Se Dilma quer ter condições de apelar às ruas em defesa de seu governo precisa antes tornar seu governo defensável
"Golpe pela democracia". Esta pitoresca expressão foi cunhada por ninguém menos que Carlos Lacerda. Golpista nato, farejador de oportunidades, tentou derrubar em uma década quatro governos democraticamente eleitos. Derrubou dois: Getúlio em 54 e Jango dez anos mais tarde. No meio-tempo, investiu contra as posses de Juscelino e do próprio Jango em 61, sem o mesmo sucesso.
O lacerdismo combinou controle patrimonialista da imprensa, avalanches de denúncias de corrupção –criando a expressão "mar de lama" contra Getúlio– e servilismo aos interesses da elite, buscando atalhos para chegar ao poder que o voto popular insistia em lhe negar.
Eis que cinquenta anos depois ressurge o lacerdismo, com bico de tucano e pintado de verde e amarelo. O maior partido de oposição ao governo Dilma, o PSDB, passou a pregar abertamente o impeachment mal passado o luto pela derrota eleitoral. Lembra Hamlet: "Economia, Horácio! Servem os pastéis do enterro, mesmo frios, na mesa do noivado".
Ainda estavam quentes, na verdade. Mesmo antes da derrota, o ex-presidente do partido José Aníbal já havia postado em sua conta no Twitter: "Se tomar posse, não pode governar" (https://twitter.com/jose_anibal/status/524697787116830721). Logo após, Aécio pediu recontagem dos votos. Em janeiro, já depois de posse, foi a vez de José Serra e Alberto Goldman, ex-governadores de São Paulo, defenderem o impeachment.
Na semana passada, FHC entrou em cena e encomendou um parecer nível porta de cadeia para o jurista Ives Gandra Martins. Vale dizer: membro da Opus Dei, apoiador da ditadura militar e direitista contumaz. Seguindo a trama, após a divulgação da queda brutal de popularidade do governo Dilma, os senadores tucanos –Aécio, inclusive– passaram a falar do sentimento social em defesa do impeachment.
O circo foi montado, com direito até a convocações apócrifas para uma mobilização nacional. Agora, coloquemos a bola no chão e façamos diretamente a pergunta: a quem interessa um impeachment de Dilma?
Ao mercado? Com Levy na Fazenda, ajuste fiscal severo e aumento de juros, a elite financeira não tem razão alguma para apoiar manobras políticas arriscadas. Estão bem, obrigado.
Ao PMDB? É verdade que a eleição de Eduardo Cunha como presidente da Câmara e o fato de Michel Temer ser o primeiro na linha sucessória alimentam especulações e despertam interesses. Mas Cunha é acima de tudo um negociante. O mais provável é que ele pratique uma extorsão sistemática do governo e inflacione o preço do apoio do PMDB, estabelecendo de quebra vetos a pautas mais progressistas. Interessa mais a ele ter a abertura de um processo de impeachment como trunfo permanente de chantagem do que utilizá-lo de fato.
E tem mais. A denúncia do procurador-geral contra os políticos envolvidos na Lava a Jato deve sair nos próximos dias. Se ela tiver um mínimo de seriedade –se não tiver sido elaborada nos porões do lacerdismo– não deixará pedra sobre pedra. Terá gente do PT, do PMDB, do PSDB e de quase todos os partidos do Congresso, sem esquecer do próprio presidente da Câmara, que já foi citado em vazamentos e guarda ligação notória com grandes empreiteiras.
A faca do impeachment ou da cassação estará no pescoço de muitos, inclusive dos lacerdistas do PSDB. Será difícil encontrar quem esteja disposto a atirar a primeira pedra. Poderá ter efeito bumerangue.
No entanto, certamente haverá agitação social. Setores da mídia continuarão apostando no emparedamento do governo, fortalecendo um clima pró-impeachment. Parte mais intrépida da elite financeira deve jogar fichas numa rendição total de Dilma no tema da Petrobras, com a revisão do modelo de partilha do pré-sal e avanço na privatização. E as camadas médias urbanas, que vestiram a camisa do antipetismo, farão sua parte com marchas de rua udenistas.
Neste cenário, quem defenderá Dilma de um desgaste irreversível? Os trabalhadores? Muito difícil. Com ataque a direitos, corte de investimentos sociais e tarifaço, o governo não deve esperar grande respaldo das ruas. A queda da popularidade revela isso de modo inequívoco.
Seria um erro pensar que a queda está associada às denúncias de corrupção, que foram uma constante durante os últimos anos. Nas eleições foram amplificadas aos quatro ventos e mesmo assim Dilma ganhou. A perda de apoio revela principalmente um sentimento popular de traição. O povo votou em mais direitos e levou ajuste fiscal.
É evidente que os movimentos populares não aceitarão golpismo. O PSDB não tem autoridade moral para falar de impeachment e sequer para acusar estelionato eleitoral. Mas também ninguém está disposto a dar um novo cheque a Dilma. O cheque dado nas eleições foi descontado na conta dos trabalhadores.
Se Dilma quer ter condições de apelar às ruas em defesa de seu governo precisa antes tornar seu governo defensável. Os movimentos enfrentarão o golpismo, mas com a mesma energia que enfrentarão as medidas impopulares do governo.
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