[Colegiado apresenta o relatório final da CNV à Presidente; da esquerda para a direita na imagem: Maria Rita Kehl, Dilma Rousseff, Pedro Dallari, Paulo Sergio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha]
Por Edson Teles.
Dia 10 de dezembro de 2014 é a data na qual pela primeira vez o Estado brasileiro corrobora um documento, ainda que tímido, com um quadro mais consistente das várias e graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar. Neste dia ocorreu a divulgação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Foi preciso transcorrer três décadas entre o fim da ditadura e o Relatório para que as instituições do Estado de Direito fizessem o reconhecimento daqueles eventos históricos de violência do Estado. Com todas as suas dificuldades de trabalho e sofrendo de limitações institucionais congênitas e de sabotagem por parte das Forças Armadas e de outros setores do Estado, a CNV fez parte de um processo de lutas mais amplo do choque entre memórias antagônicas que se relacionam diretamente com a política do presente e da democracia.
Após estas décadas de retorno à democracia, consolidou-se no país uma democracia de segurança cujo projeto político é a manutenção de uma zona de conforto para determinada aristocracia política e econômica. A ideia de segurança na política democrática se expressa na manutenção de uma ordem na qual pobres, jovens, moradores da periferia, mulheres, negros, manifestantes são subjetividades construídas para serem as vítimas. Para estes, autoriza-se o uso da violência abusiva e discriminatória do Estado. O que vemos no atual Estado de Direito é a prática da tortura, do excesso e da agressão dos agentes das forças de segurança pública, os depósitos de pessoas encarceradas e um sistema judiciário viciado pela lógica de favorecimento aos proprietários. O Estado brasileiro de hoje, em termos de sua estrutura de vigilância e controle, é tão violento quanto o de ontem.
Diante deste quadro do presente, um relatório da CNV que aponte uma estrutura estatal de repressão e violência, com função clara de proteção da propriedade privada, dos acordos entre as aristocracias políticas e dos grandes grupos econômicos lança luz sobre os atuais conflitos da democracia.
As batalhas de memórias hoje evidenciadas, por um lado, com o esperneio dos militares (eles têm pedido na Justiça a suspensão da divulgação do Relatório) e de manifestantes exigindo uma intervenção militar (em número reduzido, mas com grande espaço na mídia e caminhando junto com os atos da oposição institucional tucana); e, por outro, com a mobilização de dezenas de comissões da verdade nos vários âmbitos da vida institucional e de manifestantes de movimentos sociais indicando a ligação da violência estatal de ontem com a de hoje, têm uma significação muito mais forte do que a dificultosa escrita da história dos anos 60 e 70.
Os atuais conflitos desenhados como uma disputa entre as vítimas da ditadura e uma direita militar e bestializada tem a marca de um simulacro da verdadeira batalha. O que de fato parece ocorrer neste momento de divulgação do Relatório da CNV é o registro da memória de lutas populares, de suas vitórias e derrotas na resistência a uma sociedade elitizada, discriminatória e violenta que tem no Estado um lugar de manutenção da desigualdade social.
Há uma disputa maior cuja batalha discursiva em torno do Relatório é somente a ponta mais evidente no momento. Como em qualquer processo de mudança a suspensão do percurso ordinário das coisas e fatos desperta condições para o acesso ao que até então se mostrava como impossível. O que se expõe no Relatório da CNV é a coordenação centralizada de um processo repressivo, mostrando um projeto político cujo executor é um Estado violento, estejamos em ditadura ou em um estado de direito.
Obviamente, o regime político do Estado de Direito difere profundamente da ditadura. Porém, esta grande diferença histórica, proporcionando uma série de direitos, nos permite escancarar esta luta entre projetos políticos antagônicos, neste caso colocada no campo da batalha de memórias.
As instituições tradicionais da política no país já naufragaram no processo de transição e no modelo de democracia de segurança acertada nos pactos entre esta tradição, o Estado e os proprietários do capital. O conflito de fato experimentado é entre as novas possibilidades de ação política de transformação e a necessidade de controle e eliminação delas.
***
Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão eletrônica (ebook) está à venda pela metade do preço do livro impresso. Compre nas livrarias daTravessa, Saraiva e Gato Sabido.
Edson Teles é autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível na Gato Sabido, Livraria da Travessa e outras).
***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário