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domingo, 6 de março de 2022

Rússia X Ucrânia

Sequência de eventos e visões políticas ocidentais e russas que ajudam a entender o cenário maior. Entender o quadro geopolítico é diferente de concordar com a atual invasão ou invasões anteriores.

Anos 1990: fragmentação da URSS. 1994: Rússia e Ocidente garantem soberania territorial da Ucrânia em troca de sua desnuclearização, já que o país tinha boa parte do arsenal nuclear soviético (Memorando de Budapeste).

1994: A Crimeia, região de maioria russa na Ucrânia, recebe status de república autônoma, sujeita a Kiev, com parlamento próprio.

1999: Expansão da OTAN sobre países da ex-Cortina de Ferro, contrariando acenos feitos à Rússia.

1999: Alteração do estatuto da OTAN permite que a organização ataque sem ser atacada. Ação da OTAN no Kosovo, contra a Sérvia (aliada da Rússia) a favor dos separatistas kosovares, com ataques a outras partes da Sérvia, incluindo a capital Belgrado.

Sérvia, acusada de limpeza étnica, era protegida pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU. Poder de veto russo impediu ação da ONU, mas não existe em relação à OTAN.

2003: Invasão dos EUA ao Iraque, pautada em denúncias falsas sobre colaboração com o extremismo e armas de destruição em massa. Ação foi criticada pela Rússia como tentativa dos EUA de impor seu poder, violando o direito dos povos. Na ONU, Rússia usou seu veto.

Invasão ao Iraque foi feita mesmo sem aprovação da ONU, liderada por EUA e alguns aliados, com destaque para o Reino Unido.

2008: Kosovo realiza referendo para independência sem participação do resto da Sérvia. Resultado aceito por diversos países ocidentais.

2008: Geórgia, ex-URSS, se aproxima da EU/OTAN. Alegando defesa de minorias russas, Rússia ataca o país por 6 dias e reconhece a independência das regiões separatistas da Abkházia e Ossétia do Sul.

2011: Ataque da OTAN à Líbia, no contexto da Primavera Árabe, sem que houvesse ataque da Líbia à OTAN. Queda de Muanmar Kadafi, ditador antiocidental.

2013/14: Ucrânia Governo pró-Rússia derrubado após manifestações contra a decisão de não assinar acordo de aproximação com a Europa. Justificativa foi o uso da violência contra manifestantes, remoção do presidente pelo parlamento, mesmo sem obter todos os votos necessários.

Crimeia declara independência unilateral, pedindo apoio russo em seguida. Anexação à Rússia aprovada por referendo sem participação do resto do país. Ocidente e Kiev não reconhecem, Rússia anexa. Movimentos separatistas pró-Rússia em Donetsk e Lugansk (Donbass), guerra civil.

Acordos de Minsk não resolveram a questão. Região do Donbass teve participação nas eleições vetada pelo governo de Kiev.

Ocidente acusa Rússia de violar território ucraniano, Rússia acusa Ocidente de incitar a queda do governo e armar milícias neonazistas que participaram das manifestações. Crise dividiu o país (mapa), não houve consenso sobre a queda do governo, não foi um movimento nacional.




2021 - 22: derrota da OTAN no Afeganistão, troca de governo nos EUA, Europa ainda abalada pelo Brexit, troca de poder na Alemanha. Ocidente "enfraquecido". Alegando que a expansão da OTAN é uma ameaça à sua segurança, Rússia invade Ucrânia.

Por anos a Rússia acusou o Ocidente de desrespeitar o direito dos outros países à autodeterminação e enxergou nas ações ocidentais uma ameaça. A Ucrânia não ameaçou formalmente e militarmente a Rússia e foi invadida.

Por anos a URSS dominou o leste europeu, apoiando as ditaduras da Cortina de Ferro e ajudando a reprimir os levantes de 1956 na Hungria e 1968 na Tchecoslováquia.

Ocidente, por sua vez, não reconhece como legítima a independência/anexação da Crimeia, porém reconheceu a do Kosovo. O Ocidente fala em defesa da democracia e apoia diversos governos autoritários pelo mundo, como a Arábia Saudita, Egito ou Argélia.

Fonte: HO


sábado, 30 de janeiro de 2021

Reflexão



"Professor não nasce pronto, nem sequer está pronto ao término da licenciatura. É a prática pedagógica, entre erros e acertos, subjetividades misturadas a teorias pedagógicas e conteúdo disciplinar que gera o professor. Neste processo, o passo inicial é uma experiência única e decisiva."

Ensinar História - Joelza Ester Domingues

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Pleito municipal de São Paulo

Não vou negar que o resultado me deixou abatido mas, não perdi a capacidade de continuar acreditando que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária. O que me preocupa, por um lado, é que a esquerda não se entende. Há muitos conflitos sobre meios e rumos a serem seguidos. Cabe aqui ressaltar que os dados de abstenção, nulos e brancos é um recado da crise de representatividade e do descrédito nas instituições, gerando uma negação da política.


  

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Os violoncelos que o racismo quer silenciar

Negros em posição de poder incomodam porque sua liberdade nunca foi presumida

Uma peça em três atos. Primeiro ato: Presidência dos EUA emitiu um memorando no último sábado (04) determinando que todas as agências federais cancelem treinamentos sobre racismo; numa canetada apaga a expressão “privilégio branco” do vernáculo presidencial. Sai a expressão, permanece a prática que a sustenta.

Segundo ato: na sexta-feira (03), o Secretário de Cultura Mario Frias encena uma espécie de Malhação versão Goebbels sobre heróis nacionais, numa estética europeia oitocentista cafona. Imagino que Luiz Gama, Zumbi dos Palmares ou Zeferina não ocuparão o panteão heroico oficial. Nunca faltaram narradores para contar as histórias dos senhores de escravos, disse certa feita o abolicionista Frederick Douglass.

Terceiro ato: Demétrio Magnoli nos alertou neste jornal no último dia 4 sobre o “avanço da doutrina racialista” e sobre os “ressentimentos [com o qual cotas] nutrem o racismo”. Lamenta que negros veem a política “como profissão: meio de ganhar a vida e produzir patrimônio” e incluí-los na história política significaria “alçar ‘negros’ a empregos bem remunerados”.

Para efeitos de debate, o problema não é ser contra cotas raciais nas universidades ou na política (esta Folha ainda se opõe às primeiras). Vejo problemas em negar políticas afirmativas, mas deixemos este debate para outro dia.

O problema, aqui, é se incomodar em ver negros em posições de poder e escrever isso com todas as letras em um jornal que preza pela democracia. Se com racismo não há democracia, a cor da democracia não é só o amarelo: são todas as cores, ou não será democracia.


Retrato de Luiz Gama no livro "Lições de Resistência", organizado pela professora Ligia Ferreira para as Edições Sesc. Divulgação/

O advogado e abolicionista Luiz Gama, na capa do nº 26 da revista Bahia Ilustrada, de janeiro de 1920.. Coleção Emanoel Araújo/


Apesar de serem três atos de distintas naturezas e localidades, a peça tem algo em comum: dificuldade de olhar na cara da História.

Raça não é importante porque nós, os ditos “racialistas” na expressão pejorativa, dizemos que é. Raça é constitutiva das nações do transatlântico negro, porque estas nações foram construídas sobre os ossos de pessoas negras escravizadas. Literalmente: basta ver o cemitério dos pretos novos no centro da capital do império.

No mundo de hoje, felizmente, não há monopólio sobre narrativas históricas. Concorde ou não com políticas de equidade racial, apagar o fator racial é ignorar parte da História que vai além dos heróis oficiais.

O texto de Magnoli é errado em muitos sentidos. Destaco dois. Primeiro, é ofensivo. Não sei se perdi algo no argumento, mas é errado negros “alçarem” a postos de poder? Se brancos, desde que puseram os pés nesta terra, fizeram da política sua carreira e do Estado seu patrimônio, e se a maioria do Congresso Nacional é composto estatisticamente de brancos milionários, por que incomoda tanto negros ascenderem ao poder?

Segundo, e principal, o texto ignora bibliotecas inteiras de estudos sérios. Prefere esconder-se no lugar de fala de um certo racialismo ressentido e, portanto, cancelar o bom debate sobre o tema. O que não deixa de ser, ao menos, engraçado, considerando que Magnoli escreveu há duas semanas que o “lado bom do cancelamento” é que, com ele, “adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares”, numa espécie de “separate but equal” informacional.

Já que o autor também falava de racismo nesse outro texto, pergunto-me quem seriam os adultos e quem seriam as crianças na metáfora proposta.

Sou contra o cancelamento, prefiro que argumentos –sejam a favor, sejam contra – sejam postos à mesa, porque assim podemos ver quão esquelético é um argumento quando tiramos dele a poeira do ressentimento. Este é o caso.

Se por ruído incômodo entendermos dados empíricos, aí não há cancelamento de ruído que apague a realidade.

Vejamo: políticas de cotas apenas sociais não foram capazes de promover a inserção de estudantes negros no Brasil tanto quanto as cotas raciais combinadas com sociais (ver estudo “Affirmative action in Brazilian universities” de dezembro de 2019 na Economics of Education Review).

Opor cotas sociais a raciais é ignorar que a lei federal combina as duas. Ressaltar a transitoriedade das cotas raciais é desconsiderar que, embora a política de cotas tenha prazo, este prazo presume estudos sérios sobre sua eficácia, o que o Estado brasileiro tem ignorado.

Ademais, o texto de Magnoli lamenta que se advogue perante o TSE por 30% de candidaturas negras em cada partido, esquecendo que na realidade candidatos negros nos principais partidos já somam 34,2% das candidaturas em 2018, mas apenas 23,9% daquelas com mais recursos.

Para quem quer ter um debate racional sobre o tema, há de se lembrar estudos sérios, ambos de 2015, como “A cor dos eleitos” de Campos e Machado, e o livro “Inclusion Without Representation” de Htun, publicado por Cambridge, que trata de reservas por gênero e raça na América Latina. Não é uma jabuticaba brasileira da cabeça dos ministros racialistas do TSE, como faz crer o texto.

O autor, ademais, compara setor privado a setor público. Ignora a parcela expressiva de negros no serviço público por concurso, que conta com menos vieses raciais na contratação do que o setor privado. Vieses esses provados estatisticamente no estudo “Assortative Matching or Exclusionary Hiring", publicado na National Bureau of Economic Research em 2018) sobre empresas brasileiras.

Já que é 7 de Setembro, lembro que, na descolonização, a retórica da escravidão era comum, como nos ensina João José Reis no belo texto “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”, sobre a resistência negra no Brasil oitocentista. À época era comum escutar que o Brasil era “escravo” de Portugal, e que “a independência nos ‘libertaria’ dos ‘grilhões’ portugueses”. Alguns escravizados escutaram esta retórica e presumiram que se falava de sua própria liberdade da escravidão. Muitos pagaram com a vida por isso.

Até hoje negros pagam caro por presumir-se livres.

Negro, o violoncelista Luiz Carlos Justino, preso na última quarta-feira por ter sido confundido com um assaltante, somente foi liberado no domingo, apesar de haver provas de que estava tocando no momento e hora do crime ao qual é acusado.

Não deixemos que o estrondoso ruído incômodo da branquitude ressentida ofusque o som do violoncelo dos 20 músicos que tocaram no sábado por uma hora na frente do presídio onde estava Justino.

Que este seja o ato final desta peça chamada Brasil, o ato de liberdade.

Fonte:https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/thiago-amparo/2020/09/os-violoncelos-que-o-racismo-quer-silenciar.shtml?__twitter_impression=true

domingo, 26 de julho de 2020

Pauta identitária

A militância dos movimentos identitários precisa entender que as políticas governamentais abarca todas as pautas de interesse da sociedade. Portanto, uma causa não pode sobrepor o conjunto de ações da agenda estatal. O campo progressista deve voltar suas energias para barrar essa agenda neoliberal e criar mecanismos para capitalizar o voto dos trabalhadores(as) que são explorados, e vem perdendo seus direitos para fortalecer o "deus mercado". O momento é de unidade e luta no combate dessa campanha difamatória e moralista com as demandas de políticas populares. Chega de vaidade ideológica  

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Piero Leirner: militares acabarão por criar ‘anomia’ da qual tanto falam

Para antropólogo, militares buscam espécie de "conversão cultural" de corações e mentes do povo brasileiro - por Pedro Marin | Revista Opera


Quando o antropólogo Piero Leirner, sob a insistência de sua orientadora, Maria Lúcia Montes, decidiu estudar o Exército, o Brasil vivia seu primeiro governo eleito por voto direto em 21 anos. A ideia de Leirner era fazer um estudo de campo em pelotões de fronteira na Amazônia, tema comum do discurso público dos militares nos idos dos anos 90. Acabou parando na Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) no começo de 1992, onde, diz ele, foi “tratado como uma espécie de orientando ou estagiário”, posto para ler textos e fazer fichamentos, enquanto se preparava para estudar o que realmente queria. Acabou ficando lá por três anos, sem conseguir o tão desejado acesso aos pelotões de fronteira. “Um dia pensei ‘caramba, eu estou há anos aqui, indo toda hora para a Escola de Comando, e isso não é campo?’ Notei que eu tinha feito um campo; que muitas coisas sobre esse campo eram regidas pelas ideias de hierarquia militar”, diz. Transformou a experiência em um trabalho de mestrado, segundo estudo antropológico feito no Brasil sobre o tema, defendido em 1995 e publicado em 1997 pela FGV: “Meia volta volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar”.

23 anos depois, num momento em que se diz cansado do Exército, o professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) volta mais uma vez os olhos aos militares, dessa vez em um cenário em que retornam ao centro do poder político, no trabalho “O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica”. Em entrevista à Revista Opera, Piero Leirner explica sua pesquisa e a forma como vê a ascensão militar.

Revista Opera: Peço que você fale dessa sua nova tese, do porquê decidiu escrevê-la e porque escolheu essa abordagem, da Guerra Híbrida.

Piero Leirner: É uma tese que fiz para o cargo de professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que é onde dou aula, onde estou há 22 anos. Depois do doutorado eu tinha trabalhado um monte de coisas, mas o tema do Exército tinha me enchido o saco. Tinha me afastado dessa conversa toda. 

Em 2010 eu fui para a Amazônia, fui para a área dos pelotões de fronteira, e voltei em 2013 – morei lá durante um semestre, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Mas eu estava mais interessado em etnologia indígena do que nos militares; queria estudar os índios que estavam servindo lá, no Exército, mas de novo foi muito difícil, simplesmente o comandante “sumiu”. Então decidi partir para outra, disse que não queria nunca mais saber desse assunto. Fui estudar parentesco e hierarquia entre os índios Tukano da região do Alto Rio Negro.

Mas em 2016, quando começa a história do impeachment e todas aquelas agitações, a Maria Lúcia começou a demandar que eu passasse a fazer uma leitura sobre o que estava acontecendo com os militares. E nós entramos em um grupo de discussão por internet, no blog do Romulus – que tinha acabado de conhecer quando ele ainda era comentarista do GGN –, e fui puxado de novo para a discussão sobre os militares. E de fato comecei a suspeitar que eles estavam mexendo os pauzinhos de uma maneira muito estranha – porque você deve se lembrar bem, vocês na Opera provavelmente foram os primeiros a detectar isso, ninguém mais falava que eles iriam agir como atores primários nesse processo. O que o general [Eduardo] Villas Bôas transmitia o tempo inteiro é que eles se mantinham absolutamente neutros e distantes de todo o processo político. Foi aí que eu comecei a olhar um pouco a essa literatura sobre Guerra Híbrida, mais como uma curiosidade – mas nessa época começou a cair no meu colo textos em que os próprios militares descreviam o que eles consideravam ser uma Guerra Híbrida. Tinha alguma noção do que eles falavam pois por volta de 2008 acabei estudando, em um pós-doutorado, justamente manuais de operações psicológicas, contrapropaganda, etc. Isso porque havia nos EUA um uso institucional de antropólogos nas Forças Armadas, no Iraque e Afeganistão. E eu comecei a perceber, nesse processo, que os textos que eles escreviam aqui eram instrumentos de produção de desinformação, típicos de uma Guerra Híbrida: ou seja, eles estavam produzindo uma Guerra Híbrida interna.

Então, sobre a Guerra Híbrida, vejo muito mais como conceito nativo do que como uma realidade concreta e autoexplicativa, entende? Mas o conceito nativo começa a ser tão usado que passa a fazer sentido por ele próprio, quando os atores começam a acreditar demais naquilo que eles escrevem. Foi a partir disso que eu resolvi reunir as coisas que estava pensando de 2016 para cá e, em junho de 2019, comecei a escrever essa tese; terminei ela em setembro e defendi em dezembro.

Revista Opera: Na sua tese você cita algo que é um pouco desconhecido, no geral; essa aproximação que os militares têm mantido, pelo menos desde a redemocratização, com intelectuais, jornalistas, empresários, etc. Como você vê esse tipo de aproximação?

Piero Leirner: Logo depois do Plano Collor, eles estavam extremamente decepcionados com os rumos que o Collor tinha tomado, porque depositavam uma fé muito grande nele. Isso me era falado o tempo inteiro nessa época – e eles foram sucateados, era impressionante como às vezes eu pegava carona em viatura que servia coronel ou até general, e a porta da viatura não tinha tranca, o soldado ia segurando com o braço para fora. Estavam realmente muito preocupados e desconfiados com os rumos que a democracia estava tomando, o que casava um pouco com aquelas teorias sobre as ONGs e o interesse internacional na Amazônia, que estava começando a virar um protoplasma ideológico e algo doutrinário entre eles. Por que? Porque nesse momento, com o fim da Guerra Fria, falavam claramente que não ganharam nada no processo de alinhamento com os Estados Unidos, que na verdade saíram prejudicados, ao contrário do que aconteceu com a Europa depois da Segunda Guerra. Então pensavam que era necessário procurar um alinhamento nosso, próprio, autóctone – é daí que veio toda essa mitologia da Amazônia associada a Guararapes, ao nascimento da nacionalidade, etc. “Invenção do Exército Brasileiro” é um livro interessante de Celso Castro, no qual ele mostra como eles criam, a partir de coisas mais ou menos dispersas, essa história de Guararapes e sua associação à Amazônia.

Bom, nesse ínterim eles identificaram que não havia um projeto nacional; diziam “somos uma Força Armada procurando a nossa raiz e o nosso norte, mas a gente não tem na sociedade o mesmo tipo de movimentação. Então nós é que temos que fazer isso”. E o que fazem? Tiram da cartola, de novo, a ideia de que eles são a ossatura da nacionalidade, que vão conduzir o processo de gestão e formação da Nação. É nesse momento que eles começam a trazer, para dentro da Escola de Comando, um monte de gente; mas uma coisa meio sem critério, que ia de José Genoíno a Olavo de Carvalho. Então o que eu acho que eles estavam fazendo nessa época? Sondando as teorias que se encaixavam ali, produzindo a cacofonia que nós estamos vendo hoje, uma coisa absolutamente maluca. Juntar a ideia de soberania na Amazônia com a entrega da EMBRAER, sei lá eu. Parece algo completamente esquizofrênico – e é mesmo [risos]. Essa é a minha opinião: eles passaram por um processo de dissonância cognitiva, é o que acho que aconteceu durante anos ali dentro.

A partir disso eles começaram a armar essa rede, nos anos 90. Mas ela fica mais sólida quando eles acionam uma reação ao “comunismo” que estava voltando pro Brasil. Foi isso que galvanizou, a partir dos anos Lula, mas que aumenta para valer a partir de 2010, com a Dilma, que é quando eles procuram fazer costuras mais efetivas – sobretudo com empresários, por meios desses institutos, “Instituto Liberal”, “Mises”, etc., – mas também, sobretudo, botando lenha na ESG (Escola Superior de Guerra), chamando gente do próprio Estado lá para dentro. Você olha as listas a partir de 2010 dos frequentadores dos cursos da ESG e vê um monte de procurador e juiz entrando lá. O que é isso? De novo a formação daqueles complexos tipo IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e Instituto Brasileiro de Ação Democrática) no pré-64. Igualzinho; a mesma coisa.

Revista Opera: Na tese você diz que se por um lado eles fazem esse movimento para dentro, isto é, esse processo de dissonância, há também um movimento de “domesticação do mundo de fora a partir do mundo militar”. 

Piero Leirner: Sim, é um pouco do que vi como experiência etnográfica na Amazônia. Essa noção, de que eles têm de carregar o País nas costas, no fundo ela é acompanhada pela noção de que eles são uma espécie de administradores de uma fazenda que têm como tarefa domesticar animais selvagens. O que significa isso? De certa maneira, trazer todo o campo de diferenças sociais para uma conversão, uma espécie de digestão e projeção, a respeito do que eles entendem como sendo parte da realidade. Que é uma realidade muito monótona (no sentido “narcísico” do termo), não é? Então não acho que seja um processo de tutela – tutela se faz com uma criança, na tutela você pressupõe que a criança estará sempre na mesma condição – o que eles querem é a conversão da população a uma outra forma, acho que há um projeto “cultural” de transformação da realidade, de corações e mentes alteradas. Por isso acho que é um projeto que embute, em seu interior, muito dessas operações psicológicas. Não é suficiente dizer que é só um interesse por cargos que faz eles irem nessa direção nos últimos anos.

Revista Opera: Você mencionou essa relação que os militares mantêm com setores do Judiciário. Cita na tese as relações que mantinham com gente do TRF-1, TRF-2 e TRF-4 – o que chama atenção. Como você vê agora, com esses militares do governo, essas relações? Como você vê isso tudo, levando em consideração a recente saída do Moro do governo?

Piero Leirner: A primeira coisa a se fazer é procurar escapar de uma visão trivial a respeito da posição deles em relação ao governo e a política. No processo que podemos recuar desde 2016 para cá, tudo é produzido em um movimento de pinça; sempre com estruturas mais ou menos duais. Se fôssemos resumir, eu diria o seguinte: eles usam um para-raios, tocam fogo em uma situação, e eles mesmos são os bombeiros que vão apagar o fogo que eles criaram. Em certo sentido o Bolsonaro representa esse papel. Uma coisa é falar em Bolsonaro, outra em governo – eu diria que ambos são governo, mas o governo em si é algo meio dualista.

O que eu vejo, por exemplo, em situações como a saída do Santos Cruz, que virou esse personagem imaculado que a imprensa toda mima. Creio que a saída do Santos Cruz, que pareceu ser uma saída por conta de conflitos com o governo, é uma válvula de escape do próprio governo – não que ele não tenha saído do governo, mas o governo, lato sensu, botou ele em uma posição de oposição controlada, compreende? Porque agora ele assume uma voz na oposição, de sensatez – sei lá como poderíamos chamar isso – mas não deixa de ser operado pelos mesmos agentes que era antes; os militares. É a válvula de escape dos militares operando como se fosse oposição, mas não é. Eles controlam ambas as posições. 

E eu acho que, em certa medida, o Moro entra nessa chave. Eles sempre vão estar batendo com um porrete e amansando com a outra mão. Interessa para eles uma posição que é de confronto, sempre, entre o Bolsonaro e uma outra posição, e eles aparecem como mediadores mais ou menos equidistantes disso. Não sei ainda qual vai ser o desfecho da questão da Polícia Federal, mas me parece que será exatamente essa posição: não vão nem pegar o Moro, nem o Bolsonaro, e vão pegar os dois ao mesmo tempo. Esse é meu palpite. Quer dizer, deve se repetir a mesma forma de Santos Cruz; Moro passa para uma “oposição” – bem entre aspas. [A entrevista foi realizada no dia 13 de maio, portanto antes de ser revelado o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro].

Então eu acho que, primeiro, todas essas manifestações do Bolsonaro são provocadas, não são acidentais, estão dentro de um esquema que foi pensado – não precisa fazer muito plano para elaborar, basta bater nas costas do sujeito e dizer “vai lá, Jair, vai na manifestação e faça o que você faria normalmente”. A provocação para criar um dualismo com o Judiciário é evidente, mas ao mesmo tempo o Judiciário é refém deles faz tempo. Quem está lá? O general Ajax [Porto Pinheiro]. Olhe o vídeo do general Ajax a quinze dias das eleições. Todas as teses que estão no “Carta no Coturno” estão lá, todas, pode conferir. De que os comunistas estão prestes a transformar o Brasil na Venezuela, que o PT quer mexer dentro da sua casa, com seus valores, toda aquela paranoia. Quinze dias depois ele estava no STF, dizendo o que pode e o que não pode.

Então eu acho que o STF entrou agora nessa chave que eles estão produzindo: o STF estica a corda de um lado, o Bolsonaro estica do outro, e os militares vão aparecer como solução de ordem para algo que parece cada vez mais caótico. Porque vai chegar um ponto em que a tese que eles estão pondo, de que o Brasil está para entrar em uma situação de anomia, vai acontecer. Mas é uma anomia que foi provocada por eles mesmos. E aí eles vêm e se oferecem, “somos a solução para isso”. Você junta isso com um cenário de pandemia.

Veja bem se essa “sinergia” que eles falavam ter com o TRF-4, se acabou. Outro dia mesmo eu vi, Heleno passou a tarde tomando chá com duas desembargadoras – isso estava na agenda dele. Continuam distribuindo medalhas a torto e a direito para procuradores e juízes. Então como é essa história? Não brigou de fato com o Judiciário. Pelo contrário. Estão causando a cismogênese dentro dele, é isso que está acontecendo.

Revista Opera: Na tese você identifica um ponto-chave, entre 2013-2014, e diz perceber uma certa euforia dentro do Exército, com oficiais perdendo a calma sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a partir de 2011. Como você vê essa aparente virada, mobilizando o velho tema do anticomunismo e a Comissão Nacional da Verdade?

Piero Leirner: A virada foi um pouco antes. O que aconteceu na verdade foi que, no último ano do governo Lula, em 2010, a Casa Civil – cuja ministra era a Dilma – começou a esboçar a Comissão da Verdade. E o que acontece nessa época? Começa a ter um zum-zum-zum de militares, e temos também o primeiro militar da ativa que sai para falar a questão da Comissão da Verdade. Quem é esse camarada aí? É o general Maynard Santa Rosa, que estava no governo até pouco. O general Maynard foi exonerado da função em que estava em 2010, foi jogado para escanteio – já houve aí uma pequena reação, entende? Eles ficaram incomodados com a Dilma. Quando ela se torna o projeto do Lula para a continuação do Partido dos Trabalhadores no governo, esses caras ficam de cabelo em pé. Essa história já tinha se espalhado.

E aí ela se elege em 2010 e, no final de 2011, oficializa a CNV. Já começa a tensão entre a CNV e os militares porque, entre outras coisas, um monte de oficiais da ativa, especialmente do Exército, eram parentes de militares que tiveram participação na ditadura. Se não era algo que atingia a pessoa física deles, no mínimo atingia a “pessoa familiar”, vamos dizer. E dentro desse conceito de família militar que eles têm, que é algo complicadíssimo.

Seja como for, isso vai pegando, e quem vai se manifestando são os de sempre – sempre ao redor do Clube Militar. E aí há de considerar outro processo, que são aqueles grupos que tinham ficado de escanteio logo na abertura, que tinham passado por um processo de “limpeza” produzido pelo Geisel, que pegou todo o porão da máquina de repressão e informação e jogou para fora da hierarquia – nenhum deles subiu para general, Brilhante Ustra, etc. Muitas dessas pessoas ficaram nesses grupelhos, associações “civis” – TERNUMA, Inconfidência, Guararapes. Cada vez que acontecia de um militar entrar em atrito com a política, ele corria para esses grupos. Quando houve aquela briga do general Heleno com o Lula em 2008, por causa da Raposa Serra do Sol – que é uma briga prototípica, digamos, quase um arquétipo – Heleno correu para o TERNUMA. E esses grupos todos orbitando o Clube Militar, desde sempre, que passa a ser uma espécie de válvula de escape, um lugar onde se começa a expressar uma contrariedade em relação à Comissão Nacional da Verdade, e eles lançam um manifesto, acho que no início de 2012.

A Dilma fala para o Celso Amorim, ministro da Defesa na época, que tire esse manifesto do Clube, o Amorim ordena ao general Enzo Martins Peri fazer isso, e o general passa um pito no Clube Militar, que é uma associação da reserva, entende? Eles refazem o manifesto, agora com a indignação de terem sido “calados” por uma ordem “autoritária” – percebe como começa a inversão do jogo? – e hospedam um novo manifesto na página da internet do Ustra, “A Verdade Sufocada”. Esse movimento do porão da ditadura sempre existiu, mas era marginal – Ustra, coisas que o Olavo de Carvalho escrevia. Eles até podiam ter uma entrada dentro dos militares, mas não era algo assumido. São 800 coronéis que assinaram esse manifesto, não sei quantos generais, da reserva, da ativa, de tudo que é lugar. Aí você percebe que, bom, a guerra estava declarada.

Mas não foi só isso. Foi uma série de preocupações que eles estavam nutrindo. Por que? Somava-se isso a coisa das ONGs, da Amazônia, da “dissolução da família, dos valores”, por coisa de gays, etc. Aí vão começando a fabricar uma meleca, é assim que começam a ativar uma teoria interna, que parece ser algo que compram, mas na verdade fazem um rearranjo dela para os próprios propósitos, que é essa ideia da Guerra Híbrida. De que na verdade o centro emissor da Guerra Híbrida no Brasil eram o PT e o Governo Federal. Não é doido um negócio desses? Uma Guerra Híbrida produzida pelo núcleo do poder de um Estado? Mas é o que eles diziam: que o objetivo final do PT era dividir o País e aniquilar as Forças Armadas. E é isso o que eles pensam até hoje.

Revista Opera: Isso tem muitas semelhanças com certas leituras que eles faziam na década de 90 em relação a 1964. E é algo na verdade até anterior, porque na década de 50 eles falavam disso, usavam um termo engraçado pra quem seria pró-Getúlio, que era “Gregórios”, em referência ao Gregório Fortunato, chefe da guarda do Getúlio. Em 1964, há uma continuação, esses “Gregórios” agora chegam ao poder com João Goulart, e eles querem “comunizar o Brasil”, etc. Você vê essas semelhanças?

Piero Leirner: Sempre fazendo microatualizações, mas a coisa vem sempre em uma linha de continuidade. Em 1935, por exemplo, a Intentona Comunista vira uma espécie de “mito de origem” na cabeça deles. Em 1961 eles começam a falar de Guerra Revolucionária, e conseguem plasmar o anticomunismo nessa história. Aí vem 1964, depois a coisa esfria – mas a Amazônia está ali, entendeu? Ressuscitam a questão, mas invertendo o sinal: dizendo que o Exército teria que agir como uma resistência colonial contra os interesses das grandes potências. E o que fazem a partir de 2010? Começam a inventar a ideia de que o comunismo internacional estaria plasmado com o globalismo, que é um pouco essa ideia do Olavo de Carvalho. Então a resistência teria que ser contra esse comunismo que estaria embutido, “invisível”, eles gostam de dizer “homiziado” – têm uns termos assim – no interior da ideologia globalista, mas com os propósitos de fazer um “comunismo 2.0” vingar aqui no Brasil.

Então eles vêem a Dilma, o aspecto direto, e o aspecto indireto na ideia de que ela estaria disposta a vender o Brasil para a China. O que eles tiram do chapéu, para dar conta dessa realidade? A história da Guerra Híbrida. Pegam os paladinos das Forças Especiais, como o general Álvaro Pinheiro, que foi na Comissão da Verdade, porque participou no Araguaia, e que é alguém que estava introduzindo essa ideia sobre a Guerra Híbrida. Como eles lêem a Guerra Híbrida? Pensam como algo que gera a dissolução entre as fronteiras da guerra e da política, e que dilui militares e civis, galvanizando terrorismo, organizações criminosas e interesses anti-nacionais globalistas. Vira tudo uma coisa só, e eles começam a dizer que há uma suposta associação entre PT, FARC, Hezbollah e PCC, como um “grande projeto” de transformação do Brasil em uma espécie de Colômbia sob domínio chinês, onde as oligarquias instituiriam um comunismo chinês 2.0. Então tem essa história toda que começa a ganhar corpo. Um comunismo difuso, ressuscitando várias teorias, e agora pondo esse verniz novo da Guerra Híbrida, como se adicionassem um personagem numa historinha, para dar consistência a ela. Quando cruza a ideia de que o PT seria uma organização criminosa, é tudo que eles precisavam, porque casa com a teoria que eles estavam lendo a partir de Washington.

Revista Opera: Sobre esse cenário caótico, de vários acontecimentos que por vezes sequer conseguimos recompor, uma coisa que me chamou atenção na sua tese é que você menciona como o general Heleno diz que ao longo da carreira ele consolidou uma “longa experiência” trabalhando com a imprensa, foi até consultor de um grupo, parece. Isso é interessante porque aquela briga com o Congresso, que começou pouco antes da chegada da pandemia, foi justamente por causa de um “vazamento” de uma conversa em que ele dizia que o Congresso estava chantageando o governo. A senha para esse conflito entre governo e Congresso, que agora chega até o STF, foi dada por ele.

Piero Leirner: Claro. E ele soube o momento certo de recuar e parar de aparecer. Antes o que ele estava fazendo? Assumiu o protagonismo, estava sempre à direita do Bolsonaro, sentado, dando a palavra final. Quando a corda começou a esticar para valer, ele recuou. Botam o Braga Netto em uma chamada posição de “presidente operacional”, e o Bolsonaro começa a elevar o grau de tensão dos raios que caem na própria cabeça. É impressionante o jogo do Heleno. Há uma entrevista para estudantes de jornalismo em que ele diz que “tomou muito gosto por esse negócio de comunicação”.

Agora, a bomba mesmo eu vi recentemente, algo que eu nunca tinha me dado conta. O discurso de saída do general Rego Barros para assumir como porta-voz da Presidência da República, em fevereiro de 2019. A frase é simplesmente inacreditável: “Coube ao Exército mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portal responsivo, e-blog, etc., e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil. Exigiu sangue frio e interlocução sem rosto, típica da internet […]”. Literalmente dizendo que o Exército foi para o submundo do Whatsapp. Esse negócio do “gabinete do ódio” é uma lorota. Botam o Bolsonaro e os filhos como os bois-de-piranha. Para mim ficou claríssimo que esse problema todo, que está no STF agora por conta das fake news do Whatsapp, em que o Bolsonaro aparece querendo proteger os filhos, no fundo interessa a quem? Interessa ao Exército. Porque os camufla de terem feito uma operação nessa coisa do Whatsapp. Está claro no discurso do Rego Barros, é impressionante.

Revista Opera: A despeito das diferenças pessoais que cada militar tem em relação a outro militar, eles têm uma noção de espírito de corpo que é bastante diferente do que vemos em partidos, por exemplo. Me pergunto se para eles é necessário realmente que conquistem a presidência, porque não precisam disso em última instância para operacionalizar a política. Como você vê as demissões de militares, que muitos argumentam ser uma derrota deles? E precisamos de fato ter o Mourão como presidente para ter um “governo militar”?
Piero Leirner: Primeiro as demissões: como disse sobre Santos Cruz, eles têm um mecanismo de válvula de escape, que já está um pouco pré-programado; com ou sem os demitidos terem ciência disso. Eu não sei por exemplo se o Santos Cruz é esse gênio todo, como dizem, para saber que ele estava indo em direção a uma fogueira que já estava armada. Aos poucos eles vão enxotando alguns militares e colocando outros em posições-chave – como se estivessem na oposição, para acentuar a ideia de que têm um aspecto técnico e neutro. Essas pessoas viram uma oposição controlada e potencial, para o futuro – sabe Deus se em 2022 ou o quê. Esse é o primeiro ponto: Moro e Santos Cruz são quase duas faces da mesma moeda.

E aí lucram nessa operação, jogando no colo do Bolsonaro e na família dele a ideia de que são completamente irascíveis, de que a loucura parte deles, que há um problema de personalidade, de que é tudo reflexo de uma chamada “ala ideológica” que é incontrolável e irracional, enquanto, por contraste, os militares são iluminados como salvadores da Pátria.

O que engata na segunda pergunta: agora estão em uma posição em que não aparecem como os emissores do caos, mas como a solução de ordem – como se eles não estivessem lá. E para isso eles têm de ocupar todas as posições do cenário.

Qual é o plano, então? Se eu fosse pensar em uma metáfora, que é aquela com a qual eu finalizo a tese, é que se isso fosse um sistema de computação, eles farão uma espécie de reinicialização, em que o computador é reiniciado em modo de segurança, são os administradores, que dizem o que pode e o que não pode operar no sistema. Não é todo programa que está instalado que vai rodar, entende? Primeiro a tomada do aparelho do Estado – aparelhar o Estado o máximo possível, isso eles já estão fazendo. Segundo, o processo – que é mais complicado – de “conversão ideológica” das pessoas. Algo mais complexo, mas considerando que eles tentam se colocar como elementos de mediação, de meio-termo, de bom senso, sensatos, nós vamos ver crescentemente eles aparecendo como “meio” entre dois polos radicais. Não é à toa que há quem esteja nesse esforço desesperado em dizer que Bolsonaro e Lula são a mesma coisa, para sugerir que o Brasil tem de “sair dos extremos” e eles se colocarem como força de coesão ideológica.

Então eu acho que é isso: primeiro um processo de aparelhamento de fato e depois vão para uma solução cultural de estilo “gramsciana” (falo ironicamente). Acho então que, a princípio, era melhor para eles manter o Bolsonaro até o fim do mandato, porque esse edifício continua todo de pé. Agora, é óbvio que em um campo cheio de incertezas, como a gente está, talvez não dê para segurar ele. As pessoas me perguntam: “Ele vai cair? Vai ter golpe?” – essa é a pergunta mais absurda, se vai ter golpe. Eu sempre falo: “Amigo, você acha que aconteceu o que? Recua aí na tua cabeça e se pergunte se teve!”. Então tendo a achar, sim, que o melhor seria manter a solução como está – mas concordo com você, meio que tanto faz. O ponto para eles é controlar o processo todo, como administradores do sistema; quem entra e quem sai. Aí, de fato, a posição de presidente é a que menos conta.

Revista Opera: Um outro ponto abordado na tese é a posição que o general Etchegoyen manteve dentro do governo Temer. Porque quando o Temer entra, ele reergue o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o Etchegoyen fica responsável por isso. No meio de uma crise gerada por aquela gravação do Joesley, algo que no mínimo seria um descuido do GSI, é justamente Etchegoyen quem sai como homem forte e, até certo ponto, mantém o governo em pé.

Piero Leirner: Sim. Isso em 2017, até que eles arrematam isso em 2018 com a intervenção no Rio. Aí não sobra nada em pé, porque neutralizam completamente o governo Temer, e toda possibilidade do PSDB, por exemplo, conduzir uma transição para uma eleição em que eles estariam capitalizados. Porque durante a intervenção não tem mais Congresso para fazer votação de Reforma da Previdência, e esse era o grande ativo. Essa enorme psy-op (operação psicológica) no Rio de Janeiro serve para eles irem testando a ideia de intervenção militar como solução. Isso já está colocado no inconsciente das pessoas. E não é à toa que o Braga Netto, que era interventor, esteja hoje na posição que está. Interessantíssimo também o discurso de despedida do cargo do Villas Bôas, algo que não tinha me dado conta, onde ele diz que o Brasil tem três heróis nacionais: Bolsonaro, que tinha permitido nos livrarmos do comunismo, o Moro, que estava limpando a corrupção, e o Braga Netto – que ele deixa suspenso no ar. Ninguém deu bola para isso, quando ele falou isso o Braga Netto não era ainda o chamado “presidente operacional” do Brasil [risos]. Isso sugere que foi parte da armação, realmente começaram a construir isso, viram a janela de oportunidade para valer com o Temer assumindo.

Revista Opera: Como você avalia a postura dos últimos governos petistas em relação aos militares? Porque vendo o processo histórico a partir de 2016, fica evidente que o PT manteve, durante todo o tempo, uma postura quase que de anestesia em relação aos militares, como se eles não pudessem mais aparecer como atores na política. E mesmo quando apareciam – por exemplo com os tuítes do Villas Bôas, ou com a movimentação sobre a Comissão da Verdade – parece que ninguém levava isso a sério, o governo não levou a sério.

Piero Leirner: Você usou a palavra certa: é anestesia. Se blindaram para olhar o mundo, não viram um monte de coisas. Mas com os militares é talvez a postura mais absurda de todas; porque eles acharam, de fato, que poderiam prescindir deles. E talvez o que tenha acontecido tenha sido um processo narcísico tão absurdo, por conta de um governo que estava dando certo, que eles não perceberam que o tapete estava sendo puxado debaixo. Uma coisa é dizer: “Mas o Lula ouvia o conselho dos generais”. Mas ele tinha um serviço de informações decente? Ele tinha gente que falava o que estava se passando de A a Z? Tinha preocupação em ver o que estava sendo ensinado dentro das academias militares? Tinha preocupação em participar dos eventos militares, que é algo que para eles é dar doce para criança? Os militares diziam isso, em 2013, 2014: falavam de eventos em que os cadetes ficaram horas esperando debaixo do sol esperando alguém do governo chegar… Isso ia criando um ódio dentro deles. E eles começaram a sabotar. E então veio a Lava-Jato, o pessoal abrindo a porteira para a espionagem norte-americana. Furaram o que já era uma peneira, não é? E isso culminou com a Dilma querendo peitar eles; extinguindo o GSI, etc. E aí veio aquele grampo – que eu acho que era ambiental, não era no telefone do Lula, porque se ouve tudo o que estava se passando no gabinete antes do Lula atender a ligação – um absurdo, a imprensa obliterou isso, e não vi sequer o PT fazendo o escândalo que merecia. É a mesma história do Joesley; o GSI permitiu esse furo, que acabou com o governo do Temer. Então eu não sei, creio que foi de uma irresponsabilidade completa. Não leram Maquiavel: é preciso ter boas leis e boas armas. Fizeram leis terríveis e não deram bola nenhuma para as armas. Sobrou o que sobrou. Se eu acho que tem alguma coisa nesse sentido, de que é necessário a eles tirar os esqueletos do armário e fazer a autocrítica, é essa: “não prestamos atenção nos setores essenciais”. Vai além, mas aí é só ir tirando uma carta de cima da outra. Deixaram uma juristocracia condescendente tomar conta do partido, se estabelecendo como hegemônica, e ao mesmo tempo não prestaram atenção na questão mais essencial que poderia segurar o governo, como segurou o governo Temer até o fim. Por que Temer não caiu? Porque eles não deixaram. Só por isso. E foi assim que se instalaram no Planalto.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Duas teses sobre a transição socialista



Tese I: Socialismo não é modo de produção. É comum em certa esquerda idealista afirmar que as experiências do século XX não foram socialistas por manterem “aspectos capitalistas” ou não estar de acordo com o cânone de determinado “texto sagrado” (o texto é mais importante que a realidade). É importante esclarecer: a teoria clássica da transição socialista, sintetizada no livro O Estado e a Revolução, de Lênin, defende que um bloco das classes oprimidas liderado pelo proletariado deve tomar o poder de estado e a partir daí começar o processo de transformação revolucionária da sociedade. O sentido dessa transformação revolucionária é: socialização da riqueza, do poder e da cultura. Na economia a propriedade pública dos meios de produção, a planificação econômica e a riqueza produzida é para atender as necessidades plenas de toda sociedade; na política a democracia participativa, de base e a autogestão em várias esferas são ampliadas ao máximo, e a cultura é socializada de uma forma onde saber científico, técnico e filosófico deixa de ser privilégio de uma pequena classe de exploradores e a produção cultural e ideológica é pautada na solidariedade, internacionalismo, senso coletivo e combate às formas de opressão.

Logo, se socialismo não é modo de produção, mas uma fase de transição entre a sociedade antiga (capitalista) e a nova (comunista), manter relações da antiga sociedade não é só “aceitável”, como normal. Os ritmos de transformação, os avanços e recusou, são ditados por uma síntese dialética entre condições objetivas e subjetivas; ou seja, as próprias condições socioeconômicas onde começa a experiência de transição, a correlação de forças e a dinâmica da luta de classes interna e externa (na geopolítica) e toda tradição ídeocultural do povo. Logo, constatar que em certas experiências, como a URSS, mantiveram relações sociais típicas do capitalismo, como o fordismo nos processos de trabalho, e depois disso afirmar que a URSS nunca foi socialista, mas sim “capitalismo de estado” ou qualquer outro conceito obtuso, é negar a perspectiva da totalidade e da processualidade do socialismo. É achar que a tomada do poder cria automaticamente a transformação de todas as relações sociais da sociedade capitalista e desconsiderar as condições objetivas - isso é algo da tradição anarquista e não marxista (como Lênin tão bem demonstrou nas usas obras, em especial, de novo, no O Estado e a Revolução).

Dando um exemplo concreto. A Rússia pós-revolução estava numa situação de miséria extrema (resultado do próprio subdesenvolvimento do país, da primeira guerra mundial e da guerra civil) e fome epidêmica. Nessa conjuntura concreta a direção revolucionária tomou como prioridade o desenvolvimento das forças produtivas ao máximo como forma de garantir a sobrevivência material (biológica) do povo e garantir a defesa militar contra agressões imperialistas. Nessa conjuntura, onde a prioridade absoluta era criar uma indústria de base e conseguir produzir comida, roupas, medicamentos, etc. para todos, afirmar que por não ter autogestão completa nas fábricas a URSS traiu o socialismo e tornou-se “capitalismo de estado” nos anos 30, como faz Alysson Leandro Mascaro e Marcio Bilharinho Naves (dois grandes juristas marxistas), é achar que é possível construir relações de produção comunistas ignorando a situação material imediata, e transformar tudo ao bel prazer da “vontade política”.

Tese II: a transição socialista é relacional. Se o socialismo não é um modo de produção, mas toda uma época histórica de duração variada na transformação da sociedade e na criação da sociedade comunista; deveria ser claro, mas infelizmente não é, que o ritmo e as formas de transformação dependente das formas que um país (ou bloco de países) está inserido no mercado mundial e no sistema geopolítico (imperialista). Lênin, de novo, nos ajudar a pensar a questão. O líder bolchevique afirmou que é possível o proletariado conquistar o poder político num país subdesenvolvido e começar a transição socialista, mas o sucesso dessa transição, ao mesmo tempo, depende dos ritmos do movimento revolucionário mundial. Parece uma antinomia, mas não é. A questão é simples. Um país atacado de todas as formas pelo imperialismo com bloqueios econômicos, sabotagens, terrorismo, pressões diplomáticas, guerra de desinformação, invasões militares (as pessoas esquecem que Cuba, Rússia, Vietnã, Angola e Coréia do Norte são experiências socialistas invadidas militarmente pela ação do imperialismo), etc. terá, é lógico, dificuldades de desenvolver plenamente a democracia operária de base e autogestionária. Não existe nenhuma experiência histórica que mostre o desenvolvimento da democracia numa situação de estado de guerra permanente (até os teóricos liberais sabiam disso). Logo, por exemplo, o enfrentamento geopolítico com o imperialismo vai condicionar de forma negativa o sistema político socialista (é claro, porém, que as decisões do grupo dirigente revolucionário podem ampliar esse “fechamento” necessário ou combatê-lo dentro do possível: na URSS decisões erradas ampliaram esse “fechamento” necessário, em Cuba ao contrário, mesmo em estado de guerra permanente a democracia operária conseguiu-se manter em bom termo).

Podemos dizer o mesmo da economia. Se um país socialista não tem capacidade de produzir todo alimento – por exemplo - que necessita ele precisará necessariamente importar. Para importar são necessários dólares. Para ter dólares a economia socialista terá que manter um setor de exportação que consiga esse capital e isso fará com que a economia socialista tenha que criar setores ou de mercado ou ainda atrelados à lógica de mercado e sujeitos às vicissitudes do mercado mundial. Como nenhum país é auto-suficiente em tudo (principalmente os pequenos como Cuba) e o mundo ainda é, infelizmente, capitalista e dominado pela hegemonia norte-americana, relações comerciais com o capital internacional são necessárias e importantes. Caso contrário o país fica isolado do mundo e sofrendo escassez de vários produtos (como aconteceu com Cuba e Coréia do Norte pós-derrubada da URSS e com a própria URSS durante os anos 20 e 30). Logo, é um truísmo dizer que a revolução tem que ser mundial. Todo mundo sabe disso. Essa afirmação não diz nada dos desafios que um país específico terá ao iniciar sua transição socialista.

À guisa de conclusão: se socialismo não é modo de produção, mas toda uma longa época histórica de transformações revolucionárias e se essas próprias transformações são relacionais, ou seja, dependem de condições concretas e objetivas que ditam limites e possibilidades, desconsiderar as experiências concretas de transição socialista comparando de forma mecânica os desafios histórico-concretos da realidade com trechos de livros de Marx e Engels (que não foram escritos levando em conta essa realidade histórico-concreta) é idealismo. Ficar horrorizado com recuos táticos nas experiências de transição socialista, como a NEP na Rússia e as reformas em curso em Cuba, e clamar pela pureza de um socialismo já perfeito aqui e agora também é idealismo. E como todas e todos sabem: idealismo é antagônico ao marxismo.


Fonte
http://makaveliteorizando.blogspot.com/2015/05/duas-teses-sobre-atransicao-socialista.html?m=1