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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Leonardo Boff: “Dentro do sistema capitalista, não há salvação”

“Esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer", diz o teólogo





Por Débora Fogliatto,

Do Sul 21

Um dos mais conhecidos teólogos do Brasil, Leonardo Boff é um nome atualmente aclamado em todo o mundo, mas que já foi muito marginalizado dentro da própria Igreja em que acredita. Nos anos 1980, o então frade foi condenado pela Igreja Católica pelas ideias da Teologia da Libertação, movimento que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo como manifesto contra as injustiças sociais e econômicas.

Aos 75 anos, Boff é um intelectual, escritor e professor premiado e respeitado no país, cuja opinião é ouvida por personalidades com o Papa Francisco e os presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nesta entrevista aoSul21, concedida durante sua vinda a Porto Alegre, Boff fala do momento atual da Igreja Católica, critica os religiosos que usam o evangelho para justificar ideias retrógradas ou tirar dinheiro dos fiéis, tece comentários sobre a situação no Oriente Médio, aborto, violência e sobre a crise ecológica e econômica mundial.

As duas estão profundamente interligadas: como explica Boff, o capitalismo está fundado na exploração dos povos e da natureza. “Esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta de acesso à água e alimentação”, afirma ele, que é um grande estudioso das questões ligadas ao meio ambiente.

Sul21 – Nos anos 1980, por causa dos ideais defendidos pela Teologia da Libertação, o senhor foi condenado a um ano de silêncio obsequioso e sofreu várias sanções, que acabaram sendo amenizadas diante da pressão social sobre a Igreja Católica, mas que o fizeram abandonar o hábito. O senhor acredita que atualmente a Igreja agiria da mesma forma?

Leonardo Boff – Não. O atual Papa diz coisas muito mais graves do que eu disse no meu livro “Igreja: carisma e poder”, que foi objeto de condenação. Se ele tivesse escrito isso, teria sido condenado. Eu disse coisas muito mais suaves, mas que afetavam a Igreja. Dizia que a Igreja não respeitava os direitos humanos, que é machista, tem um conceito de poder absolutista e absolutamente superado, sem limites.

Os tempos mudaram e a graças a Deus temos um Papa que pela primeira vez, depois de 500 anos, responde à reforma, responde a Lutero. Lutero lançou o que chamamos de Princípio Protestante, que é o princípio de liberdade. E esse Papa vive isso. E vive o cristianismo não como um feixe de verdade que você adere, mas como o encontro vivo com Jesus. Ele distingue entre a tradição de Jesus, aquele conjunto de ideais, tradições, e a religião cristã, que é igual a qualquer outra religião. Ele diz: “eu sou do movimento de Jesus”, e não da religião católica. Tais afirmações são escandalosas para cristãos tradicionais, mas são absolutamente corretas no sentido da Teologia, daquilo que nós sempre dizíamos e éramos perseguidos por isso.

E eu fico feliz que a Igreja não é mais uma instância que nos envergonhe, mas sim uma instância que pode ajudar a humanidade a fazer uma travessia difícil para outro tipo de sociedade que respeite os direitos da natureza, da Terra, preocupada com o futuro da vida. Eu mesmo tive contato com o Papa e o tema central dele é vida. Vida humana, da terra, da natureza. E nós temos que salvá-la, porque temos todos os instrumentos para destruí-la.

Sul21 – O senhor acredita que a Igreja Católica, sob orientação do papa Francisco, vai efetivamente renunciar a alguns temas tratados como tabu, como a união homossexual?

Leonardo Boff – Ainda não sabemos bem a opinião dele. Ele diz: “quem sou eu para julgar?”, no fundo diz para respeitar as pessoas. Ele vai deixar haver uma grande discussão na Igreja sobre a questão do divórcio e dos homossexuais, sobretudo a moral sexual cristã, que é extremamente rigorosa e restrita, em alguns casos é criminosa. Por exemplo, pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares onde metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a humanidade. Foi o que o papa Bento XVI disse várias vezes. Eu acho que o Francisco é mais que um Papa, é um projeto de mundo, projeto de Igreja, ele se dá conta de que a humanidade é uma, está sob risco e temos que nos unir nas diferenças para superar a crise.

Acho que a grandeza desse Papa não será ele definir as coisas, mas deixar que se discutam. E eu acho que ele vai respeitar as pessoas, porque a maioria não é homossexual, ou homoafetivo, por opção. As pessoas se descobrem homoafetivas. E ele vai dizer: “ande dentro de Deus, não se sinta excluído”. Vai dizer que (os homossexuais) são tão filhos de Deus quanto os outros. E daí respeitar. Talvez ele diga “não chame matrimônio, que é um conceito canônico”. Mas uma união responsável, que merece a benção de Deus, e que tenha uma proteção jurídica, que tenha seu lugar na Igreja, que possam frequentar os sacramentos. Esse seguramente vai ser o caminho dele.

Sul21 – E com essas posições do Papa Francisco, o senhor acha que Igreja Católica talvez consiga recuperar fiéis diante do avanço das igrejas evangélicas?

Leonardo Boff – Esse Papa não é proselitista e diz claramente que o evangelho deve atrair pela sua beleza, seu conteúdo humanitário. Ele não está interessado em aumentar o número de cristãos, em fazê-los voltar. Está interessado em que as pessoas, com a situação confessional que têm, se coloquem à disposição do serviço da humanidade, das coisas boas que a humanidade precisa.

É aquilo que nós chamamos de “ecumenismo de missão”. Estamos divididos, é um fato histórico, mas não é uma divisão dolorosa. Porque cada um tem seus antros, profetas e mestres. Mas como nós juntos nos reconhecemos nas diferenças e como juntos vamos apoiar os sem terras, os sem tetos, os marginalizados, as prostitutas. Esse serviço nós podemos fazer juntos.

Sul21 – Muitas pessoas usam a religião para justificar opiniões conservadoras, machistas e homofóbicas. Qual a sua opinião sobre essas posições?

Leonardo Boff – Há o exemplo concreto do aborto nas últimas eleições. Isso mobilizou as igrejas, foram até o Papa, fizeram pressão sobre os fiéis. Eu acho que é uma falsa utilização da religião. A religião não foi feita para isso. E todos devem reconhecer, e são obrigados a reconhecer pela Constituição, que há um Estado que é laico. Então essas pessoas pecam contra o princípio fundamental da democracia, não são democratas. Eles podem ter a opinião deles, mas não podem impô-la.

É muito fácil a posição deles, é salvar a criancinha. E depois que salvou ela está na rua, abandonada, passando fome e morrendo. E nem têm compaixão pelas mais de cem mil mulheres que morrem por ano por causa de abortos malfeitos. São pessoas que pecam contra a democracia e contra a humanidade, o senso humanitário. Ninguém é a favor do aborto em si, as mulheres que fazem aborto não pediram por isso. Mas muitas vezes passam por situações tão delicadas que precisam tomar essa decisão.

O que eu aconselho e o que muitos países fizeram, inclusive Espanha e Itália, que são cristianíssimas e permitiram o aborto, pediram que houvesse um grupo de acompanhamento, que converse com a mulher e explique o que significa. E deixar a decisão a ela, se ela decidir vamos respeitar a decisão. Mas ela faz com consciência. Isso eu acho que seria democrático e seria responsável diante da fé, você não renuncia à tua fé, mas respeita a consciência, que é a instância última a que responde diante de Deus.
“Então eles têm um país que foi vítima do nazismo e utiliza os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande contradição.”

Sul21 – Algumas igrejas aqui cobram dízimo dos fiéis, muitas vezes dizem que para agradecer a Deus as pessoas têm que pagar as igrejas. Qual a sua opinião e como a teologia da libertação vê essa prática?

Leonardo Boff – São igrejas do chamado “evangelho da prosperidade”, dizem que você dá e Deus te devolve. Eu acho que é um abuso, porque religião não foi feita para fazer dinheiro. Foi feita para atender as dimensões espirituais do ser humano e dar um horizonte de esperança. Agora quando a igreja transforma a religião num poder econômico, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que em Belo Horizonte tem um shopping ao lado, chamado de “o outro templo”, que é o templo do consumo, e depois do culto as pessoas são instruídas a comprar. Para mim, é a perversão da religião. Inclusive acho que é contra a Constituição utilizar a religião para fins não naturais a ela. Eu combato isso, sou absolutamente contra. Porque isso é enganar o povo, é desnaturar e tirar o caráter espiritual da religião. A religião tem que trabalhar o capital espiritual, e não material.

Sul21 – E em relação a essa crise violenta entre Israel e a Faixa de Gaza, em que o Estado de Israel já matou centenas de pessoas, como o senhor acha que o resto do mundo deveria agir em relação a isso? O Papa poderia ser uma pessoa a mediar o conflito?

Leonardo Boff – Esse Papa é absolutamente contemporâneo e necessário. Acho que é o único líder mundial que tem audiência e eventualmente poderia mediar essa guerra de massacre criminosa que Israel está movendo contra Gaza.

E eu acho que grande parte da culpa é do Obama, que é um criminoso. Porque nenhum ataque com drones (avião não tripulados) pode ser feito sem licença pessoal dele. Estão usando todo tipo de armas de destruição, fecharam Gaza totalmente, ficou um campo de concentração, e vão destruindo. Então eles têm um país que foi vítima do nazismo e utiliza os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande contradição.

E os Estados Unidos apoia, o Obama e todos os presidentes são vítimas do grande lobby judeu, que tem dois braços: o braço dos grandes bancos e o braço da mídia. Eles têm um poder enorme em cima dos presidentes, que não querem se indispor e seguem o que dizem esses judeus radicais, extremistas e que se uniram à direita religiosa cristã. Isso está aliado a um presidente como Obama que não tem senso humanitário mínimo, compaixão para dizer “acabem a matança”.

Sul21 – Qual a sua avaliação da atual disputa para a presidência da República?

Leonardo Boff – Notamos que é uma disputa de interesses de poder. Não se discute o projeto Brasil, se discute poder. O que eu acho lamentável porque não basta ter poder, o poder é um meio. Eu vejo que há duas visões de futuro. Uma é mais progressista, que é levada pelo atual governo. E eu torço que ele ganhe. Mas ganhar para avançar, não reproduzir agenda. Ele atingiu uma agenda que é o primeiro passo, de incluir milhões de pessoas que têm agora direito de consumir o mínimo, de comida, ter geladeira, casa, luz. Isso é direito de todo cidadão. Essa etapa eu acho que o governo cumpriu e bem. Mas agora vem uma nova etapa, porque o ser humano não tem só fome de pão. Tem fome de escola, beleza, lazer, participação na vida social, dos espaços públicos.

E há os que querem impor aquilo que está sendo imposto e não está dando certo na Grécia, em Portugal, na Itália, na Irlanda, que é o neoliberalismo mais radical. Que no fundo é uma austeridade, é o arrocho salarial, aumentar o superávit primário, que é aquele bolo com que se paga os rentistas. Há a visão de futuro que quer enquadrar o Brasil nesse tipo de globalização que é boa para o capital, porque nunca os capitalistas enriqueceram tanto. Tanto que nos Estados Unidos 1% tem o equivalente a 99% da população, enquanto no Brasil 5 mil famílias controlam o equivalente a 43% do PIB. São famílias da casa-grande, que vivem do capital especulativo.

Acho que nós temos que vencer esse projeto, porque não é bom para o povo. Mesmo com todos os defeitos e violações de ética que houve, erros que o PT cometeu, ainda assim o projeto deles é o mais adequado para levar adiante um avanço. Agora se for ganhar para avançar, porque se for para reproduzir dá no mesmo do que outro ganhar.

Sul21 – O senhor mencionou a crise econômica pela qual passam a Grécia, Espanha e países europeus que seguem o neoliberalismo. Há maneiras de reverter a crise?

Leonardo Boff – A Europa está tão enfraquecida e envergonhada que nem mais aprecia a vida. Aquilo que mais escuto em cada palestra que vou na Europa é pessoas me pedindo “por favor, me dê esperança”. Quando um povo perde esperança, perde o sentido de viver. Isso acontece porque alcançaram tudo que queriam, dominaram o mundo, exploraram a natureza como quiseram, ganharam um bem-estar que nunca houve na História e agora se dão conta que são infelizes. Porque o ser humano tem outras fomes. Fome de amar e ser amado, de entender o outro, conviver, respeitar a natureza.

E tudo isso foi colocado à margem. Só conta o PIB. Mas tudo que dá sentido humano não entra no PIB: o amor, a solidariedade, a poesia, a arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo que nos faz humanos e felizes. E essa perspectiva em que só contam os bens materiais poderá levar a humanidade a uma imensa tragédia. Dentro do sistema capitalista, não há salvação. Por duas razões. Primeiro porque nós encostamos nos limites da Terra. É um planeta pequeno, com a maioria dos recursos não renováveis. O sistema tem dificuldade de se auto-reproduzir, porque não tem mais o que explorar. E segundo porque os pobres, que antes da crise que eram 860 milhões, pularam, segundo a FAO, para um bilhão e 200 milhões.

Então esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta de acesso à água e alimentação. Esse sistema, para minha perversidade total, transformou tudo em mercadoria. De uma sociedade com mercado para uma sociedade de mercado, transformando alimentação em mercadoria. O pobre não tem dinheiro para pagar, então ele passa fome e morre.

Sul21 – O senhor se preocupa também com o avanço da extrema direita na Europa?

Leonardo Boff – É a reação normal de quando há uma crise maior que alguns postulem soluções radicais. No caso da Europa, é a xenofobia. Mas são todos países que têm problema de crescimento negativo de população. A Alemanha tem que exportar 300 mil pessoas por ano para manter o crescimento mínimo de população, e na França a situação é parecida. Então estão em uma dificuldade enorme, porque precisam deles, mas querem os expulsar. Mas há o risco de que haja um processo que gerou a Segunda Guerra Mundial, que era fruto da crise de 1929 que nunca se resolvia, até que a direita criou o nazifascismo. Mas hoje o mundo é diferente, é globalizado. Não dá para resolver a questão de um país sem estar vinculado aos outros.

Sul21 – Os governos da América Latina oferecem uma alternativa a esse modelo europeu que está em crise?

Leonardo Boff – Muitos veem, como o (sociólogo português) Boaventura de Sousa Santos, que na América Latina há um conjunto de valores vividos pelas culturas originárias que podem ajudar a humanidade a sair da crise. Especialmente com a característica central do bem-viver, que significa ter outra relação com a natureza, entender a Terra como mãe, que nos dá tudo que precisamos ou podemos completar com o trabalho. E inventaram a democracia comunitária, que não existe no mundo, é uma invenção latino-americana, em que os grupos se reúnem e decidem o que é melhor para eles, e o país é feito por redes de grupos de democracias comunitárias. Essa nova relação com a natureza e o mundo é o que precisamos desenvolver para ter uma relação que não seja destrutiva e possa fazer com que a humanidade sobreviva.

Há uma revisitação das culturas originárias, porque elas têm ainda respeito com a natureza, não conhecem a acumulação. São valores já vividos pelas culturas andinas, sempre desprezadas e hoje estudadas por grandes cientistas e sociólogos que percebem que aqui há princípios que podem nos salvar. Em vez de falar de sustentabilidade, respeitar os ritmos da natureza. Em vez de falar de PIB e crescimento, garantir a base físico-química que sustenta a vida. Porque sem isso a vida vai definhando. E em vez de crescimento, redistribuição. É tanta riqueza acumulada que se houvesse 0,1% de taxa sobre os capitais que estão rolando nas bolsas, estão na especulação, daria um fundo de tal ordem que daria para a humanidade matar a fome e garantir habitação. Porque o capital produtivo é de U$ 60 trilhões, enquanto o especulativo é U$ 600 trilhões. Então é uma economia completamente irracional e inimiga da vida e da natureza. E não tem futuro, caminha para a morte. Ou nos levará todos para a morte, ou eles mesmos se afundarão.

Sul21 – E onde entra o papel do Brasil no âmbito ecológico? Os governos têm conseguido lidar com as questões ambientais?

Leonardo Boff – O Brasil é a parte do planeta mais bem dotada ecologicamente. Tem as maiores florestas úmidas, maior quantidade de água, maior porcentagem de terrenos agriculturáveis no planeta. Mas não têm consciência de sua riqueza. E as políticas públicas não têm nenhuma estratégia de como tratar a Amazônia, tratar os vários ecossistemas. Sempre é em função da produção. Então estão avançando sobre a floresta Amazônica e deflorestando para ter soja e gado.

E o Ministério do Meio Ambiente é um dos mais fracos, assim como o dos Direitos Humanos. Isso significa que não conta a vida, conta a economia. Eu acho lamentável isso. E essa crítica tem que ser feita pelos cidadãos. Dizer que apoiamos um projeto de governo, mas nisso discordamos. Porque é uma ignorância, uma irresponsabilidade, uma estupidez governamental. Muita coisa do futuro da humanidade passa por nós, especialmente água potável, que possivelmente será a crise mais grave, até mais do que aquecimento global. E o Brasil tem capacidade de ser a mesa posta para o mundo inteiro e fornecer água potável para o mundo inteiro. Acho que não temos consciência da nossa responsabilidade. Os governantes são vítimas ainda de uma visão economicista, obedecem as regras da macroeconomia. A nossa relação com a natureza não é de cooperação, é de exploração.

Sul21 – Como o Brasil pode lidar com o grave problema de violência urbana? 

Leonardo Boff – O problema que deve ser pensado de que já agora 63% da humanidade vive nas cidades, no Brasil 85%. Não dá mais para pensar apenas na reforma agrária, tem que pensar como vão viver as pessoas. Nós vivemos no Brasil a vergonha de que todas as cidades têm um núcleo moderno cercado por uma ilha de pobreza e miséria, que são as favelas. Esse é um problema não resolvido e para mim central na campanha: como trabalhar os 85% que vivem nas cidades, já perderam a tradição rural, de plantar e viver da natureza, e não assimilaram a cultura urbana. Então são perdidos. Daí o aumento da criminalidade. E muitos dizem que a sociedade têm um pacto social que rege o comportamento dos cidadãos. Ou seja, “vocês nos excluíram, então não somos obrigados a aceitar as leis de vocês, vamos criar as nossas”. As milícias do Rio criaram funções de Estado paralelas, criam sua organização e distribuição e o governo é impotente. E as UPPs não são a solução, porque cria ilhas e as drogas ficam nas margens. O problema não é de polícia, é do tipo de sociedade que nós criamos, montada em cima do colonialismo, escravagismo e etnocídio dos indígenas. Nós não “temos violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima de estruturas de violência. É um estado de violência permanente.

Sul21 – E como o país pode fazer para fugir disso?

Leonardo Boff – Aquilo que já começou, parar de fazer políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres para fazer políticas de integração, inclusão, começando pela educação. Porque onde há educação a pessoa se habilita a se autodefender, buscar novas formas de sobrevivência. Um país que não investe em educação e saúde conta com pessoas ignorantes e doentes. E com essas pessoas não têm como dar um salto de qualidade. Para mim esse é o grande desafio e isso deveria ser discutido nas campanhas, e não partidos. Desafiar todo mundo: “como vamos sair disso?”, porque tende a piorar cada vez mais. Essa seria uma política ética, digna, onde o bem comum estaria no centro e somaria forças, alianças de pessoas que se propõem a mudar as estruturas que sustentam um Estado injusto, que tem a segunda maior desigualdade do mundo. Desigualdade significa injustiça, que é um pecado social estrutural mortal. E isso não é discutido.

Sobre o Deus que precisamos para atravessarmos o milênio


O Deus do narcisismo me permite agradecer pelo sucesso num concurso, numa seleção de trabalho ou a conquista de uma vaga na faculdade, sem questionar o fato de que isso aconteceu apenas porque alguém foi preterido.

O interesse que hoje tenho por Deus é mais filosófico do que religioso. Sendo assim, entendo que o conceito que se tem de Deus não é unívoco, ele vem se modificando de acordo com o tempo e as diversas culturas e sociedades. É como se cada tempo e cada sociedade tivesse o Deus (ou os deuses) que precisasse ou desejasse.

Se tomarmos o cristianismo, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento era uma espécie de grande líder tirano e cruel, que vigiava e castigava seu povo sempre que lhe conviesse. Suas normas e regras eram rígidas e, muitas vezes, sem qualquer sentido ético, moral ou prático. O único sentido parecia ser deixar bem claro quem era o Todo Poderoso.

Já o Deus do Novo Testamento é um Deus que desceu do seu pedestal e da sua arrogância para se tornar um meio-irmão, um semelhante, que mesmo depois de morto promete ficar entre nós. Esta é exatamente a mensagem final de Jesus na Última Ceia, horas antes de ser crucificado e morto. Mas em algum momento, o Deus do cristianismo que prometeu estar entre nós passou cada vez mais a estar dentro, “habitar o coração do homem”.

Sabemos que o Deus do protestantismo, que nasce no século XV, serviu muito bem à disseminação e ao desenvolvimento do capitalismo. Ao que parece, a noção de um Deus que está dentro de cada um, tem servido muito bem à sociedade capitalista-ocidental em sua versão cada vez mais individualista e narcisista. E o Deus que produzimos neste caldeirão me parece assustador. É uma espécie de Deus-portátil, Deus-de-bolso ou um Deus-I fone; aquele que possui todos os aplicativos, conexões, contatos e arquivos que eu preciso para ser feliz.

O Deus que encontramos na sociedade capitalista-narcisista atual é um Deus que serve cada vez mais para resolver os meus problemas individuais, mesmo os mais egoístas. É um Deus capaz de atender a um pedido meu, mesmo que isso implique em sabotar o pedido de outrem. O Deus do narcisismo me permite agradecer pelo sucesso num concurso, numa seleção de trabalho ou a conquista de uma vaga na faculdade, sem questionar o fato de que isso aconteceu apenas porque alguém foi preterido. Somente o Deus do narcisismo me permite colocar aquele tradicional adesivo no carro: “Foi Deus que me deu”, mesmo quando o digno presente é mais um a poluir o ambiente já a beira do completo caos. O Deus do narcisismo é capaz de me fazer vencedor numa disputa, ainda que do outro lado esteja alguém que fracassou, como se o meu Deus fosse melhor ou mais poderoso que o dele.

Mas que tipo de Deus é este que tolera um pedido de salvação, cuidado ou proteção para apenas eu ou meus familiares e amigos mais próximos? Que tipo de Deus me permite agradecer por ter escapado viva de um acidente em que muitos outros se tornaram vítimas fatais? Que tipo de Deus me autoriza fazer um pedido de mesa farta nas festas de fim de ano, quando a miséria e a fome devasta milhões mundo afora?

O conceito de Deus que vemos hoje é tão narcisista que até quando um desejo meu não é atendido, a explicação é: “porque Deus sabe o que é melhor para mim”.

Enfim, lamentavelmente, o Deus que nos resta atualmente é aquele que atende aos apelos do Eu, o Deus- I fone. É o Deus que promete a tão sonhada felicidade individual. Um Deus que nos demanda louvores, adoração e glorificação, além de uma prova de sua devoção e fé por meio de doação financeira. Somente um Deus narcisista e egocêntrico precisaria deste tipo de devoção ou reconhecimento.

“Meu Deus!” Aí está a exclamação que usamos em nossas orações ou sempre quando o desespero bate e tudo parece perdido. Entretanto, o Deus do indivíduo não será capaz de cumprir sua missão de nos salvar, especialmente porque nosso tempo precisa urgentemente se livrar do individualismo.

No cristianismo é preciso se livrar do Deus que se ocupa das nossas misérias egoístas e individuais e resgatar o “Pai Nosso”, aquele capaz de nos ajudar a reparar as nossas mazelas coletivas. Não aquelas que estão dentro de nós, mas as que estão entre nós; a fome, as injustiças sociais, a degradação do meio ambiente, a falta de água e saneamento básico, as guerras.

É bem provável que não seja possível ou desejável um Deus único para toda a humanidade. A diversidade de culturas e religiões pelo mundo não possibilitaria isso, mas é fundamental e urgente perseguirmos a ética de um Deus para Todos, e não só para todos os seres humanos, mas para todos os seres que habitam este planeta, animados ou não.

Resumindo, se a função de Deus é nos salvar, nos libertar e nos proteger, o Deus do narcisismo, se é que realmente precisamos dele algum dia, não nos serve mais. O Deus que irá permitir à humanidade fazer sua travessia em direção ao próximo milênio precisa ser um outro Deus. Precisamos parar de orar a Deus para curar nossa unha encravada, proteger nossa prole, melhorar nossa vida financeira ou sustentar nosso amor-próprio. Nossas orações (representantes autênticas do nosso desejo) precisam se livrar do narcisismo e do egoísmo e alcançar o campo da alteridade. Caso não modifiquemos nossas orações, o abismo narcísico do EU irá nos engolir em breve.

Sendo assim, o Deus que precisamos ou que deveríamos desejar não é mais o Deus que está dentro, mas o Deus que está entre nós. O Deus que nos une, que nos enlaça, que possibilita o amor, que nos faz irmãos porque habitantes do mesmo planeta. O Deus que precisamos invocar não é o “Meu Deus”. O Deus que nos permitirá sobreviver é o "Nosso Deus", ou o "Pai Nosso" o Deus da alteridade.

O Deus que precisaremos para não sucumbirmos como espécie não poderá ser tolerante com a ideia de salvação individual, seja ela de que tipo for. O Deus que rogaremos, caso haja futuro, é aquele que exige que respeitemos o seguinte mandamento: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Um natal sem hipocrisia !

guilherme boulos


Hoje é Natal. Quase um terço da população mundial celebra o nascimento de Jesus Cristo. Só no Brasil são mais de 160 milhões de cristãos. A data, é verdade, tornou-se mais que tudo um grande evento comercial, mas vale a pena aproveitarmos a ocasião natalina para uma breve reflexão.

Jesus Cristo, do modo como nos apresenta a Bíblia, não era um apologeta da ordem e da tradição. Enfrentou os poderosos de seu tempo e defendeu ideias que a consciência dominante não podia admitir.

Não por acaso morreu na cruz, depois de perseguido, preso e torturado. Como gosta de lembrar Frei Betto, Jesus não morreu de hepatite na cama nem atropelado por um camelo em alguma esquina de Jerusalém. Morreu como preso político nas mãos do prefeito Pôncio Pilatos e dos sacerdotes judeus. Isso, as escrituras nos dizem.

Nos falam também sobre as razões que fizeram de Jesus tão odiado pelos poderosos. Defendeu a igualdade e os mais pobres, condenando aqueles que se apegavam demais às riquezas: "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (Mateus 19, 24).

Defendeu a divisão dos bens, como signo da igualdade social: "Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos" (Lucas 1, 53). E assim o fez, partilhou o pão e os peixes entre todos (Marcos 6, 41).

Jesus enfrentou também decididamente os preconceitos, como mostra o caso bíblico da mulher samaritana (João 4, 1-42). Acolheu os marginalizados (Marcos 7, 31) e foi misericordioso com as prostitutas (Lucas 7, 36-50). Combateu o ódio e a intolerância.

Hoje, 2.000 anos depois, nosso mundo permanece profundamente desigual. Os 2% mais ricos da população mundial detêm mais da metade de todas as riquezas, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 1%. Os donos do poder, via de regra, continuam atuando para manter esta estrutura de privilégios e reprimir o povo quando ousa enfrentá-la.

Muitos dos que hoje se dizem cristãos consideram a desigualdade como fato imutável e a legitimam pelo discurso hipócrita da meritocracia. Sem falar no ódio e na intolerância. Defendem o linchamento público de "marginais", silenciam com cumplicidade ante a chacina da juventude negra nas periferias, ofendem homossexuais e toleram a agressão a mulheres.

Jesus dedicou sua vida à igualdade, justiça e paz entre os povos. Se reaparecesse em 2014, no Brasil, ficaria espantado com o que dizem e fazem muitos dos cristãos. Seria achincalhado com palavras inomináveis nas seções de comentários da internet. Seria chamado de bolivariano na avenida Paulista. Certa comentarista de telejornal o mandaria levar para casa a mulher adúltera que ele salvou do apedrejamento. E alguém, de dentro de algum carro no Leblon, gritaria a ele: "Vai pra Cuba, Jesus!".

Uma coisa é certa. O Jesus de que a Bíblia nos conta, se vivesse hoje, estaria ao lado dos direitos sociais e humanos. Estaria com os sem-teto e os sem-terra, com os negros, as mulheres violentadas e os homossexuais vítimas de preconceito. Estaria com os imigrantes haitianos e defendendo –como o papa Francisco– o fim do vergonhoso embargo a Cuba.

Talvez fosse preso e torturado, do mesmo modo que milhares de brasileiros que não há muito lutavam por igualdade e justiça. Seria sem dúvida crucificado, desta vez não pelas autoridades romanas e os sacerdotes judeus, mas crucificado moralmente por muitos dos cristãos que, em seu nome, insistem em combater tudo aquilo que ele defendeu.

Dizem que o Natal e a passagem de ano são momentos para reflexões e mudanças. Assim seja. Esperamos que muitos dos que partilham da fé cristã possam aproveitar a oportunidade natalina para inspirarem-se mais no exemplo de seu mestre.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Emir Sader: "A incapacidade da esquerda de fortalecer sua presença no Congresso e o aumento da representação da direita terá consequências em todo o segundo mandato de Dilma"

Os avanços da direita no Brasil


A incapacidade da esquerda de fortalecer sua presença no Congresso e o aumento da representação da direita terá consequências em todo o segundo mandato de Dilma


por Emir Sader em 21/12/2014 às 07:56




As sucessivas vitórias nas eleições presidenciais permitem que o PT siga governando até pelo menos quase o final da segunda década do século. É a melhor oportunidade que o país dispõe para mudar irreversivelmente as duras heranças construídas ao longo de muito tempo de desigualdade, exclusão social, pobreza e miséria.

Nestes 12 anos, além das conquistas sociais inquestionáveis, que já mudaram a fisionomia do país em tantos aspectos, avanços políticos e ideológicos foram se consolidando também. A desmoralização do Estado foi revertida, em grande medida. O diagnóstico de Ronald Reagan, de que o Estado não era solução, mas era ele mesmo o problema, adotado pelo neoliberalismo brasileiro – dos marajás do Collor à virada de página do getulismo de FHC -, foi revertido pelos governos Lula e Dilma.

As políticas sociais só tem sido possíveis pela capacidade do Estado de formulá-las e colocá-las em prática. A resistência à profunda e prolongada recessão internacional tem sido possível graças à capacidade do Estado de induzir o crescimento econômico, de fortalecer os bancos públicos, de estender o mercado interno de consumo popular. A recuperação da soberania brasileira na política externa conta com a atuação firme do Estado brasileiro na defesa dos interesses do Brasil, na promoção de projetos de integração latino-americana, na intensificação do intercâmbio Sul-Sul.

A centralidade das políticas sociais foi a chave do sucesso político e eleitoral dos governos do PT. Mas houve retrocessos, que precisam ser levados em conta, mais além dos herdados do governo FHC.

Entre os retrocessos, os avanços da direita, devemos destacar a reversão da imagem do PT com o chamado processo do mensalão; a reversão atual da imagem da Petrobras; a eleição de um Congresso mais conservador; a reeleição dos tucanos em São Paulo, apesar de vários aspectos negativos, como escândalos e a falta de água.

O caso do mensalão foi a maior derrota que o PT sofreu na sua história, tanto pelas denúncias que, formuladas e difundidas numa escala nunca vista na imprensa brasileira, calaram em grande parte da opinião pública brasileira e reverteram a imagem do PT, de partido que defendia a ética na política, para partido envolvido com corrupção. Mais além do que efetivamente ocorreu, o que foi projetado no imaginário de boa parte das pessoas – dentro e fora do Brasil – é a de um partido que se valeu de cargos no governo para promover negociatas que misturaram alianças políticas com utilização irregular de recursos públicos. 

Dessa imagem o PT – mesmo protestando, denunciando as manipulações e o uso escandaloso político feito pelo Judiciário – nunca conseguiu se livrar. Das denúncias ficou uma imagem negativa dos “petistas”. Por erros efetivamente cometidos e por sua instrumentalização brutal por parte dos meios de comunicação, chancelada pelas condenações do Judiciário, a reversão da imagem do PT foi uma derrota de proporções estratégicas para a esquerda brasileira. Lutando para o resgate da política, do Estado, dos partidos, esse baque veio fortalecer os que promovem a desqualificação dessas categorias e acentuar o descredito com a política, com os governos e com os partidos mas, sobretudo, enfraqueceu a imagem do partido de esquerda de maior sucesso na história brasileira e de um dos que havia adquirido mais prestígio na esquerda em escala mundial. 

A recente reversão da imagem da Petrobras é outro retrocesso imenso para a esquerda brasileira. Depois de ter sido desmoralizada no governo FHC - junto com todas as empresas estatais e com a própria ação do Estado -, a Petrobras teve sua imagem recuperada de forma espetacular a partir do governo Lula. Seja como empresa estatal de sucesso, seja como uma das empresa petroleiras mais fortes no mundo. A descoberta do pré-sal veio coroar essa recuperação da imagem da Petrobras.

Para a direita esse prestígio foi sempre uma espinha na garganta. Era impossível seguir fazendo a apologia das empresas privadas e a desqualificação das empresas estatais, diante do sucesso inquestionável da Petrobras. Até que a campanha de denúncias reverte a imagem pública da empresa – mais além da sua capacidade como empresa petrolífera – e permite à direita desmontar na opinião pública a imagem da Petrobras e das empresas públicas em geral, fortalecendo a campanha da direita, que busca demonstrar que tudo o que é estatal é ineficiente e passível de corrupção.

No recente processo eleitoral, apesar da reeleição da Dilma e de outras vitórias regionais – das quais aquela em Minas e na Bahia foram especialmente relevantes -, é preciso destacar a capacidade da direita de, apesar dos escândalos do governo de São Paulo e do racionamento de água, conseguir reeleger Alckmin no primeiro turno, como um feito notável. Devido, em grande medida, à blindagem que o absoluto monopólio da mídia em São Paulo conseguiu impor. De qualquer forma, a compreensão – e a desmontagem – da hegemonia da direita em São Paulo é dos maiores desafios para a esquerda atualmente. O braço de ferro entre o governo Haddad e a elite paulista é um dos momentos decisivos nessa luta.

A incapacidade da esquerda de fortalecer sua presença no Congresso e, ao contrário, o aumento da representação da direita, foi outra conquista da direita, que terá consequências por pelo menos todo o segundo mandato da Dilma.

Esta lista de avanços da direita não é suficiente para caracterizar a correlação de forças atual no Brasil, porque ela é sempre uma correlacao de forças. Existem os elementos de força da esquerda, que se contrapõe a eles. Mas é impossível pensar o Brasil contemporâneo sem levar em conta os avanços da direita.


quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Por que só a Ditadura foi investigada pela CNV?



Como todos já devem saber, em 10 de dezembro de 2014, Dia Internacional dos Direitos Humanos, a Comissão da Verdade, criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 pela Presidenta Dilma, enfim entregou seu relatório final que apura, esclarece, indica as circunstâncias e os autores das graves violações de Direitos Humanos praticadas por agentes do Estado entre 1946 e 1988 (o período entre as duas últimas constituições democráticas brasileiras), com o objetivo de efetivar o direito à memória e a verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

A parte final do parágrafo anterior eu retirei do próprio site da CNV, onde você pode acessar o relatório final, mas traduzindo para o bom português, o que a CNV fez foi o seguinte: apontar torturadores, seus apoiadores e suas vítimas, além de sugerir à Justiça as medidas cabíveis para estes crimes.

E aí começou o mimimi…
Por que não investigar os “terroristas da esquerda?”

Veja só que coisa, nobre cidadão de bem: os veículos de mídia que apoiaram o Golpe em 1964 (oi Folha!), ou ganharam “musculatura” durante a Ditadura Militar (oi O Globo!), levantaram a lebre da falta de investigação que aponte os “terroristas”, que inclusive mataram bravos soldados e policiais que estavam a serviço do Brasil.

Mas o que o nobre cidadão – de bem, sempre de bem – precisa saber é que se a gente estudar o período só um pouquinho que seja, vai descobrir que o Brasil não corria o menor risco de ter uma Revolução Comunista. Longe disso!

O Brasil antes do Golpe de 1964 era um país democrático, onde a população elegia seus presidentes, senadores, deputados, governadores etc… por voto direto há algumas décadas, e que não havia condições materiais e logísticas dos “vermelhos” tomarem o Poder no Brasil via luta armada.

Expliquei melhor este ponto no texto onde respondo algumas perguntas sobre o Golpe de 1964. Recomendo fortemente a leitura antes de prosseguirmos por aqui.

Até agora, esse é o único “Golpe Comunista no Brasil” que se tem notícia…

Leu o texto? Beleza, podemos continuar.

Como eu ia dizendo, o Brasil tinha um sistema democrático de governo. Inclusive, contava na época com um presidente que buscava agradar os dois lados, esquerda e direita. É óbvio que quando agradava um lado, o outro reclamava e vice-versa. Mas isto não era motivo para GOLPE e derrubada do presidente.

João Goulart estava governando para um país grande e multi-ideológico. Aliás, isto acontece HOJE com a Dilma. Quem aí não gostou da Katia Abreu no Ministério da Agricultura? Pois é…

Mas voltando ao nosso assunto, mesmo com toda a vaselina do Jango, veio o Golpe em 1964. Caiu o presidente, as eleições foram suspensas, fechou-se o Congresso Nacional, partidos foram colocados na ilegalidade e pessoas passaram a ser perseguidas por terem OPINIÕES diferentes daquele grupo que tomou o Poder.

Agora me responda, “homem de bem”, ONDE ESTÁ O MALDITO RESTABELECIMENTO DA DEMOCRACIA que vocês vivem vomitando para defender o Golpe? Onde está a tal da “Ditabranda” – aliás, expressão de mal-gosto, hein? – no momento em que o AI-5 permitiu o chamado regime de exceção, onde qualquer um podia ser preso a qualquer momento “em nome da ordem”? E estas pessoas passaram a ser torturadas para ceder informações sobre outros “subversivos”.

Vou usar a linha de raciocínio do jornalista Breno Altman, que desenha – ou melhor, explica – de forma mais fácil e direta.

Toda quebra da ordem constitucional, para submeter uma nação à ditadura, estabelece imediatamente o pleno direito de insurgência contra a usurpação antidemocrática.

Adquire lastro ético toda e qualquer forma de ação resistente, contra quaisquer alvos, civis ou militares, que representem o arbítrio.

Ao mesmo tempo, torna-se ilegítimo qualquer julgamento ou ato repressivo, sob regime de exceção, contra aqueles que se levantam, de forma armada ou pacífica, para derrubar a tirania.

Não é por outra razão, por exemplo, que militantes fascistas, na Itália pós-Mussolini, foram levados a juízo, ao contrário dos guerrilheiros que se alçaram contra o despotismo.

Nem sempre este paradigma é respeitado, mas trata-se de uma das mais importantes linhas de corte para identificar a higidez democrática: a violação da soberania popular e das garantias constitucionais universaliza o direito de resistir.

Melhor explicado que isto, impossível, ou seja: os brasileiros que se levantaram contra a Ditadura viviam em uma Democracia. Tiraram este direito com o Golpe. E agora eles tem que sofrer investigação por causa de sua resistência contra esta opressão???

Como dizia um antigo personagem do humorista Jô Soares, “Me tira o tubo!”(*)

Hoje em dia, só pessoas desprovidas de senso democrático apoiam a volta da Ditadura, mas a DEFESA de torturadores e assassinos que causaram este tipo de sofrimento utilizando recursos DO ESTADO para tal fim, é de uma falta de caráter sem igual!

(Quem defende este ponto de vista normalmente são as mesmas pessoas que nos últimos tempos vem chamando petistas e simpatizantes do partido de “bandidos”, só porque eles votam em um governo que deixa a Polícia e a Justiça Federal trabalharem, ao invés de engavetarem os crimes, tendo o próprio governo sofrido “baixas” de seus quadros justamente por estas investigações. Mas isto é outro assunto…)

Repito: o grupo que tomou o Poder em 1964 utilizou as estruturas do Estado para torturar e matar pessoas apenas porque estas pensavam diferente da “ordem” vigente! Um exemplo clássico foi citado em nosso texto sobre a música brasileira nas décadas de 1960 e 1970: o escritor Paulo Coelho ficou preso um mês porque estava andando na rua usando uma camisa da seleção de futebol do Paraguai. O delegado achou aquilo um insulto à pátria. E ele deve ter levado alguns cascudos por isso. Era a regra!

Puxando para os dias atuais, onde tem uma pequena horda de desmiolados pedindo a volta da Ditadura, se é este tipo de liberdade que merece ser tolhida da população porque o Brasil está virando um país “comunista” (pausa para rir, por favor), dá logo minha passagem para Cuba, ou para o Uruguai!

Termino o texto com a linha de raciocínio do escritor Luis Fernando Veríssimo em seurecente texto sobre este assunto



Um último apelo: menos pensamento irracional, gente. Por favor. E mais livros de História!

Senão, daqui a pouco vai ter gente falando pra SUA MÃE que não a estupra “porque ela não merece”… não, péra…
Notas:

(*) é, eu sei, eu coloquei justamente este personagem do Jô Soares de propósito. Quem conhece sabe o porquê… rsrs

- O desenho-crítica que abre o post é do genial Benett.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Para que servem os partidos de esquerda?



Hoje, recoloca-se com força a questão do papel dos partidos de esquerda nos processos de construção de alternativas superadores do neoliberalismo.

por Emir Sader

Ao longo da década de 1990 a esquerda resistiu como pôde aos avanços do neoliberalismo. Parecia que estávamos frente a uma onda irresistível, até que alguns governos latino-americanos reagiram e começaram a construir alternativas a esse modelo

Duas correntes conviviam na resistência ao neoliberalismo: uma, que defendia a autonomia dos movimentos sociais, a rejeição à política, aos partidos e ao Estado. Outra, que propunha a necessidade de resgate da política, dos partidos e do Estado para conquistar hegemonia e construir alternativas ao neoliberalismo.

Triunfou esta segunda corrente, dado que a superação do neoliberalismo requer a construção de um bloco de forças hegemônico e a construção prática de novas políticas de caráter público, que requerem redirecionar o Estado, superando a centralidade do mercado, promovida pelo neoliberalismo. Trata-se de resgatar o Estado e a política e não de abandoná-los, o que faz o jogo do neoliberalismo.

O resgate do papel ativo do Estado, tanto como indutor do crescimento econômico, como na sua qualidade de garantia dos direitos sociais, foi decisivo na capacidade de governos para avançar na superação do modelo neoliberal. A ultraesquerda foi derrotada porque não soube compreender a natureza da disputa e do papel do Estado nela. 

Os que propunham a autonomia dos movimentos sociais não foram capazes de passar da força acumulada no plano social na resistência ao neoliberalismo à construção de alternativas políticas a esse modelo. Permaneceram na fase de resistência a esse modelo. Algumas forças praticamente desapareceram – como foi o caso dos piqueteros na Argentina – outras ficaram reduzidas à intranscendência – como é o caso dos zapatitas no México. 

Foi decisivo o papel do Estado nos avanços na superação do neoberalismo, tanto no plano econômico, como no social. Mas a desmoralização da política e o enfraquecimento dos partidos não se deteve sequer nos países que resgataram a importância do Estado.

Hoje, recoloca-se com força a questão do papel dos partidos de esquerda nos processos de construção de alternativas superadores do neoliberalismo. Como se trata de governos de alianças amplas, de centro esquerda, esses devem representar a alternativa de esquerda, que representa a superação radical do neoliberalismo. E, mais além dessa luta, apontar para alternativas anticapitalistas.

Por outro lado, o papel de um partido de esquerda é o de formular estratégias para chegar aos objetivos do programa dos partidos. Enquanto os governos se movem no plano das conjunturas, é necessário apontar para esses objetivos, para que não se percam nos enfrentamentos imediatos.

Além disso, os partidos devem discutir permanentemente com os movimentos populares as plataformas de luta, as formas de organização dos distintos setores populares, as relações com os governos. Porque são esses movimentos – sindicatos, movimentos sociais, culturais, etc. – os que devem se dedicar a organizar os mais amplos setores de massa.

É também responsabilidade dos partidos as constantes avaliações das conjunturas, das relações de força, dos aliados, do inimigos.

Em síntese, o papel dos partidos é o de dar direção política, de elaborar e construir a hegemonia dos programas estratégicos da esquerda e as formas de sua realização.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O Relatório da Comissão da Verdade e a batalha das memórias

[Colegiado apresenta o relatório final da CNV à Presidente; da esquerda para a direita na imagem: Maria Rita Kehl, Dilma Rousseff, Pedro Dallari, Paulo Sergio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha]






Dia 10 de dezembro de 2014 é a data na qual pela primeira vez o Estado brasileiro corrobora um documento, ainda que tímido, com um quadro mais consistente das várias e graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar. Neste dia ocorreu a divulgação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Foi preciso transcorrer três décadas entre o fim da ditadura e o Relatório para que as instituições do Estado de Direito fizessem o reconhecimento daqueles eventos históricos de violência do Estado. Com todas as suas dificuldades de trabalho e sofrendo de limitações institucionais congênitas e de sabotagem por parte das Forças Armadas e de outros setores do Estado, a CNV fez parte de um processo de lutas mais amplo do choque entre memórias antagônicas que se relacionam diretamente com a política do presente e da democracia.

Após estas décadas de retorno à democracia, consolidou-se no país uma democracia de segurança cujo projeto político é a manutenção de uma zona de conforto para determinada aristocracia política e econômica. A ideia de segurança na política democrática se expressa na manutenção de uma ordem na qual pobres, jovens, moradores da periferia, mulheres, negros, manifestantes são subjetividades construídas para serem as vítimas. Para estes, autoriza-se o uso da violência abusiva e discriminatória do Estado. O que vemos no atual Estado de Direito é a prática da tortura, do excesso e da agressão dos agentes das forças de segurança pública, os depósitos de pessoas encarceradas e um sistema judiciário viciado pela lógica de favorecimento aos proprietários. O Estado brasileiro de hoje, em termos de sua estrutura de vigilância e controle, é tão violento quanto o de ontem.

Diante deste quadro do presente, um relatório da CNV que aponte uma estrutura estatal de repressão e violência, com função clara de proteção da propriedade privada, dos acordos entre as aristocracias políticas e dos grandes grupos econômicos lança luz sobre os atuais conflitos da democracia.

As batalhas de memórias hoje evidenciadas, por um lado, com o esperneio dos militares (eles têm pedido na Justiça a suspensão da divulgação do Relatório) e de manifestantes exigindo uma intervenção militar (em número reduzido, mas com grande espaço na mídia e caminhando junto com os atos da oposição institucional tucana); e, por outro, com a mobilização de dezenas de comissões da verdade nos vários âmbitos da vida institucional e de manifestantes de movimentos sociais indicando a ligação da violência estatal de ontem com a de hoje, têm uma significação muito mais forte do que a dificultosa escrita da história dos anos 60 e 70.

Os atuais conflitos desenhados como uma disputa entre as vítimas da ditadura e uma direita militar e bestializada tem a marca de um simulacro da verdadeira batalha. O que de fato parece ocorrer neste momento de divulgação do Relatório da CNV é o registro da memória de lutas populares, de suas vitórias e derrotas na resistência a uma sociedade elitizada, discriminatória e violenta que tem no Estado um lugar de manutenção da desigualdade social.

Há uma disputa maior cuja batalha discursiva em torno do Relatório é somente a ponta mais evidente no momento. Como em qualquer processo de mudança a suspensão do percurso ordinário das coisas e fatos desperta condições para o acesso ao que até então se mostrava como impossível. O que se expõe no Relatório da CNV é a coordenação centralizada de um processo repressivo, mostrando um projeto político cujo executor é um Estado violento, estejamos em ditadura ou em um estado de direito.

Obviamente, o regime político do Estado de Direito difere profundamente da ditadura. Porém, esta grande diferença histórica, proporcionando uma série de direitos, nos permite escancarar esta luta entre projetos políticos antagônicos, neste caso colocada no campo da batalha de memórias.

As instituições tradicionais da política no país já naufragaram no processo de transição e no modelo de democracia de segurança acertada nos pactos entre esta tradição, o Estado e os proprietários do capital. O conflito de fato experimentado é entre as novas possibilidades de ação política de transformação e a necessidade de controle e eliminação delas.

***

Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão eletrônica (ebook) está à venda pela metade do preço do livro impresso. Compre nas livrarias daTravessa, Saraiva e Gato Sabido.

Edson Teles é autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível na Gato Sabido, Livraria da Travessa e outras).

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Chefes das Forças Armadas condenam radicais: "o Brasil é uma democracia"

Chefes das Forças Armadas frustram os manifestantes golpistas que pedem intervenção militar e destituição da presidente Dilma: "Os militares de hoje estão totalmente comprometidos com a democracia e não vão voltar ou apelar para um golpe"

Chefes das Forças Armadas rechaçam golpe: “estamos inseridos na democracia e não vamos voltar”



Dirigentes que integram as Forças Armadas rechaçaram a possibilidade de os militares da ativa atenderem aos pedidos de intervenção e destituição da presidente Dilma Rousseff (PT) do poder. O pleito é fomentado por alas conservadoras e direitistas que promovem passeatas desde a vitória de Dilma sobre Aécio Neves (PSDB) em outubro passado.

Um dos argumentos é que a reeleição da petista consumará a instauração de um golpe de teor comunista no Brasil. Segundo o comandante da Marinha, os militares de hoje estão totalmente comprometidos com a democracia e não vão apelar para um golpe.

Os três chefes das Forças Armadas do Brasil foram ouvidos pela colunista da Folha, Monica Bergamo. O general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito e o almirante Julio Soares de Moura Neto retrataram um ambiente de absoluta normalidade institucional.

“Os militares estão totalmente inseridos na democracia e não vão voltar. Isso eu garanto”, disse o almirante Julio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha. “Os militares só voltam em seu papel institucional, que é o que têm hoje”, afirmou.

Saito, por sua vez, criticou os radicais. “São opiniões de extremistas”, afirma, antes de sentenciar. “É algo impossível de acontecer. Só quem poderia tentar fazer isso é o pessoal da ativa. E, como nós não queremos nada nesse sentido, não há a menor chance de essas ideias evoluírem.”

Peri também rechaça a pregação golpista. “Nós vivemos há muitos anos em um ambiente de absoluta normalidade.”

Comissão da Verdade faz história

Via :  Cinema & Outras Artes



É um marco histórico a entrega do relatório final da Comissão da Verdade, realizada hoje (10/12), em Brasília. Sua importância simbólica e efetiva, como registro documental dos crimes perpetrados pelo Estado durante o período militar, supera as criticas que se possa fazer às condições, restrições e táticas dissimulantes das quais foi vítima desde sua tardia implementação.

O vício das conciliações por cima, traço distintivo do modus operandi das elites brasileiras, fez com que sejamos o último dos países latino-americanos a não acertar as contas com seu passado ditatorial mais ou menos recente. E, no caso, graças a uma casuística Lei de Anistia, implementada por quem dela se beneficiaria, o único em que à constatação de crimes oficiais como tortura, assassinato e ocultação de cadáver não corresponde a devida punição legal.

Desinformação política

Esse anacronismo – e o desconhecimento histórico para o qual ele contribui de froma determinante - talvez ajude a explicar porque proliferam, nas manifestações conservadoras recentes, clamores por um novo golpe militar, alegada panaceia que visaria, sobretudo, o combate à corrupção. Trata-se de um raciocínio tão denunciador, a um tempo, de ignorância histórica e de ingenuidade política de quem o perpetua que tende a soar sempre como mera provocação, trollagem de quem não tem o que fazer.

Pois foi justamente à sombra silenciosa do arbítrio que, enquanto o sangue escorria nos porões, a corrupção assumiu um caráter sistemático e gigantesco, em megaobras superfaturadas e no loteamento do acesso ao Estado. Além da relação incestuosa entre o regime militar e o sistema financeiro – que gerou casos como o Coroa-Brastel, do Banco Nacional e da falência da Panair- , proliferaram, como nunca, as concorrências viciadas, em casos como a “Operação Capemi” [referência à Caixa Pecúlio dos Militares, evidenciando envolvimento direto de militares], a construção da Ponte Rio-Niterói, e a rodovia Transamazômica, símbolo máximo do desperdício de dinheiro público, de corrupção e da falácia do projeto de desenvolvimento modelo “Brasil Grande”.

Resgate necessário

Ademais, o saudosismo golpista não é autorizado pela infeliz constatação infeliz de que o PT, em suas primeiras décadas um partido que priorizava a ética na política, tenha decidido fechar os olhos para a corrupção e adotar uma realpolitik tão elástica que inclui “fazer o que todos fazem no poder” - tática cujos resultados mais evidentes são os casos “Mensalão” e a administração pra lá de irresponsável da Petrobras.

Pelo contrário: tal constatação antes reforça a necessidade de a esquerda resgatar, nos programas de seus partidos, o caráter precípuo do combate à corrupção - não só pelo risco de se tornar, na prática, indistinguível dos partidos conservadores com histórico de grossa bandalheira, mas, com a descrença generalizada que tal indistinção propicia, fomentar a ameaça totalitária que vê em golpes militares a panaceia contra a corrupção.

Prioridade atual

A emoção profunda que acometeu a presidente Dilma em seu discurso, no ato de entrega do relatório da Comissão da Verdade, se justifica, tanto (certamente) em termos pessoais quanto cívicos: com todas as muitas críticas que se possa tecer à sua administração – e este blog não se tem furtado de fazê-la -, a cerimônia de hoje representa uma grande conquista para sua gestão e para o país.

E, importante: não só pelo imprescindível e inadiável acerto de contas com a brutalidade dos métodos ditatoriais, mas por apontar temas urgentes e atuais de máxima importância, como o fim da tortura como técnica disseminada de investigação policial, sobretudo contra os pobres, a necessidade de adoção de um modelo desmilitarizado de força policial e a urgência de se combater a hoje insuportável violência urbana sem abrir mão do respeito a direitos humanos internacionalmente consagrados. O futuro do Brasil enquanto sociedade depende disso.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Comissão da Verdade: Conheça as 29 recomendações do relatório

Via BBC Brasil


Comissão da Verdade recomenda desmilitarização da polícia e reformas nas prisões


Após dois anos e sete meses de pesquisas, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade apresentado hoje à Presidência faz 29 recomendações às autoridades nacionais.

A maioria delas está relacionada à punição de autores de crimes durante o regime militar, à prevenção da ocorrência de abusos de natureza semelhante e à abolição de práticas e estruturas remanescentes da época.

Na prática, o documento propõe mudanças que gerariam grande impacto na área de segurança pública, como a desmilitarização da polícia e reformas no sistema prisional.

Veja abaixo quais foram as 29 recomendações.

1.Reconhecimento de culpa

Segundo a CNV, até agora as Forças Armadas não negaram que ocorreram abusos de direitos humanos cometidos em suas instalações, cometidos por seus militares. Mas isso não seria suficiente. A primeira recomendação do relatório final é que as forças reconheçam sua responsabilidade institucional pelos abusos ocorridos entre a ditadura.

2.Punição de agentes públicos

A CNV entendeu, com base em legislação internacional que a Lei de Anistia não pode proteger autores de crimes contra a humanidade. Por isso recomenda que os agentes do Estado envolvidos com episórios de tortura, assassinatos e outros abusos sejam investigados, processados e punidos.

3.Acusados de abusos devem custear indenizações de vítimas

O Estado brasileiro já foi condenado a pagar diversas indenizações a vítmas de abusos de forças de segurança durante a ditadura. O documento final da CNV recomenda agora que o Estado tome medidas administrativas para que os agentes públicos cujos atos resultaram nessas condenações sejam obrigados a ressarcir os cofres públicos.

4.Proibição das comemorações do golpe militar de 1964

A CNV recomenda a proibição de qualquer celebração oficial relacionada ao tema. Associações relacionadas aos militares tradiconalmente comemoram os aniversários da revolução de 1964.

5.Alteração dos concursos públicos para as forças de segurança

O documento recomenda que os processos de recrutamento das Forças Armadas e das polícias levem em conta os conhecimentos dos candidatos sobre preceitos teóricos e práticos relacionados à promoção dos Direitos Humanos.

6.Modificação do currículo das academias militares e policiais

A CNV recomenda alterações no ensino sobre os conceitos de democracia e direitos humanos nas academias militares e de polícia do Brasil. Essas entidades deveriam ainda suprimir qualquer referência à doutrina de segurança nacional.

7.Mudanças nos registros de óbito das vítimas

A alteração de registros de causas de óbitos de vítimas do regime militar é outra das recomendações da comissão. O objetivo é tornar oficial que diversas pessoas morream em decorrência de violência de agentes do Estados e não por suicídio.

8.Mudanças no Infoseg

A CNV recomenda que os registros criminais de pessoas que posteriormente foram reconhecidas como vítimas de perseguição política e de condenações na Justiça Militar entre 1946 a 1988 sejam excluídos da rede Infoseg – o banco de dados que tenta integrar as informações de segurança pública dos Estados brasileiros. A comissão pede ainda a criação de um banco de DNA de pessoas sepultadas sem identificação para facilitar sua posterior identificação.

9.Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura

Segundo o documento, a tortura continuaria a ser praticada em instalações policiais pelo Brasil. Esse entendimento levou a comissão a recomendar a criação de mecanismos e comitês de prevenção e combate à tortura nos Estados e na Federação.

10.Desvinculação dos IMLs das Secretarias de Segurança Pública

A apuração pela CNV de casos de conivência de peritos com crimes de agentes do Estado e a produção de laudos imprecisos durante o regime militar fez a comissão recomendar a desvinculação dos Institutos Médicos Legais das polícias e Secretarias de Segurança Pública. O objetivo seria a melhora na qualidade de produção de provas, especialmente em casos de tortura.

11.Fortalecimento das Defensorias Públicas

Segundo as investigações da CNV, a dificuldade de acesso dos presos à Justiça facilitou a ocorrenência de abusos de direitos humanos nas prisões durante o regime. Situação semelhante persistiria no sistema penitenciário atual. Por isso, seria necessário melhorar a atuação dos defensores públicos e amentar seu contato com os detentos.

12.Dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso

O relatório final da CNV faz uma série de críticas às condições do sistema prisional e ecomenda ações de combate à superlotação, aos abusos de direitos humanos e às revistas vexatórias. A comissão critica ainda o processo de privatização de presídios que já ocorre em alguns Estados do país.

13.Instituição de ouvidorias do sistema penitenciário

A comissão recomenda a adoção de ouvidorias no sistema penitenciário, na Defensoria Pública e no Ministério Público para aperfeiçoar esses órgãos. Os defensores devem ser membros da sociedade civil.

14.Fortalecimento de Conselhos da Comunidade para fiscalizar o sistema prisional

Os Conselhos da Comunidade já estão previstos em lei e devem ser instalados em comarcas que tenham varas de execução penal. Eles devem acompanhar o que acontece nos estabelecimentos penais.

15.Garantia de atendimento às vítimas de abusos de direitos humanos

De acordo com a CNV, as vítimas de graves violações de direitos humanos estão sujeitas a sequelas que demandam atendimento médico e psicossocial contínuo – que devem ser garantidos pelo Estado.

16.Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação

Basicamente, os integrantes da comissão pedem que as escolas ensinem a seus alunos a história recente do país e “incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos e à diversidade cultural”.

17.Criação ou aperfeiçoamento de órgãos de defesa dos direitos humanos

A comissão recomenda a criação e o apoio a secretarias de direitos humanos em todos os Estados e municípios do país. O grupo também pede reformas em órgãos federais já existentes, como o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão de Anistia.

18.Revogação da Lei de Segurança Nacional

A CNV quer a revogação da Lei de Segurança Nacional (que define os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social), adotada na época do regime militar e ainda vigente.

19.Mudança das leis para punir crimes contra a humanidade e desaparecimentos forçados

A comissão solicita a incorporação na legislação brasileira do crime de “desaparecimento forçado” – quando uma pessoa é detida secretamente por uma organização do Estado – e dos crimes contra a humanidade. Segundo a CNV esses crimes já estão previstos no Direito internacional, mas não nas leis brasileiras.

20.Desmilitarização das polícias militares estaduais

Para a CNV, a estrutura militar da Polícia Militar dos Estados e sua subordinação às Forças Armadas é uma herança do regime que não foi alterada com a Constituição de 1988. Segundo a comissão, essa estrutura não é compatível com o Estado democrático de direito e impede uma integração completa das forças policiais. O grupo recomenda que a Constituição seja alterada para desmilitarizar as polícias.

21.Extinção da Justiça Militar estadual

Com a desmilitarização das polícias dos Estados, a Justiça Militar estadual deveria ser extinta. Os assuntos relacionados às Forças Armadas seriam tratados pela Justiça Militar Federal.

22.Exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal

A comissão recomenda que se acabe com qualquer jurisdição da Justiça Militar sobre civis e que esse ramo do Judiciário tenha atribuições relacionadas apenas aos militares.

23.Supressão, na legislação, de referências discriminatórias da homossexualidade

A CNV recomendou a retirada da legislação de referências supostamente discriminatórias a homossexuais. O grupo cita como exemplo uma lei militar descreve um crime como “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.

24.Extinção do auto de resistência

A comissão recomenda que as polícias não usem mais classificações criminais como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”. Geralmente essas tipificações são usadas em casos que suspeitos são feridos ou mortos pela polícia. A CNV sugere tipificações como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”.

25.Introdução da audiência de custódia

A comissão recomenda a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da audiência de custódia. Ou seja, todo preso teria que ser apresentado a um juiz até no máximo 24 horas após sua prisão. O objetivo é dificultar a prática de abusos.

26.Manutenção dos trabalhos da CNV

A comissão entendeu que não foi possível esgotar todas as possibilidades de investigação até a sua conclusão. Por isso recomenda que um órgão permanente seja criado para continuar as apurações e verificar a implementação de medidas sugeridas.

27.Manutenção da busca por corpos

O grupo sugeriu ainda que orgãos competentes recebam os recursos necessários para continuar tentando encontrar os corpos de desaparecidos políticos – frente em que a comissão não fez grandes avanços.

28.Preservação da memória

A comissão sugere uma série de ações para preservar a memória dos abusos cometidos durante a época do regime militar. Entre elas estão a criação de um Museu da Memória, em Brasília e o tombamento de imóveis onde ocorreram abusos. Eles também querem que nomes de acusados de abusos deixem de nomear vias e logrradouros públicos.

29.Ampliação da abertura dos arquivos militares

A comissão deseja que o processo de abertura de arquivos militares relacionados ao regime expandam seu processo de abertura. O grupo estimulou ainda a realização de mais pesquisas sobre o período nas universidades.