atingem hoje as camadas populares. Questões de vida e morte… porque afetam a saúde, a educação, a democracia”.
Aarão lança uma provocação: “Todo mundo fala em derrubar o Bolsonaro, mas para fazer o que exatamente? Para voltar a aquelas alianças com as forças do atraso? As forças democráticas têm que apresentar um programa que seduza a população… A minha esperança é que venham articulações para defender a educação pública, para defender a ciência, políticas alternativas para enfrentar as desigualdades. Esse é o desafio das esquerdas e eu sou cético das possibilidades dos partidos, a chamada esquerda de Estado. Ou a esquerda social – sociedade civil, fóruns – vai formular e implementar essas alternativas ou então nós estamos mal”.
O quanto nossa transição democrática conciliatória – lenta, gradual e segura – que não questionou e debateu abertamente os crimes da ditadura militar tem a ver com a retomada desse discurso da extrema direita no Brasil e os pedidos de intervenção militar?
Eu venho há muitos anos tentando chamar atenção para as correntes autoritárias da sociedade brasileira, que inclusive atravessam a sociedade de alto a baixo, não estão só presentes nas elites sociais. Uma tendência geral que é muito autoritária e estrutural. A partir do bolsonarismo, as pessoas passaram a reconhecer essa evidência. Eu fico feliz. É difícil você superar um problema quando sequer admite a existência dele. No entanto, a partir daí gerou-se uma perspectiva que não é muito construtiva porque vai de um extremo para outro. Antes, as tendências autoritárias sequer eram reconhecidas, agora passam a ideia de que esse país tem o autoritarismo na veia, de sorte que se elimina a política da história, como se o bolsonarismo fosse uma expressão mecânica dessa tradição. O que é uma incongruência porque essa mesma sociedade elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso, elegeu e reelegeu Lula, elegeu e reelegeu Dilma. Foi quando muita gente disse que as tendências autoritárias tinham acabado. Teriam sido absorvidas pelo processo da democratização. Antes disso, nos anos 1970, em seminários no Brasil e na América Latina, atribuíam-se as ditaduras no Brasil às nossas tradições ibéricas. Isso era então muito desanimador porque, se a gente está preso às tradições ibéricas, a gente não vai sair dessas tradições tão cedo. Até que a península ibérica, tanto a Espanha quanto Portugal, passaram por processos de democratização. E agora, vamos dizer então que as tradições ibéricas foram eliminadas? Não, elas continuam presentes. Mas ao tratar das questões estruturais você não pode eliminar a política da história. As tradições estruturais pesam, mas elas não resumem a história em termos exaustivos.
E como essa reflexão pode explicar o bolsonarismo?
Para a compreensão do bolsonarismo eu tenho introduzido a necessidade de refletir sobre duas outras dimensões, sem desprezar essa tradição estrutural. Uma delas é o que eu chamo da grande conjuntura, que vai desde o processo da transição para a democracia até o ano de 2018, quando houve as eleições que consagraram Bolsonaro. É uma grande conjuntura de 30 anos, no contexto da qual você teve muitas decisões políticas que foram contribuindo gradativamente para, de um lado, a manutenção dessas tradições autoritárias e, de outro lado, uma certa desilusão do sistema que foi sendo construído com base na Constituição de 1988. Esse sistema já teve muito prestígio, já teve muita adesão, mas progressivamente a confiança nele foi sendo corroída e isso, ao meu ver, deveu-se ao fato de que o nosso processo de redemocratização, a chamada Nova República, gerou dois partidos com vocações reformistas, o PT e o PSDB. Esses dois partidos nasceram anunciando projetos reformistas e, ao longo do tempo em que governaram, apesar de terem realizados algumas coisas bem positivas, eles não conseguiram empreender as reformas que anunciavam e que a população esperava. Reformas que pudessem realmente transformar esse país, que apresenta índices de desigualdade dos mais extremados no mundo. A reforma política é um exemplo. Um amigo meu, o Carlos Vainer (sociólogo e economista), cunha uma expressão com a qual eu comecei a trabalhar. Referindo-se às esquerdas institucionais, aos partidos políticos, ele fala de uma “esquerda de Estado” à qual ele antepõe uma “esquerda social”. A esquerda de Estado foi essa esquerda que se deixou recrutar, cooptar pelo jogo institucional, pelos calendários eleitorais. E foi perdendo gradativamente o contato com a sociedade. Eu trabalhei 35 anos na universidade, ainda trabalho na pós-graduação, e fui observando essa gradual perda de esperança da juventude. Isso também é muito claro nos estratos populares.
Uma desilusão…
O PT e o PSDB não foram capazes de articular uma aliança entre eles e cada um deles, ao seu modo, procurou o que havia de pior nas tradições brasileiras para se fortalecer no jogo institucional e foram contaminados por isso. De partidos reformistas se transformaram em partidos gestores, sempre com a ressalva de que eles, ao gerenciar a sociedade, fizeram melhor do que as chamadas forças do atraso, mas ao se alinharem a essas forças do atraso perderam a perspectiva de uma reforma política, de uma reforma econômica, de uma reforma tributária, uma reforma das polícias, do sistema penitenciário… Esse tipo de comportamento foi fazendo com que eles acabassem sendo compreendidos como um entre os outros.
Perdendo aderência na sociedade?
Eles foram perdendo o capital daquilo que os diferenciava. Eles nunca se interessaram em abrir uma discussão na sociedade sobre a ditadura, sobre as tradições autoritárias, sobre as Forças Armadas. As Forças Armadas mantiveram-se afastadas, remoendo seus ressentimentos, e formando as suas lideranças em padrões totalmente anacrônicos e autoritários. Nunca houve uma investida séria em chamar as Forças Armadas para discutir seu papel na democracia e reformular os seus currículos. Os governos sempre foram muito lenientes e civicamente covardes de enfrentar essas coisas. A ideia era: deixemo-las de lado e com o tempo a gente vai fazendo as mudanças. As mudanças iam acontecer naturalmente, mas nada na história acontece naturalmente. A intervenção humana é fundamental e eles ficaram lá remoendo esses ressentimentos. Eu me lembro a primeira vez que fui impactado por isso, nos anos 1990, quando li no jornal que os cadetes da Academia das Agulhas Negras escolheram como patrono o general Médici (Emílio Garrastazu MédicI, general-presidente entre 1969 e 1974). Como os jovens que estão se formando podem ter como patrono o que a ditadura tinha de mais sinistro? Isso significa que está havendo zero de discussão democrática dentro das Forças Armadas. Os governos civis não exigiram que isso fosse feito, de sorte que as Forças Armadas voltassem a ser o que eram antes de 1964, Forças Armadas plurais, onde havia uma discussão, onde havia tendências políticas diferenciadas. Mas a ideia era fazer que nem avestruz: meter a cabeça no chão e fingir que não havia um processo altamente deletério.
Ignorar o passado acabou fortalecendo a posição das Forças Armadas no presente?
A tal da GLO, Garantia da Lei e da Ordem, que foi um princípio autoritário inscrito na nossa Constituição e permite aos presidentes dos poderes chamar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem, pois bem, os governos petistas cansaram de fazer isso, inclusive colaborando com que as Forças Armadas fossem reobtendo um prestígio, vistas como aquelas “forças impolutas” – que faz muito o ideário das Forças Armadas brasileiras desde a proclamação da República. Os militares sempre se viram como vetores da República, como anjos da guarda da República, e isso é totalmente antirepublicano e antidemocrático. Ao invés dos governos do PSDB e do PT lidarem com isso, enfrentarem isso, enquanto eles tinham força e enquanto os generais de direita nas Forças Armadas não tinham força, eles não se mexeram. Isso foi feito com muita coragem cívica na Argentina. O Kichnner (Néstor Kirchner, presidente argentino entre 2003 e 2007), quando assumiu, chamou lá o ministro e disse: “você vai pedir desculpas à sociedade pelas arbitrariedades, pelos assassinatos..” e o ministro se recusou, foi demitido e veio outro… E daí por diante, quando veio o oitavo, o oitavo decidiu “eu acho isso razoável, eu não estou comprometido com essas matanças e acho que as Forças Armadas fizeram mal” e pediu desculpas. Aí você tem um processo de outra natureza. Não houve uma discussão dessas tendências autoritárias no Brasil, inclusive muitos acadêmicos que hoje reconhecem essas tendências dizem que antes não viram. Não viram porque não quiseram. Diziam que a democracia estava consolidada. Lula, Dilma, políticos, acadêmicos viviam dizendo isso, sem perceber que ali estavam as células autoritárias, cancerosas, à espera de um momento que lhes fosse favorável e esse momento chegou a partir da crise de 2008.
A crise de 2008 criou as condições para a volta do protagonismo do autoritarismo?
A crise de 2008 aprofundou as questões econômicas, o desemprego, a insegurança… Isso tudo foi contribuindo gradativamente para que a extrema-direita voltasse a ter voz. Ela, que nunca tinha exatamente desaparecido, ganhou força.
E o bolsonarismo?
Para entendermos o bolsonarismo, precisamos de uma terceira dimensão, além dessa da grande conjuntura. Uma dimensão mais concreta que é a conjuntura eleitoral do ano de 2018. Se você observar bem, em agosto de 2018, Bolsonaro ainda tinha de 15 a 20% de votos e muita gente não acreditava que ele pudesse crescer tanto a ponto de ganhar, e aí é que entra a necessidade de analisar a conjuntura curta. Temos as tradições autoritárias, a longa conjuntura, e a conjuntura curta que foi decisiva. Ao meu ver, a gente precisa discutir os erros que aconteceram na esquerda e os acertos de Bolsonaro para entendermos a vitória dele. Ele realmente tem aquele núcleo duro da extrema-direita que as pesquisas fixam em 12, 15, algumas dizem 20%, mas não passa disso. Acontece que ele ganhou as eleições com mais de 50%. O principal erro das esquerdas foi subestimar a força do bolsonarismo. A insistência em manter a candidatura Lula, depois fizeram do Haddad, no primeiro turno, um boneco do Lula. Todo mundo colocava a máscara do Lula no Haddad ou nas suas próprias figuras, de sorte que isso aí acabou tendo um efeito negativo. Eu penso que a incapacidade das esquerdas comporem uma frente para enfrentar o perigo bolsonarista foi muito decisiva para explicar a ascensão da extrema-direita.
O discurso de Bolsonaro obteve mais adesão do que o das esquerdas.
Foi decisiva a subestimação de alguns problemas que foram se tornando centrais e para os quais Bolsonaro apresentava falsas soluções, mas dizia que iria solucioná-los. Dois problemas que afetavam muito as classes populares e as classes médias. A questão da corrupção e a questão da segurança. As esquerdas sempre subestimaram a questão da corrupção, dizendo que essa questão era uma questão das elites, uma tradição da UDN, e era mesmo, só que extravasou muito além das classes médias para atingir as camadas populares. Essa ideia do sistema político brasileiro como corrupto, apodrecido, isso é um consenso que se estabelece muito para além da classe média. As esquerdas poderiam ter tido uma crítica a isso e uma autocrítica. É uma questão de vida e morte. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, desviaram os recursos da saúde para o bolso dos políticos ligados a Sérgio Cabral (ex-governador do Rio entre 2007 e 2014). Em muitos outros lugares do Brasil isso aconteceu, então é uma questão que impacta a educação, é uma questão que impacta a democracia porque desmoraliza a democracia. Fica parecendo que o sistema político é um sistema ocupado por ladrões. Bolsonaro surge – apesar de todas as evidências que o comprometiam com processos de corrupção – como o salvador da pátria. Nesse ponto de vista, reeditando discursos que tinham sido feitos no Brasil por Collor (Fernando Collor de Melo, presidente entre 1990 e 1992) e pelo Jânio Quadros (presidente eleito em 1960 e que renunciou em 1961). E esse não é um discurso só de classe média, é um discurso que tem ressonância popular.
E a questão da segurança?
A segurança passou a ser, nos grandes centros urbanos, e não só neles, o grande problema. Se as classes médias e as elites conseguem colocar grades e vigilantes nos condomínios, as classes populares estão à mercê dos bandidos e dos traficantes e sofrem demais com isso. Esses bandidos atacam também as camadas populares, quando entram em conflito entre eles mesmo, matando gente, interrompendo as aulas nas escolas, fechando os postos de saúde. Você não pode imaginar que uma criança e um jovem que deixam de ir à escola por causa de um tiroteio num dia, no dia seguinte vão à escola como se nada tivesse acontecido. Há um trauma. As esquerdas tinham uma ênfase justa nos direitos humanos, mas elas não contemplaram reformas no sistema penitenciário e reformas no sistema da ação da polícia. Se você faz uma comparação, os governos de esquerda não se distinguem dos governos de direita do ponto de vista da ação da Polícia Militar, do combate ao tráfico de drogas. E Bolsonaro vinha com uma proposta absolutamente absurda, primária – “a gente mata os bandidos” -, fazendo aquele gesto da arminha toda hora, e aquilo impactou muito.
A esquerda deixou de fazer outros debates importantes?
O terceiro elemento que eu acho que foi muito pouco discutido pelas esquerdas foi o diálogo com as igrejas evangélicas, que cresceram muito no país. As esquerdas fizeram como fizeram com as Forças Armadas. Esses grandes caciques das igrejas evangélicas, os Malafaia da vida, foram aquinhoados com meios de comunicação. O Lula, a Dilma e o Fernando Henrique Cardoso iam lá beijar as mãos deles, legitimar a liderança dessa gente. Ao invés de entrar em discussão, porque os milhares de pastores dessas igrejas não são todos necessariamente de direita e desempenham um papel importante. Na medida em que o Estado deixa de aparecer em algumas regiões, eles ali vão criando redes de apoio mútuo de solidariedade que são muito importante. E aí você oblitera uma dimensão da realidade fundamental para ficar lá com seus próprios preconceitos. Esses erros todos foram se acumulando e corroendo as bases eleitorais das esquerdas, enquanto Bolsonaro foi muito rápido em constituir alianças, tanto do ponto de vista da luta contra a corrupção quanto do ponto de vista da luta pela segurança e também articulou o apoio do capital financeiro junto com o Paulo Guedes. A vitória de Bolsonaro não estava dada, ela foi construída, apoiada nas grandes tradições autoritárias, mas também na progressiva corrosão da confiança no sistema político, na grande conjuntura, e, finalmente, na curta conjuntura. É da união dessas três dimensões que podemos entender porque esse homem tão tosco e absurdamente grosseiro assumiu a Presidência da República.
Até que ponto uma derrota de Donald Trump na eleição presidencial deste ano nos Estados Unidos pode impactar os governos autoritários pelo mundo e, especificamente, o governo Bolsonaro no Brasil?
Nós estamos vivendo desde os anos 1960 um processo profundo de desestruturação geral da economia, da sociedade, da cultura, da política, a revolução digital, da informação. Outro dia o Márcio Pochmann (economista, ex-presidente do Ipea) dizia que o Brasil de uns 40 anos pra cá mudou completamente. Ele começava com a análise do berço operário do Lula, lá no ABC Paulista, e que hoje desapareceu. Aquelas empresas já foram quase todas elas robotizadas, ou migraram para outros lugares. Essa revolução digital está desestruturando tudo. As pessoas sentem o chão tremer, vacilar, e esse é um processo mundial que está favorecendo em toda parte o crescimento de tendências autoritárias porque elas crescem nessas ocasiões de desespero, de desesperança, de crise de identidade. Você tem milhões e milhões de pessoas jogadas no desespero, e essa gente tem um potencial grande de apoiar os líderes salvacionistas, que aparecem em toda a parte, às vezes até responsabilizando o capital financeiro, os plutocratas, responsabilizando a riqueza, os comunistas, qualquer coisa, de modo a que você tenha ali uma tábua de salvação. O crescimento das governanças autoritárias é um fenômeno mundial e o Trump está nesse contexto e, ele ganhando, potencializa enormemente o contexto em função da importância dos Estados Unidos. Bolsonaro é a expressão radical desse processo aqui no Brasil e isso se vê na sua atitude muito dependente, sabuja mesmo, com o Trump. Essa coisa de bater continência à bandeira norte-americana, de estar sempre ali adulando o Trump, de uma maneira até constrangedora… Evidentemente uma derrota do Trump vai ter um impacto bastante positivo para as forças democráticas em toda a parte aqui da América Latina e do Brasil em particular.
O sr. acha que as esquerdas ainda vivem a “utopia do impasse” como no começo da ditadura de 1964, quando apostavam que o regime militar não ia se sustentar, que estava fadado a cair. Muitos setores da esquerda hoje parecem pensar assim sobre o governo Bolsonaro, como pensaram antes sobre o governo Temer.
Quando formulei essa ideia da “utopia do impasse” foi muito para entender aquela esquerda que a gente tinha e que se formou logo depois do golpe de 1964 e que foi uma esquerda que passou a alimentar um ceticismo muito grande a qualquer hipótese de mudança na ditadura que não fosse na luta armada. A ideia que a gente tinha, e eu fui um militante daquela época, era de que a ditadura tendia a piorar cada vez mais. Nesse sentido, quando veio o AI-5, até a gente achou que estávamos certos e que ia piorar. Mas não vimos ali duas coisas, que aquele sistema podia sim evoluir em outras circunstâncias e, segundo, que a sociedade, as camadas populares, principalmente, não estavam a fim de nos acompanhar no enfrentamento armado. A gente não teve essa sensibilidade. A ideia que a gente tinha era a de que o povo estava nos cascos, pronto a nos acompanhar se houvesse uma ação de vanguarda. Foi um raciocínio completamente equivocado e por isso nós pagamos caro.
E no caso do governo Bolsonaro?
Às vezes me impressiona muito essa obsessão com Bolsonaro. Ela é uma imposição das circunstâncias, mas às vezes as esquerdas ficam muito a reboque disso, sempre comentado a última do Bolsonaro, quando a gente tem que investir na recomposição das forças democráticas, na recomposição das alianças e da formulação de um programa alternativo ao Bolsonaro. Todo mundo fala em derrubar o Bolsonaro, mas para fazer o que exatamente? Para voltar o lulismo? Para voltar aquela política de ampla conciliação de classes da esquerda petista? Para voltar a aquelas alianças com as forças do atraso? As forças democráticas têm que apresentar um programa que seduza a população. A população hoje está aí encurralada com a pandemia, mas mesmo assim é impressionante como Bolsonaro mantém 30% de apoio da população. Você tem que apresentar uma alternativa. Tudo bem, é preciso denunciar o Bolsonaro, mas o que é que a gente tem a dizer de novo, de alternativo?
O sr. acredita na capacidade dos partidos de esquerda de formularem essa alternativa?
Eu me pergunto é se os partidos políticos de esquerda vão ser capazes disso. Eu estou cada vez mais achando que é da chamada esquerda social que a gente deve esperar um movimento decisivo. A minha esperança vai mais é para que a sociedade civil, fóruns, articulações da sociedade civil, comecem a se formar, porque elas terão uma credibilidade muito maior do que os partidos de esquerda, que estão muito envolvidos no calendário eleitoral, nesses conchavos. A minha esperança é que venham articulações para defender a educação pública, para defender a ciência, políticas alternativas para enfrentar as desigualdades. Esse é o desafio das esquerdas e eu sou cético das possibilidades dos partidos, a chamada esquerda de Estado. Ou a esquerda social vai formular e implementar essas alternativas ou então nós estamos mal. Essa é minha esperança em relação às esquerdas.
O que acha do modus operandi de Bolsonaro? Ele está sempre tensionando as instituições, promovendo uma retórica de que o Executivo está tendo seus preceitos constitucionais invadidos pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional. Chegou a dizer que ele é a Constituição e que detém o apoio das Forças Armadas. Está em curso um autogolpe? Nos moldes de um Estado de direito autoritário, como o sr. apontou no primeiro momento do regime militar de 1964, antes da fase da ditadura escancarada?
Você vê essa perspectiva em muitos lugares do mundo. Na Rússia, na Hungria… As lideranças autoritárias, sem golpear a Constituição, às vezes vão mudando as coisas… Você veja que o primeiro-ministro da Hungria (Viktor Orbán) conseguiu passar no Parlamento, onde ele tem maioria, um decreto que prorroga por tempo indeterminado os plenos poderes. Ele não mudou a Constituição, mas aprovou medidas que acabam concentrando nas suas mãos muito poder. Acho que a gente está arriscado realmente a viver isso. A democracia no Brasil está em risco. Bolsonaro está fazendo no Brasil muitas coisas nesse sentido, de emparedar as outras instituições, sempre com esse argumento, que é o argumento que ele vai usar na campanha eleitoral de 2022, de que “eu quis fazer mas não deixaram…”. Os líderes salvacionistas sempre recorrem a essa coisa. Como eles são eleitos na base de um programa muito simplista, que não funciona, quando se vêm emparedados, eles tendem a esse discurso. Aconteceu com Jânio Quadro, com Collor… Então Bolsonaro vai utilizar esse tipo de discurso intensamente em 2022, se a gente chegar até lá. “Não me deixaram governar, me deem um voto de confiança” e vai, naturalmente, propor que ele tenha uma concentração de poderes para ele aprovar o que for necessário no Parlamento.
Vê a possibilidade de um autogolpe antes das eleições?
Eu penso que, para a conjuntura atual, um golpe ou um autogolpe não seja muito viável, mas se houver uma conflagração social, sim, essa hipótese pode se atualizar. Mas no momento atual eu acho que não. Eu até estou surpreso com isso. Eu imaginava que Bolsonaro ia tratorar o Congresso e o Supremo. E está acontecendo o contrário, você tá vendo que, muito timidamente, tanto o Congresso quanto o Supremo, cortaram as asas dele, para impedir que ele vá mais longe. Naturalmente, ele vai utilizar isso depois: “eu quis fazer e não deixaram.” Para vencer esse discurso, as esquerdas estão desafiadas a apresentar um programa alternativo e não apenas denunciar Bolsonaro.
O sr. vê outras ameaças à ordem democrática?
Sim. Eu penso que Bolsonaro constituiu um dispositivo militar, que são as milícias e as paramilícias dentro das Polícias Militares e ele tem ali um apoio muito substancial. Eu estou seguro que esse dispositivo não vai aceitar pacificamente uma alternância de poder. Eu tenho a impressão de que, se Bolsonaro perder as eleições de 2022, essa gente vai partir pra ignorância. Vai partir pra uma explosão semelhante a aquela que as forças de segurança promoveram no final dos anos 1970, tentando impedir o processo de transição no Brasil, explodindo bombas, matando gente… Eu acho que esse dispositivo militar, que não é propriamente o dispositivo das Forças Armadas legais, mas é um dispositivo informal que é muito poderoso, está muito extremado, é muito agressivo e não vai hesitar em partir pra violência. As forças democráticas precisam se preparar para enfrentar isso porque se elas não se prepararem corremos o risco de ver muitas das nossas lideranças ceifadas, assassinadas, porque não tiveram a sabedoria de se precaver. Você vê muitas vezes o discurso dessa gente nas redes sociais. É um pessoal truculento, agressivo e tá muito autoconfiante. Tem armas na mão e, provavelmente, vão usá-las se não forem dissuadidos.
O sr. acredita na reeleição de Bolsonaro?
Do jeito que as coisas, vão eu não acredito na reeleição. Eu acho que Bolsonaro está lá com seu núcleo duro, mas tá perdendo gradativamente suas bases, na direita democrática e no centro, e que foram muito pra ele em função do anti-petismo. Mas as forças em torno dele não vão aceitar uma transição democrática tranquila.
E quanto às Forças Armadas? Hoje são nove os militares no primeiro escalão e mais de 2 mil militares nos segundo e terceiro escalões do governo Bolsonaro. Numa situação de confrontação aberta e de possível ruptura institucional de que lado elas vão ficar?
Eu sinto nos próprios especialistas em Forças Armadas uma certa perplexidade. Como aqueles pilotos que estão num vôo cego. Essa característica que você falou aí é verdade, centenas de oficiais do Exército migraram para órgãos de poder, mas isso quer dizer que as instituições vão estar do lado do Bolsonaro, por exemplo, num processo golpista? Nas circunstâncias atuais, eu acho difícil. Agora, também me recinto muito de uma informação minuciosa, mais clara, a respeito de como andam os humores, as tendências das Forças Armadas. A verdade é que a grande maioria dos militares votou em Bolsonaro, mas muito mais animadas pelo anti-petismo e com a expectativa de que elas iriam domesticar o homem. Essa perspectiva hoje está completamente vencida. Bolsonaro já mostrou que ele é incontrolável. Agora, as Forças Armadas vão ficar a reboque dele? Até quando? Até que limite? Isso é um ponto de interrogação que se coloca aí. Alguns argumentam que mesmo que elas fiquem neutras, você pode ter um golpe efetuado pelas milícias. Num padrão boliviano. Lá, as Forças Armadas ficaram nos quartéis, a polícia também. E atuaram as milícias.
Acha possível essa postura no Brasil?
Eu acho que o Brasil é um país muito complexo para isso. Se as milícias atuam, elas vão querer depois ter uma força correspondente e esse é um nó que tem aí entre as forças de apoio ao Bolsonaro porque as Forças Armadas são as forças que detêm formalmente o monopólio das armas e elas estão vendo, nós estamos vendo, crescer esse poder paralelo das milícias, que é um poder armado também e que começa a determinar a vida de inúmeras comunidades Brasil afora. Então eu penso que isso aí é uma contradição que pode implodir a frente bolsonarista.
Existem também divergências do ponto de vista da economia no campo bolsonarista?
A aliança do Bolsonaro com os ultraliberais é muito impressionante porque a tradição das Forças Armadas é nacional estatista. Conversei outro dia com um pesquisador, que tem um estudo sobre as Forças Armadas, e ele me disse que isso se alterou gradativamente. Ele apontou o exemplo do Chile, em que as Forças Armadas fecharam os olhos a um processo ultraliberal porque lhes foi concedido um estatuto particular na sociedade: sistema de saúde próprio, remunerações próprias, gratificações. Hoje, a Constituição do Chile reserva às Forças Armadas um percentual fixo obtido com as exportações do cobre, que é a principal riqueza chilena, e com isso elas mantêm um sistema que as diferencia radicalmente do conjunto do funcionalismo público civil. Esse processo poderia acontecer no Brasil? A reforma da Previdência deu indicação nesse sentido. As mudanças que impactaram no funcionalismo civil preservaram as Forças Armadas, que tiveram inclusive reajustes salariais. A verdade também é que o ultraliberalismo do Guedes ainda não foi à prática, houve a aprovação da reforma da Previdência, à qual ele teve que fazer uma série de concessões, e as privatizações e os avanços da reforma Tributária que ele quer fazer ainda não foram para frente, assim como a reforma administrativa.
E com a pandemia essa agenda pode ficar comprometida, não é?
A resistência a isso fica muito grande. E foi muito impressionante surgir, agora, no contexto da pandemia, esse plano do Pró-Brasil, que é um plano que tem a ver com a tradição nacional estatista das Forças Armadas. Me lembro quando Bolsonaro nomeou Guedes e Moro para o seu Ministério e vozes experientes da política brasileira disseram que era um erro, nomear um ministro que você não possa demitir. Os dois eram vistos como indemissíveis. Um já foi. O Moro. E o outro já é cogitado para ser demitido caso essa política ultraliberal não dê certo. E parece que não vai dar mesmo porque o pós-pandemia aponta em todo mundo para os nacionalistas crescerem e não o ultraliberalismo. Guedes então vai se achar, de repente, numa situação anacrônica porque o programa dele se encaixa no contexto da globalização e a globalização pode sofrer fortes impactos com a pandemia.
O sr. acha a centro-direita vai construir uma candidatura para fazer frente a Bolsonaro em 2022?
Acho que sim. Eles estão manobrando nesse sentido. E têm dois potenciais candidatos, Moro e Dória (João Dória, governador de São Paulo). Os dois já vêm trabalhando nesse sentido. Mas o fato é que a gente não tem um quadro claro do pós pandemia. Estão anunciando aí uma grande crise econômica internacional, com impactos evidentemente no Brasil, e isso vai fazer crescer uma demanda muito grande por Estado. Claro que os liberais vão dizer que não são contra o Estado, desde que o Estado sirva à educação, à segurança, e dizer que eles são contra o Estado que se imiscua na economia, mas essa vai ser uma exigência para enfrentar o pós pandemia. Há muitas variáveis aí que a gente não domina, mas a tendência é o crescimento do Estado e isso é contra o Guedes, contra a linha liberal do Guedes. Eu penso que a centro-direita, sobretudo se Bolsonaro se inclinar para essas políticas estatistas, vai efetivamente tentar jogar uma alternativa. Existem forças muito consideráveis entre as elites que estão insatisfeitas com Bolsonaro. Aliás, as últimas pesquisas dão uma queda muito grande na aprovação ao governo exatamente nas elites sociais, entre aqueles que recebem mais de 10 salários mínimos. Já Moro vai ficar aí como uma reserva moral a ser acionada e pode realmente ter resultados bem expressivos. Sendo assim, Bolsonaro pode ser empurrado de novo para aquele nicho de 12, 15 e 20%, que é a extrema-direita no Brasil.
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