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terça-feira, 28 de novembro de 2017

E se não der?



A história do presidente Lula poderia ser narrada em forma de epopeia. O juiz Moro tem ajudado muito no final do enredo. Pensava ele que passaria para a História como a luta do “bem contra o mal”, sendo ele – obviamente – o “bem”. Acontece que a História é uma senhora velha, culta e que não se deixa enganar. Lula já estava nela como um dos três maiores presidentes do Brasil, e pode vir a ser o maior. De fato, Lula é o único com reais possibilidades de se tornar três vezes presidente pelo voto popular. Só não ocorrerá em caso de um segundo golpe sobre a democracia brasileira. Este segundo golpe é aposta de uma parte da elite que nunca estudou à fundo a história do mundo ou do próprio país. Lula, hoje, representa a única forma de reunificação do país. É o único candidato que teria condições de fazer voltar o jogo da democracia, também por isto sua rejeição despenca e é a menor entre todos os candidatos.
Mas e se não der? E se, em algum destes degraus que se tornam cada dia mais perigosos, o presidente ficar retido, certamente contra a sua vontade?

Esta é uma pergunta recorrente que a direita se faz e a esquerda também. E a resposta a ela coloca no mesmo lado posturas políticas antípodas, mostrando como e porque Lula é hoje o único caminho viável para a reconstrução institucional do país.

Existe uma direita doidivana e fascista, que foi apelidada por um jornalista ex-doidivano e fascista de “direita xucra”. Aquela que acha que vai matar, vai bater e vai arrasar com todos aqueles que não pensam como eles. Esta direita nunca leu um livro de História na vida e morre de medo de um dia ter que fazer. Se tivesse lido, veria que nunca a humanidade compartilhou deste pensamento. Mesmo impérios na antiguidade eram forjados em consensos e acordos e todos aqueles que quiseram se impor pela força das armas acabaram mortos. Como recurso didático sugiro procurar na internet a foto do corpo de Mussolini quando de sua morte. Para esta direita Lula não será presidente pela força das armas e da violência. Uma violência mantenedora do status quo, racista, preconceituosa, machista e ignorante. Que parte da ideia de que o mundo é plano, passa pela noção de que armas aumentam a segurança urbana e termina, com chave de ouro, dizendo que o fascismo era de esquerda e que não é bom jogar xadrez com pombos. Eu fico de má-vontade, confesso, em conversar com alguém que já jogou xadrez com pombos e usa esta experiência como argumento. Acho, também, que deveríamos ver com muito cuidado se alfafa não tem algum poder alucinógeno.

O que impressiona é que um ponto de vista semelhante é defendido pela esquerda radical. Aquela para quem o aumento da violência contra a população (seja ela econômica, política ou mesmo jurídica) nos trará a redenção revolucionária. Estes, cometem o mesmo erro de Trotsky em Brest-Litovsky (1917). Em nome de uma teorização para lá de especulativa, acreditam que “quanto pior melhor”. Da violência econômica e política máxima (a fome e a guerra) nasce a consciência de classe revolucionária. Lula seria um “agente da burguesia” por impedir este processo redentor. Trotsky foi indicado para negociar a paz com os alemães em 1917, e tudo o que conseguiu, depois de mais de 30 dias de conferência, foi sacrificar todos os sovietes e trabalhadores ucranianos, quando os generais alemães se cansaram da brilhante retórica trotskysta e mandaram suas tropas avançarem. Lênin e Stalin, que haviam advertido Trotsky do erro desta estratégia, pouco puderam fazer para salvar os ucranianos e quase não salvaram a própria revolução. Acreditar no mito a “fênix” da esquerda, que renasce das próprias cinzas, é muito bonito dentro de um escritório de universidade ou como epílogo de algum livro apologético revolucionário. Mas não passa disto.

Lula é o único candidato capaz de fazer extensas alianças. Alianças, esta palavra que deixa a esquerda ruborizada e a direita moralista desesperada é o que permite que não nos matemos nas ruas. O capital internacional sabe muito bem disto, desde a segunda guerra mundial, quando fez com que comunistas e capitalistas fizessem aliança entre si e com colonialistas para vencer o nazi-fascismo. Se não for Lula o capital no Brasil também sofrerá. Não falo aqui das figuras emblemáticas do grande capital que já estão lucrando com o golpe e provavelmente continuarão a lucrar. Falo da massa de pequenos e médios empresários que serão varridos para a pobreza assim como altos funcionários que terão sua qualidade de vida despencando por conta de uma crise política. A opção inteligente, mesmo para a direita liberal brasileira é Lula. Com pactos exigindo que o presidente ceda em alguns pontos ... enfim, alianças. Sem elas podemos nos preparar para um 2018 que não vai acabar.

“Mas alianças a que preço, Fernando?”. Ora, se você já está pensando em “preço” então é porque já temos um início de negociação. Eu acho que nem eu, nem você podemos ter a petulância de querer colocar um preço moral em alianças. Pergunte àquela mãe que perdeu vários bebês para a fome, nos anos 90, qual o preço de alianças. Pergunte olhando nos olhos dela, e não pensando em algum moralismo difuso que se baseia nos escritos do século XIX de algum europeu branco e gordo. O mundo é aqui e a vida é agora. E são muitos “preços” que devem ser colocados na mesma mesa de negociação. Por que o seu vale mais? Enquanto tiver um brasileiro passando fome ou fora da escola, qualquer coisa que impeça uma aliança é um preço alto demais a se pagar.

Se não der Lula teremos o caos. E é isto o que a esquerda tem hoje de melhor a fazer na “luta contra o golpe”. Evitar o caos.

Se formos olhar com cuidado, os quatro grupos mais atacados pelas medidas golpistas não se levantaram em momento algum. Os sem-terra e os sem-teto, em que pese liderados por pessoas articuladas e cheias de frases de efeito, nada fizeram. As mulheres e os professores, atacados diuturnamente pelo (des)governo Temer, também nada fizeram. Estes quatro grupos mostram que a sociedade brasileira não vai se levantar, não importa o tamanho da sela que lhe coloquem no lombo. Toda a “resistência” ao golpe, descontadas as dancinhas, cânticos e um carnaval fora de hora, se baseia no aumento do custo das medidas indignas ou injustas. E só isto. Tudo o que a esquerda está fazendo é aumentar o custo político para cada ação que Temer toma. Esperando a chegada de um Napoleão, um Fidel, um Lênin ou um Toussaint Louverture ...

Só há dois caminhos para o Brasil, ou a restauração institucional e democrática com um candidato que seja capaz de fazer alianças e que tenha um projeto de Brasil, ou a violência aberta e direta que se apresentará, caso a extrema direita ou a extrema esquerda queiram colocar em prática os seus – identicamente a-históricos – planos e pensamentos. Como o povo brasileiro historicamente não se levanta por coisa alguma (e a farsa de 2013 cada vez mais se mostra como tal), creio que a única solução é um reformismo lento, mas que temos que lutar que seja contínuo. Com as instituições mediando os conflitos políticos e acolhendo a violência para dentro de si evitando que ela se espraie socialmente.

Lula não é “de centro” como uma parte da esquerda está tentando colocar. Também não é “extrema esquerda” como a direita insiste em acusar. Lula, hoje, é o consenso que o Brasil pode ter. Não é Lula que precisa ser presidente. É o Brasil que precisa dele presidente. O centro político brasileiro precisa entender que hoje o consenso institucional possível, capaz de manter o jogo democrático e alguma ordem social com crescimento econômico está um pouco mais à esquerda do que eles gostariam. E a esquerda entender que as teses trostskystas de que a pressão social funda uma consciência revolucionária nunca saíram do papel. Ou peguem em armas, como fizeram Lênin, Trotsky, Stalin, Fidel e tantos outros – arcando com o custo social, psicológico e histórico disto – ou parem de bravatas infantis e passemos a consolidar uma candidatura que possa sim fazer alianças. Que possa chegar a uma agenda mínima aceitável para o país. De forma material e clara, e não idealista, ideológica ou moralista.

Cada vez que vejo alguém criticando “alianças” sem ter um fuzil na mão, penso como não aprendemos nada com a história do século XX. Respeito qualquer um dos caminhos, o do fuzil ou das alianças, mas não um “caminho do meio”. A violência é a base social humana, resta saber se você quer apostar nela aberta e crua ou institucional e cínica. E se você está disposto a pagar pelo preço de uma ou de outra escolha.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

AFINAL... O QUE É A CHINA?

Por Carlos D'Incão

Uma das perguntas mais frequentes que sempre me fazem - como professor e como marxista - é essa: “A China é comunista ou capitalista?”

A minha resposta é simples: A China é comunista. Ou, melhor dizendo, a China é um país socialista dirigido por um Partido Comunista.

A partir daí começo uma explicação mais detalhada para quem se interessa pelo tema...

Segundo a filosofia marxista, o socialismo é um período de transição para o comunismo, um período onde a classe trabalhadora assume o poder político do Estado através de seu partido de vanguarda (o Partido Comunista) e executa ações na direção de superar a sociedade de classes, junto com seus antagonismos e limitações.

O Estado - segundo o marxismo - é um conjunto de instituições burocráticas que serve, hegemonicamente, aos interesses de uma determinada classe social. Quando a classe trabalhadora assume o poder do Estado, ela deve iniciar um processo de superação dessa formação social primitiva, pautada na exploração de uma classe social sobre as demais, cuja sociedade capitalista é sua última expressão.

Esse processo não é nada fácil, pois além de se realizar reformas estruturais no campo econômico, político e administrativo, esse novo Estado precisa implementar uma quantidade enorme de ações que visem a superação de todo um universo que compunha a “antiga sociedade”, como o combate às diferenças de gênero, os preconceitos e aspirações burguesas, as filosofias e crendices do passado, as diversas formas de opressão existentes em âmbitos privados, etc.

Por fim, o Estado socialista ainda viverá por um processo de agressão externa dos demais países capitalistas que visam sua destruição através do boicote, da sabotagem e - se possível - pela intervenção armada. Tudo isso porque a existência de um Estado socialista é, por si só, um péssimo exemplo aos povos oprimidos de todo o planeta.

Após a superação desses desafios, podemos dizer que uma nova sociedade começa a existir. Uma sociedade onde todos os homens e mulheres vivem em paz e são livres para se desenvolverem de acordo com suas aspirações e potencialidades. Aqui já não existirá um Estado a serviço de uma classe, pois não existem mais classes... o que existe é uma sociedade plural e rica, onde ninguém possui o direito de explorar o trabalho alheio.

Nesse momento, o Estado - no conceito marxista - deixa de existir. E a esse novo estágio chamamos de comunismo. Isso não significa, obviamente, que houve a supressão da administração pública e muito menos das numerosas instituições que são fundamentais para a existência de qualquer vida em sociedade.

O Estado deixa de existir no sentido de que já não existe uma sociedade de classes. Diferentemente dos anarquistas, os comunistas não acreditam que a simples existência de instituições constituídas de divisões e hierarquias “corrompem a alma dos Homens”. O comunismo é a superação do capitalismo por apropriação, é uma sociedade simplesmente mais evoluída.

A rigor nenhum país no Mundo é ou já foi comunista. A URSS, por exemplo, viveu ao longo de toda a sua existência sitiada pelos países capitalistas. Sofreu com uma guerra civil, com a invasão de mais de dez países sobre seu território, com uma série de boicotes e sabotagens, com um ataque monstruoso da Alemanha nazista e com uma guerra fria bilionária contra os EUA. Enfim, nunca teve condições de sonhar em evoluir para o comunismo...

E a China também não chegou nesse estágio comunista. É ainda um país socialista.

Mas alguns ainda possuem dúvidas e perguntam: “Como a China pode ser socialista se lá há grandes empresas capitalistas e relações de trabalho também capitalistas? Ainda que isso ocorra apenas em determinadas áreas, isso não retiraria o título ‘socialista’ da China?”

Em hipótese alguma.

Em primeiro lugar, fazer concessões capitalistas dentro do socialismo não é algo inventado pela China. Lênin e o Partido Bolchevique executou esse tipo de ação logo após a Guerra Civil na URSS. Essa experiência ficou conhecida como NEP (Nova Política Econômica) e visou reestruturar a economia da URSS em um período de colapso causado pela guerra.

A NEP acabou ajudando na superação dessa crise, mas acabou sendo substituída pelos planos econômicos planificados conduzidos pelo próprio Estado. Isso ocorreu porque o boicote mundial imposto contra a URSS impedia a entrada de qualquer capital estrangeiro... O Estado socialista soviético teve, enfim, que estruturar novas formas para estabilizar e fazer crescer sua economia...

Aqui podemos chegar a uma conclusão muito importante: para os marxistas, o caminho para o socialismo e para o comunismo não é um trilho, mas uma trilha. Não existe um só caminho e uma só fórmula engessada. Há, na verdade, vários caminhos para se chegar ao socialismo e qualquer teoria revolucionária-mecanicista é necessariamente anti-marxista e fadada ao fracasso, inclusive na análise histórica.

Voltemos agora à China.

A China adotou, a partir da década de 70, reformas econômicas que permitiram a abertura de seu país para investimentos capitalistas. Tudo foi feito de forma organizada e planejada. O que devemos perguntar aqui é: quanto poder ou influência política ganhou o capital estrangeiro na China, desde a sua abertura?

Resposta: Nenhum. Ao longo de todas essas décadas o Estado permaneceu sob o poder da classe trabalhadora chinesa e seu Partido Comunista.

Outra pergunta: Qual foi o impacto social que a entrada desse capital ocasionou?

Resposta: ele financiou a modernização do campo, industrializou gigantescas regiões que são exclusivamente de economia estatal, retirou da miséria mais de 300 milhões de chineses, colaborou para a implementação de um sistema de saúde público universal, ajudou a estruturar, para todos os chineses, um sistema educacional público que vai da educação infantil até a universidade, financiou um sistema habitacional para mais de um bilhão de cidadãos e fez a economia da China crescer 90 vezes até se tornar, no início do século XXI, a segunda maior economia do Mundo.

Bom... Está evidente aqui que o Estado Chinês usou o capital estrangeiro para o desenvolvimento de sua própria força produtiva, isto é, em benefício do seu próprio povo. Antes da Revolução de 1949 a China tinha uma expectativa de vida que não passava dos 60 anos. Hoje é um país onde o povo tem uma das maiores expectativas de vida. E... (pasmem) lá todo mundo se aposenta...

Desde a abertura da economia chinesa, o Mundo capitalista viveu 12 crises e 2 depressões econômicas. A China cresceu ao longo de todo esse período de maneira ininterrupta, sem nunca registrar um único período de recessão. Sua média anual de crescimento é de quase 10%...

Está aqui mais uma prova, nesse caso científica, de que ali não existe capitalismo. O que existe na China é uma economia socialista com concessões ao capital externo.

E não se trata de qualquer capital... É um capital produtivo, que gera emprego, renda, sem especulação e que é regrado por leis e contratos socialistas que o obriga a se tornar estatal após 20 anos, ficando a China inclusive com o direito de uso intelectual de suas invenções.

Por favor... que alguém me aponte no Mundo onde existe um país capitalista com todas essas características até aqui elencadas...

Mas... Alguém poderia perguntar: “Se a China é socialista, por que ela não sofre ataques como a URSS e Cuba? A China é inclusive a maior parceira econômica dos EUA...”

Vejamos. “A China não sofre ataques”... Sim... É verdade... Porém... Talvez isso seja porque ela possui armas nucleares, o maior exército do mundo (2,3 milhões de soldados) e gaste nominalmente 400 bilhões de dólares por ano em armas (o equivalente a quase 50 bilhões de dólares no mercado internacional). Se a China fosse “amiguinha” dos países capitalistas poderia ser tão desarmada como o Japão... Mas a China socialista não é, nunca foi e nunca será amiga do capital.

Agora, no que diz respeito à parceria econômica com os EUA, é preciso salientar que hoje a maior dívida pública dos EUA é com a China e ela fornece aos EUA a maior parte de sua tecnologia de ponta. Em suma, o que existe aqui é a dependência dos EUA em relação à China e não o contrário... Aos poucos a China está engolindo - a olhos nus - a suposta maior potência econômica do Mundo...

Por fim, alguém poderia dizer: “Mas me disseram que o socialismo acabou e na Rede Globo eu assisti que a China na verdade é um país capitalista com um partido comunista de mentirinha...”

Pois é... A questão é: quem é ingênuo a ponto de achar que os meios de comunicação controlados pela burguesia iriam falar outra coisa? Claro que vão dizer que o socialismo fracassou! E se a segunda maior economia do mundo é socialista... Claro que vão dizer que essa economia não é socialista!!! Vão dizer que é capitalista!!! Isso tem um nome: propaganda ideológica.

Afinal, é importante que nos países capitalistas os trabalhadores acreditem que não existe nenhum outro modelo econômico que funcione, que não o capitalista.

É importante que os trabalhadores acreditem que o socialismo não existe mais... E como pode ter alguém que possa achar que a China é pelo menos “em parte socialista”, vão dizer que o socialismo existe lá sob formas desumanas... através da censura, ditadura, opressão, etc... e o lado bom da China - que é a prosperidade econômica - surpresa! é fruto do capitalismo!

Porém, nada disso se sustenta perante os fatos... A China é um país socialista ponto final. E o Mundo capitalista está se curvando, cada dia que passa, um pouquinho mais ao seu poder econômico.

O último Congresso do Partido Comunista Chinês estabeleceu que a partir de 2025 a China não aceitará mais nenhuma forma de capital financeiro e até 2045 pretende ter uma economia 100% estabelecida em riquezas reais. Bem capitalista isso né...?

Mais uma vez, é preciso frisar que existem vários caminhos para o socialismo e para o comunismo. A China está simplesmente trilhando o seu próprio caminho.... Negar o carácter socialista da China só pode ser oportunismo ou ignorância...

O problema é que não é raro ouvir gente da esquerda brasileira falando que a China é capitalista... E sem perceber fazem uma enorme propaganda para o capitalismo... como se esse sistema fosse capaz de atingir as realizações que o sistema socialista chinês alcança todo ano... além disso acabam por desinformar seus interlocutores...

Já é chegada a hora de abrirmos um pouco mais os olhos e vermos o Mundo como ele é de fato: é um Mundo bem diferente daquele que está na televisão... É um Mundo onde os países capitalistas estão agonizando em uma crise infindável enquanto o país mais populoso do Mundo, o “planeta China” cresce economicamente cada vez mais, a cada ano.

Esse Mundo real, que não é mostrado pelos inimigos dos trabalhadores, nos aponta que o socialismo é o futuro de toda a humanidade. E esse é um futuro de prosperidade, paz, liberdade e sabedoria.

sábado, 4 de novembro de 2017

Enquanto Temer escapava de novo, 'liberais' tentavam cancelar palestra

Vladimir Safatle

Nos próximos dias 7, 8 e 9 de novembro, o Sesc Pompeia abrigará um simpósio internacional intitulado "Os Fins da Democracia: Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca pela Soberania Popular".

Resultado de uma associação entre a Universidade da Califórnia - Berkeley e a Universidade de São Paulo, através de seu Departamento de Filosofia, o seminário é fruto das ações de um consórcio internacional composto por acadêmicos dos mais diversos países (EUA, Brasil, Chile, Turquia, França, Argentina, Alemanha, Itália, entre outros) dispostos a discutir e pensar temas centrais para a compreensão dos desafios imanentes a nossas sociedades contemporâneas.

O evento é um exemplo bem sucedido de recusa da universidade em se acomodar à condição de "gueto de luxo" (e não foi por outra razão que decidimos levar o simpósio para fora do campus da USP) e de internacionalização da universidade brasileira.

No entanto, neste exato momento, circula uma petição para o cancelamento do simpósio, assinada por centenas de milhares de pessoas (além de vários robôs, como é de praxe). O motivo principal é a presença de Judith Butler entre os organizadores. Notem que a petição não conclama a manifestação na porta do Sesc, ela pede o puro e simples cancelamento do evento.

Entre os signatários e estimuladores estão vários movimentos que se dizem "liberais". Bem, para um país onde, até pouco tempo, era possível ser liberal e escravocrata, não é estranho descobrir liberais que não levam a sério princípios elementares de liberdade de expressão e pensamento. Mais uma prova de que "liberal brasileiro" é como, segundo Marx (não Karl, mas Groucho), "inteligência militar": uma contradição em termos.

Mas por que Judith Butler não deveria falar? Por acaso ela elogiou torturador, afirmou que só não estuprava uma mulher porque ela não merecia, justificou terrorismo de Estado ou comparou negros a animais que se pesam por arroba? Não, até porque nada disso é realmente um problema para os assinantes de tal petição.

O problema é ela discutir a naturalidade de identidades de gênero, lembrar —à sua maneira—, que a anatomia não é o destino, auxiliar a mudança de percepção social em relação àqueles que não encontram lugar em um binarismo estrito.

Agora, nossas famílias serão destruídas (como se elas não se destruíssem sozinhas), nossas crianças serão pervertidas (como se as crianças já não fossem, como lembrava Freud, perversos polimorfos) e teremos que conviver com pessoas que não temerão afirmar suas formas de gozo (suprema afronta).

A primeira reação diante de tal disparate foi ver nela uma clássica manobra diversionista.

Todos esses grupos e indivíduos saíram às ruas para "protestar contra a corrupção" e prometer um país em franco crescimento, reconciliado com os "mercados" após o impeachment do antigo governo.

E eis que no dia em que Temer, governando sob os escombros da pauperização social, escapava de seu segundo processo graças à compra de votos no Congresso Nacional, todos eles se mobilizam novamente para... pedir o cancelamento de uma palestra de Judith Butler. Fantástico, não?

Ou seja, diante da clara expressão de terem levado o Brasil a um embuste, de terem zombado do povo brasileiro quando gritavam contra a corrupção, eles agora procuram se associar à nata do conservadorismo religioso para jogar uma cortina de fumaça e apontar o dedo contra intelectuais e artistas.

Mas então veio a segunda reação, pois, mesmo que o diversionismo seja real, ele não explica tudo.

De fato, uma sociedade na qual sujeitos não se submetem mais ao controle de suas expressões de gozo e de identidade, uma sociedade na qual a visibilidade dos corpos e do desejo não se dobra mais à culpa tem algo de intolerável para alguns.

A consciência da contingência de nossas normas sociais e a quebra da ilusão de que a natureza fundamenta nossas formas de vida: não é este o início de toda liberdade efetiva?

Nesse sentido, estas pessoas sabem muito bem o que fazem. Pois elas sabem que a paralisia da força de transformação nos modos de existência é a chave para a preservação das estruturas macroinstitucionais, mesmo que estas estejam degradadas.

De toda forma, gostaria de aproveitar essa oportunidade e agradecer a eles, do fundo do coração. O que mais poderíamos querer como prova da pertinência de discutir "os fins da democracia" do que uma manifestação, vinda dos setores mais obscurantistas da sociedade e suas redes internacionais, contra a própria realização de nosso simpósio?

Aqueles que se compraziam em dizer que a universidade vive de costas para a sociedade, que ela perdeu toda a relevância e é habitada por nefelibatas, deveriam nuançar suas avaliações.

domingo, 15 de outubro de 2017

Por moralismo torpe, pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar a arte

Jorge Coli

Refletir pressupõe não só ter consciência de si mesmo, mas também consciência do outro. Com a reflexão, o pensamento inclui, em seu exame, aquilo que o outro é. Ao levar o outro e suas razões em conta, o pensamento original se modifica, desviando-se da direção primitiva. A etimologia ensina que flexus, em latim, de onde vem a reflexão, quer dizer vergar, dobrar. Ou seja, abandonar a linha reta na qual caminhavam as convicções.

A reflexão pertence ao domínio da consciência e do conceito. Por exemplo, se eu vivesse no século 17, estaria convencido de que a Terra é fixa no centro do universo. Mas alguém (no caso, Galileu) traz para mim argumentos e provas contrárias a essa ideia. Então reflito, mudo minha concepção. Se, depois de conhecer as razões de Galileu, eu me mantivesse na convicção anterior, permaneceria em erro.

Mas existe um modo de reflexão que não é abstrato e vai além das argumentações claras. Este modo, bem mais complexo do que o primeiro, é proporcionado pela arte.

A arte não estimula em nós apenas as faculdades racionais. Causa impactos, provocando modificações em nossa sensibilidade e nossas emoções. Atua de modo profundo em nosso cerne, nossas entranhas, nossas contradições, nossos desejos e nossos medos.

Nunca é simples e nítida. Pode ser bela, sinistra, erótica, repulsiva e muito mais. Ultrapassa sempre as intenções do artista, mesmo as mais claras e racionais; pode mesmo negá-las e contradizê-las.

A arte, tantas vezes, nos choca. Abrigávamos um conjunto de sentimentos pacificados e, de repente, uma obra vem perturbá-los. Nós ou a recusamos, e permanecemos imóveis em nós mesmos, ou a aceitamos, e ampliamos os poderes compreensivos de nossa sensibilidade.

Há cerca de 2.400 anos, os habitantes da ilha de Cos encomendaram a Praxíteles uma estátua para o templo de Vênus. Ele figurou a deusa despida, preparando-se para o banho de purificação. Tomou, diz-se, a linda cortesã Frineia como modelo. Ora, as esculturas gregas não tinham o hábito de figurar mulheres sem roupa, e os sacerdotes recusaram a obra por ser indecente. Está aí um caso antigo e célebre de escândalo moralista.

Mais lúcidos, os habitantes de Cnido compraram a estátua, que se impôs logo como obra-prima absoluta. Era erótica a Vênus de Praxíteles? Era. Conta-se que um jovem grego, alucinado pela beleza da escultura, escondeu-se no templo para —como dizer?— gozar solitariamente daquela soberba sensualidade.

Não preciso aqui enumerar os escândalos, sexuais ou não, que as obras de arte provocaram, nem seria possível contar todos. É o papel delas: assim como o conhecimento, a arte é subversiva.

Sabemos, os regimes totalitários e os fundamentalismos religiosos não gostam de inquietações que perturbem o pensamento único. Odeiam contradições e dúvidas. Por isso, controlam o conhecimento e submetem a arte à censura.

No Brasil, hoje, pessoas que se recusam a pensar o outro, que se negam a entender o que lhes escapa, invadem museus em nome de um moralismo torpe (o MAM-SP, instituição contra a qual investiu uma horda de trogloditas) e atacam exposições que incomodam.

Pior ainda, instauram a autocensura, pois financiadores e instituições temem escândalos. Isso já ocorreu: não apenas a exposição Queermuseufoi abreviada em Porto Alegre, como o Museu de Arte do Rio, o MAR, que deveria recebê-la, renunciou, cedendo às pressões da prefeitura carioca.

Ao mesmo tempo, o Theatro Municipal do Rio, entidade pública, em princípio laica, anuncia um programa com o seguinte conteúdo: "O Renascer Praise nasceu de duas vontades que combinaram: a de Deus, em querer abençoar o povo e habitar no meio dele (porque a Bíblia diz que Deus habita no meio dos louvores), e a vontade da Igreja Renascer e da bispa Sonia, em adorar ao Senhor de todas as formas, com todos os instrumentos e ritmos".

Simultaneamente, multiplicam-se as perseguições às religiões afro-brasileiras.

Em nome do moralismo e da fé, essas pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar os poderes da arte. Quanto mais submissos, melhor. Têm base política impressionante e poder gigantesco. Aceleraram de dois anos para cá. Em meio à corrupção desenfreada, utilizam-se de instintos conservadores primários para manipulações e alianças políticas que lhes permitem subir cada vez mais.

Parece-me claro: se nada for feito, logo viveremos sob uma teocracia fundamentalista cujo obscurantismo se iguala à sem-vergonhice mais sórdida e oportunista.


Jorge Coli
É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify).

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Che, símbolo da luta humanista e socialista



Por João Pedro Stedile, na revista Caros Amigos:

No dia 9 de outubro, se completam 50 anos do assassinato de Che Guevarra pelas forças do exército boliviano. Ele foi preso, ferido dia 8 de outubro de 1967, e fuzilado no outro dia, por ordens da CIA, na parede externa de uma pequena escola rural, do povoado de La Higuera, município de Valle Grande, Bolivia.

Estive lá nas celebrações do 40 aniversário. Não consegui entender como o Che havia se embrenhado naquelas montanhas a 3, 4 mil metros de altura, despovoadas, sem organização de massa para lhe dar apoio. Hoje, o local parou no tempo e a miséria na região continua igual. Mesmo com um governo popular, podemos constatar que construir uma sociedade igualitária, justa, pós-capitalista é uma missão para décadas de acumulo de forças do povo organizado. Não basta apenas chegar ao governo, como a esquerda se iludiu.

A imagem do Che e seu legado também sempre foram muito polêmicos e manipulados pela esquerda e pela direita. Na esquerda, o estrago maior foi a narrativa do francês Regis Debray, que difundiu um livro equivocado, resumindo as idéias do Che, à ações de heroísmo de um pequeno grupo de destemidos lutadores que adotaram a tática da guerrilha para derrotar os opressores.

Em nenhum país aconteceu isso, muito menos na vitoria do povo cubano em 1959.

O legado de Che é muito mais importante e por isso, passados 50 anos de seu martírio, ele está presente em praticamente todo mundo e em todas as gerações.

Che não foi um aventureiro, guerrilheiro ou herói solitário.

Che viveu com coerência, todos os dias, as idéias que pregou, como declarou sua filha em documentário. Mas alem da coerência, a sua prática de vida nos deixou muitos exemplos. 

Defendeu sempre a necessidade do estudo, para que a juventude, a militância, todos, dominassem os conhecimentos científicos, para podermos resolver mais rápido os problemas do povo e termos uma vida mais lúcida e digna para todos. Repetia a Martí, “Só o conhecimento liberta verdadeiramente as pessoas!”. Defendeu a vida simples e o espírito de sacrifício entre os dirigentes. Ser o primeiro na fila do trabalho e o ultimo na fila dos benefícios. Prática que os dirigentes de partidos de esquerda abandonaram há anos. Defendeu a solidariedade e o internacionalismo. Dizia, “É necessário indignar-se contra qualquer injustiça, praticada contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. Se defenderes esse princípio, então somos companheiros”, escreveu a uma guevarra uruguaia, que lhe perguntava se eram parentes.

Participou da revolução cubana e ocupou todos os cargos possíveis,comandante das forças armadas, ministro, presidente do Banco Central. E mesmo assim, optou por sua vocação missionária e foi atuar no Congo, na África e depois na Bolívia.

Ajudou a articular países e governos populares numa frente anti-imperialista, que resultou na organização da OSPAAL.

Em todas suas atividades e gestos, sempre foi um humanista. E via no socialismo apenas um meio das pessoas serem mais justas, mais iguais e mais sábias.

Defendeu idéias polemicas na construção do socialismo cubano, buscando na industrialização e na independência política a forma de resolver mais rápido os problemas do povo.

Tinha apenas 39 anos quando assassinado. Mas parece uma vida de décadas.

Por tudo isso, é que a direita, os capitalistas, lhe devotam tanto ódio, porque sabem que seu legado seguirá influenciando milhões de jovens e trabalhadores. E um dia suas idéias e práticas serão hegemônicas.

sábado, 23 de setembro de 2017

As Forças Armadas não agem contra o 'caos', mas são parte fundamental dele



Talvez não exista momento mais propício do que este para se lembrar da frase de Adorno e Horkheimer, para quem há horas em que não há nada mais estúpido do que ser inteligente. A frase se referia à incapacidade de setores da sociedade alemã de encararem claramente os signos de ascensão do nazismo no começo dos anos 1930 e pararem de procurar explicações sutis e inteligentes sobre a impossibilidade de o pior ocorrer. Dificilmente raciocínio dessa natureza não se aplicaria ao Brasil atual.

De fato, nosso país tem ao menos a virtude da clareza. E foi com a clareza a guiar seus olhos redentores que o general Antonio Hamilton Mourão revelou aos brasileiros que as Forças Armadas têm um golpe militar preparado, que há uma conspiração em marcha a fim de destituir o poder civil. Para mostrar que não se tratava de uma bravata que mereceria a mais dura das punições, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas descartou qualquer medida e ainda foi à televisão tecer loas a ditaduras e lembrar que, sim, as Forças Armadas podem intervir se o "caos" for iminente.

O "caos" em questão não é a instauração de um governo ilegal e brutalizado saído dos porões das casernas. Ao que parece, "caos" seria a situação atual de corrupção generalizada. Só que alguém poderia explicar à população de qual delírio saiu a crença de que as Forças Armadas brasileiras têm alguma moral para prometer redenção moral do país?

Que se saiba, quando seus pares tomaram de assalto o Palácio do Planalto, cresceram à sua sombra grandezas morais do quilate de José Sarney, Paulo Maluf, Antonio Carlos Magalhães: todos pilares da ditadura. Enquanto eles estavam a atirar e censurar descontentes, o Brasil foi assolado por casos de corrupção como Capemi, Coroa Brastel, Brasilinvest, Paulipetro, grupo Delfin, projeto Jari, entre vários outros. Isso mesmo em um ambiente marcado pela censura e pela violência arbitrária.

De toda forma, como esperar moralidade de uma instituição que nunca viu maiores problemas em abrigar torturadores, estupradores, ocultadores de cadáveres, operadores de terrorismo de Estado, entre tantas outras grandes ações morais? As Forças Armadas brasileiras nunca tomaram distância dessas pessoas, expondo à nação um mea-culpa franco.

Ao contrário, elas os defenderam, os protegeram, até hoje. Que, ao menos, elas não venham oferecer ao país o espetáculo patético de aparecerem à cena da vida pública como defensoras de um renascimento moral feito, exatamente, pelas mãos de imoralistas. As Forças Armadas nunca foram uma garantia contra o "caos". Elas foram parte fundamental do caos.

É verdade que setores da sociedade civil sonham com mais um golpe como forma de esconder o desgoverno que eles mesmos produziram. Há setores do empresariado nacional que articulam abertamente nesse sentido, sonhando como isto não terem que se confrontar mais com uma população que luta pelos seus interesses. Para tanto, eles apelam ao artigo 142 da Constituição de 1988.

Este artigo fora, desde o início, uma aberração legislativa imposta pelos próprios militares. Ele legalizava golpes de Estado, da mesma forma que o artigo 41 da República de Weimar, que versava sobre o estado de emergência, permitiu a ascensão da estrutura institucional do nazismo. Segundo o artigo, se qualquer poder chamar as Forças Armadas para garantirem a ordem, se digamos o sr. Rodrigo Maia fizer um apelo às Forças Armadas porque há "caos" em demasia, o golpe está legalizado. Ou seja, é verdade, nossa Constituição tinha uma bomba-relógio no seu seio. Bomba pronta a explodi-la, como agora se percebe.

Contra essa marcha da insanidade, há de se lembrar que, se chegamos ao ponto no qual um general na ativa pode expor abertamente que conspira contra o poder civil, então cabe àqueles que entendem não terem nascido para serem subjugados pela tirania, que não estão dispostos a abrir mão do resto de liberdade que ainda têm para se submeter a mais uma das infindáveis juntas latino-americanas, prepararem-se para exercer seu mais profundo direito: o direito de resistência armada contra a tirania.

Que os liberais se lembrem de John Locke e de seu "Segundo Tratado sobre o Governo". Que os protestantes se lembrem de Calvino e de sua "Instituição da Religião Cristã". E que o resto se lembre que a liberdade se defende de forma incondicional.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Não haverá 2018






No Brasil, toda a reflexão e ação política parece atualmente ter os olhos única e exclusivamente voltados para o ano de 2018.

Como se o país pudesse voltar a uma normalidade mínima depois de ficar dois anos nas mãos de um ocupante do lugar de presidente da República com perfil mais adaptado a trabalhar em filmes de aprendiz de gângsteres e com aceitação popular zero, de um Congresso Nacional composto de indiciados e oligarcas e de um Poder Judiciário exímio em operar com decisões completamente contraditórias de acordo com os interesses imediatos do juiz que julga.

No entanto há de se trabalhar com uma hipótese de grande plausibilidade, a saber, a de que 2018 não existirá.

A cada dia que passa fica claro que o Brasil está atualmente submetido a uma espécie de guerra civil capitaneada por aqueles que tomaram de assalto o Estado brasileiro contra os setores mais desfavorecidos da população. Sim, uma guerra civil silenciosa, mas tão brutal quanto as guerras abertas. Pois esta é uma guerra de acumulação e espoliação, de vida e de morte.

De um lado, um sistema financeiro com lucros inacreditáveis para um país que se diz em crise, sistema este com amplo controle das políticas do Estado. Junto a ele, a elite rentista do país com seus ganhos intocados, sua capacidade de proteger seus rendimentos de qualquer forma de tributação.

Na linha de frente, representando seus interesses, uma casta de políticos degradados que criam leis e usam deliberadamente o dinheiro público para se blindar, que mudam regras eleitorais para continuarem onde estão e defenderem os verdadeiros donos do poder.

Do outro, temos a massa da população empobrecida e agora submetida a um sistema de trabalho que retira o mínimo de garantias de segurança construídas nesse país, que faz aposentadoria se transformar em uma relíquia a nunca mais ser vista. Uma massa que sentirá rapidamente que ela tem apenas duas escolhas: ou a morte econômica ou a submissão ao patronato.

Junto a elas, a população que se vê humilhada da forma mais brutal por prefeitos que marcam crianças na escola para que elas não comam duas refeições, que violentam moradores de rua com jatos de água nos dias frios para que eles sumam, governadores que destroem a céu aberto universidades que não podem mais começar seu ano letivo por falta de verbas.

Toda essa população submetida a uma força policial que atira em manifestantes, invade reuniões públicas sem que nenhuma punição ocorra.

Seria suprema ingenuidade acreditar que esses que agora nos governam, esses senhores de uma guerra civil não declarada, esses mesmos que têm consciência absoluta de que nunca ganhariam uma eleição majoritária no Brasil para impor suas políticas aceitem ir embora de bom grado em 2018.

Quem deu um golpe parlamentar tão tosco e primário quanto o brasileiro (lembra-se das "pedaladas fiscais"? Quem mais foi punido neste país? Só o antigo governo federal dela se serviu?) não conta em sair do poder em 2018.

Só que há várias formas de 2018 não existir. A primeira delas e assistirmos uma eleição "bielorrussa". Trata-se de uma eleição na qual você impede de concorrer todos aqueles que têm chance de ganhar, mas que não fazem imediatamente parte do núcleo hegemônico do poder atual. Caso essa saída não dê certo, teremos uma mudança mais radical da estrutura do poder, ou seja, uma eliminação da eleição presidencial como espaço possível de mudança.

Então aparecerá a velha carta do parlamentarismo: o sonho de consumo das oligarquias locais que veriam enfim seu acesso direto ao poder central. Pois não confundam o parlamento brasileiro com o sueco. Entre nós, o Congresso sempre foi a caixa de ressonância de interesses oligárquicos com seus casuísmos eleitorais.

Por fim, se nenhuma das duas opções vingar, não há de se descartar uma guinada mais explicitamente autoritária. Não, esta hipótese não pode ser descartada por nenhum analista minimamente honesto da realidade nacional.

Neste sentido, pautar todo debate político atual a partir do que fazer em 2018 é simplesmente uma armadilha para nos prender em uma batalha que não ocorrerá, para nos obrigar a naturalizar mais uma vez uma forma de fazer política, com seus "banhos de Realpolitik", razão mesma do fracasso da Nova República e dos consórcios de poder que a geriram.

Melhor seria se estivéssemos envolvidos em um luta clara pela recusa dos modelos de "governabilidade" que nos destruíram.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

NAZISMO, FASCISMO E MARXISMO: UM POUCO DE HISTÓRIA

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Vivemos a Era da Pós-verdade, que consiste na disseminação de mentiras suportadas por argumentos forjados e interpretação equivocada ou propositalmente distorcida de contextos históricos e sociais. Aqueles que as disseminam o fazem por profunda ignorância sobre o assunto abordado ou por desonestidade intelectual crua.

Nas esteira das mentiras inconsistentes e absurdas - largamente difundidas por aqueles que querem crer em despautérios -, está a categorização das ideologias fascista e nazista como pensamento e prática das esquerdas. Esta afirmação parte de profundo desconhecimento sobre o tema ou mera má-fé?

Bem, como acredito na educação crítica como meio de transformação e desenvolvimento humano das pessoas, penso que importante tocar neste tema. Para se compreender a origem do fascismo e do nazismo é preciso conhecer contextos históricos, sociais e econômicos, que permitiram que estas ideologias brotassem e se consolidassem, nas primeiras décadas do século passado.

Durante a Primeira Grande Guerra houve maior intervenção e controle do Estado em praticamente todas as áreas, não obstante, com grande relevância na economia. A este processo, que recrudesceu na Europa durante o período após a Primeira Grande Guerra Mundial, denominamos Ordenação Estatal, resultado da necessidade de reconstrução de alguns países e da recuperação de suas economias.

As recorrentes crises econômicas acentuaram as pressões sociais e produziram transformações na conjuntura política. Neste período, o anarco-sindicalismo se tornou muito forte na Itália, especialmente por representar as reivindicações dos trabalhadores. O Partido Comunista Italiano também havia se organizado no país e tinha, por sua vez, fortes ligações com o socialismo da Revolução Bolchevique de 1917.

A monarquia parlamentar italiana era liderada pelo Primeiro Ministro, de matriz liberal, Giolitti. O principal partido que fazia oposição a Giolitti era o Partido Socialista Italiano (PSI), do qual Benito Mussolini foi membro até o momento em que apoiou a entrada da Itália na Primeira Guerra. Tal gesto contrariou as decisões do PSI, e Mussolini foi expulso da organização.

Em 1919, Benito Mussolini articulou uma nova organização de caráter paramilitar, formada por muitos ex-combatentes. Inicialmente, a batizaram de Fascio de combatimento, que remetia ao feixe de lictor (fascio de littorio), símbolo do poder do antigo Império Romano.

Os integrantes do Fascio vestiam uniformes paramilitares, com destaque para as camisas negras. Em 1920, Mussolini transformou essa organização em partido político, o Partido Nacional Fascista, que disputou as eleições no ano seguinte, ocupando 20 cargos para deputados. Em 1922, os fascistas promoveram a famosa Marcha sobre Roma, nos dias 26 e 27 de outubro, cujo objetivo era forçar o rei Vitor Emanuel III a nomear Mussolini Primeiro Ministro. O objetivo foi conquistado, no dia 30, o rei, cedendo às pressões, o encarregou de formar um novo governo para Itália.

À época, Mussolini foi uma uma espécie de terceira via, que divergiu do fracassado liberalismo italiano e se contrapôs violentamente ao socialismo e ao anarco-sindicalismo. Fraudou as eleições para controlar o Parlamento, mandou eliminar os adversários - entre eles o deputado comunista Giácomo Matteotti - suprimiu a liberdade de imprensa e proibiu os partidos políticos, exceto o Partido Fascista, tornando-se o Duce (O Guia) de uma sórdida ditadura.

O Estado fascista se construiu forte e centralizado, totalitário, corporativista, de caráter nacionalista, anticomunista e militarmente expansionista. Uma das muitas contradições é que, apesar de anti-liberal, o fascismo se aliou a alguns empresários e banqueiros italianos e recuperou a economia investindo em grandes obras públicas.

Segundo De Felice, a consolidação da ideologia fascista se deu por intermédio de uma concepção mística da política e da vida em geral; da exaltação da coletividade nacional - ao contrário do marxismo que pregava o internacionalismo -, e do indivíduo incomum (o mito do chefe); de um regime político de massa, baseado no sistema de partido único, da milícia partidária e do controle das fontes de informação e propaganda; de um revolucionarismo verbal e conservadorismo de fundo; da ascensão da pequena e média burguesia às classes dirigentes; da criação e valorização de forte aparato militar, e do controle da economia pelo Estado, porém, com objetivo de concentrar as riquezas nas classes dirigentes e não de distribuí-la.

Com relação à Alemanha, a derrota na Primeira Guerra Mundial conduziu à extinção da monarquia e a instalação de uma República Federativa Parlamentarista, a República de Weimar. O caos do pós-guerra, gerado principalmente pelas rigorosas condições impostas pelo Tratado de Versalhes, que submeteu o país à desmilitarização, a perda de territórios e a altas indenizações aos países vencedores, se intensificou após 1919.

O momento crítico da República de Weimar ocorreu em 1923, quando a inflação assumiu proporções dramáticas. Apesar dos grandes industriais e proprietários de terra a tolerarem, pois se favoreciam com a desvalorização monetária que permitia liquidarem suas dividas com o Estado, a hiperinflação solapou as classes trabalhadoras. Não obstante, França e Bélgica ocuparam a região industrial do rio Ruhr, com o pretexto de garantir a extração e o fornecimento de matérias-primas como parte do pagamento da divida de indenização de guerra, aprofundando ainda mais a crise alemã.

A miséria e o clima de convulsão levaram a greves gerais, manifestações de rua e até sabotagens, visando a queda do governo. Neste cenário, Adolf Hitler, um ex-combatente condecorado do exército alemão, de ideias nacionalistas, antissemitas, anticomunistas e revanchistas, bem como dono de excelente oratória, toma para si o Partido dos Trabalhadores Alemães, fundado por Anton Drexler. Apesar do nome, o partido tinha postura antissemita e anticomunista, mas com o objetivo de angariar massas o rebatizaram com o nome de Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, conhecido pela sigla NAZI.

Aproveitando-se do ambiente conturbado, Hitler tentou um golpe de estado (o Putsche de Munique, em 1923) e foi preso. Na prisão escreveu o primeiro volume de Mein kämpf (Minha luta). Nesta obra salta aos olhos o antissemitismo e o anticomunismo de Hitler. A ideologia nazista preconizava a supremacia racial ariana. Portanto, tinha por objetivo a construção de uma sociedade fortemente hierarquizada, em que os privilégios dos arianos deveriam ser garantidos por sua superioridade racial (embasaram-se no darwinismo social).

Em Mein kämpf, Hitler desonestamente caracteriza o marxismo como uma ideologia judaica - a família de Karl Marx era de origem judaica -, sendo assim, seria imprescindível combatê-la.

Separei alguns trechos do livro para ilustrar melhor suas ideias:

“Nesse tempo, abriram-se-me os olhos para dois perigos que eu mal conhecia pelos nomes e que, de nenhum modo, se me apresentavam nitidamente na sua horrível significação para a existência do povo germânico: marxismo e judaísmo”

"No pequeno círculo em que agia, esforçava-me, por todos os meios ao meu alcance, por convencê-los da perniciosidade dos erros do marxismo e pensava atingir esse objetivo, mas o contrário é o que acontecia sempre.”

”A doutrina judaica do marxismo repele o princípio aristocrático na natureza. Contra o privilégio eterno do poder e da força do indivíduo levanta o poder das massas e o peso-morto do número. Nega o valor do indivíduo, combate a importância das nacionalidades e das raças, anulando assim na humanidade a razão de sua existência e de sua cultura. Por essa maneira de encarar o universo, conduziria a humanidade a abandonar qualquer noção de ordem. E como nesse grande organismo, só o caos poderia resultar da aplicação desses princípios, a ruína seria o desfecho final para todos os habitantes da terra.”

"Se o judeu, com o auxílio do seu credo marxista, conquistar as nações do mundo, a sua coroa de vitórias será a coroa mortuária da raça humana e, então, o planeta vazio de homens, mais uma vez, como há milhões de anos, errará pelo éter.”

“Nos anos de 1913 e 1914 manifestei a opinião, em vários círculos, que, em parte, hoje estão filiados ao movimento nacional-socialista, de que o problema futuro da nação alemã devia ser o aniquilamento do marxismo.”

“O marxismo, cuja finalidade última é, e será sempre, a destruição de todas as nacionalidades não judaicas, teve de verificar, com espanto, que nos dias de julho de 1914, os trabalhadores alemães, já por eles conquistados, despertaram e cada dia com mais ardor, se apresentavam ao serviço da pátria.”

A Crise de 29 promoveu o colapso completo do liberalismo econômico. Segundo Hobsbawn, a grande depressão destruiu o liberalismo econômico por meio século. E com o liberalismo combalido ‘”três opções competiam agora pela hegemonia intelectual-política. O comunismo marxista (...) Um capitalismo privado de sua crença na otimização de livres mercados, e reformado por uma espécie de casamento não oficial ou ligação permanente com a moderada social-democracia de movimentos trabalhistas não comunistas. (...) A terceira opção era o fascismo, que a Depressão transformou num (...) perigo mundial.

Neste ambiente, o NAZI se tornou o partido dirigente das classes médias alemãs, pois elas compunham seu principal eleitorado. As classes médias escolhiam sua política conforme seus temores, então, com medo do Partido Comunista alemão, fortemente influenciado pelas orientações bolcheviques, preferiram se submeter à ditadura nazista a apoiar os "comunas".

No entanto, a ascensão nazista ocorreu não somente pelo apoio das classes médias, mas também pela introdução de uma propaganda brutal que possibilitou a integração das massas. A propaganda nazista não oferecia somente o fim da crise e do desemprego, mas aparelhados e financiados pela burguesia, prometiam melhores salários, participação nos lucros, nacionalização dos trustes, reforma agrária, anulação de dividas de camponeses, isto é, ofereciam mudanças no próprio sistema capitalista.

Os nazistas levaram a sério suas mentiras propagandista e impressionaram com sua força de organização. O resultado disto todos conhecemos: o genocídio de milhões de pessoas (judeus, comunistas, ciganos, deficientes físicos, testemunhas de Jeová, entre outros).

É preciso que fique claro que o fascismo e o nazismo foram ideologias e governos de extrema-direita, e que estiveram muito distantes da direita liberal e democrática. Segundo Michel Gherman, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e coordenador do Centro de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “(…) a razão de existência do Estado era manter as diferenças raciais. Estabelecer um estado racialmente hegemônico, escravizar e eliminar raças inferiores e combater e exterminar a oposição que falava em classes sociais.

O nazismo, ao contrário do socialismo, não pretendia a abolição da propriedade privada e nem a coletivização dos meios de produção. O nazismo gostaria de garantir a arianização da economia, buscava ter alianças com grandes empresas verdadeiramente alemães e buscava construir um estado corporativo. O nazismo constituía-se assim, como modelo de capitalismo excludente e estatal. Nada mais distante do que qualquer posição a esquerda.”

Portanto, é preciso que se refute as pós-verdades. A quem serve quem reproduz mentiras desonestamente forjadas? Opiniões, hoje tão banalizadas, devem ser embasadas em argumentos sólidos e honestos. O conhecimento só é real quando construído pelo próprio indivíduo, e isso se dá por intermédio de pesquisa, crítica sobre as fontes e profunda reflexão, e relações dialéticas, ou seja, o processo de se educar. Caso contrário, será um papagaio à serviço de pessoas ou instituições intelectualmente desonestas.

Reproduzir estas pós-verdades sem nenhuma crítica ou reflexão, é o que denomino ignorância ostentação, pois não basta ser ignorante, há de se ostentar.

Seguem algumas indicações bibliográficas para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o tema.

(Texto: Cadu de Castro)

PARA SABER MAIS:

ALMEIDA, Angela Mendes. A República de Weimar e a ascensão do nazismo. São Paulo: Brasiliense, 1999.

DEFELICE, R. Explicar o fascismo. São Paulo: Edições 70, 1980.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX São Paulo: Companhia das letras, 1995.

PARIS, R. As origens do fascismo. São paulo: Perspectiva, 1970.

POULANTZAS, N. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1970.


Excelente vídeo-aula de René Duarte


*Poderia aqui sugerir também Mein kämpf, mas pela falta de senso crítico de muitos, pode ser perigoso.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Para entender a Venezuela




Por Marcelo Zero, no blog Viomundo:

I – Antecedentes

Não é possível se entender a atual crise da Venezuela e tampouco o regime chavista sem se compreender como era esse país antes da “revolução bolivariana” e qual o seu significado geopolítico para os EUA.

A Venezuela está sentada na maior reserva provada de petróleo do mundo. São 298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo do mundo. Este petróleo está a apenas 4 ou 5 dias de navio das grandes refinarias do Texas. Em comparação, o petróleo do Oriente Médio está entre 35 a 40 dias de navio dos EUA, maior consumidor de óleo do planeta.

Essas imensas reservas começaram a ser exploradas no governo de Juan Vicente Gómez (1908-1935).

A renda gerada pela produção e exportação de hidrocarbonetos possibilitou a construção de uma infraestrutura viária e portuária, assim como permitiu a implantação de aparelho de Estado centralizado, que substituiu uma administração fragmentada e difusa.

Contudo, essa consolidação do Estado Nacional venezuelano embasou-se apenas na exportação de petróleo para o mercado norte-americano, o que levou à Venezuela a desenvolver “relações privilegiadas” com os EUA. Tal vinculação econômica e política marcou profundamente a política externa da Venezuela, bem como sua política interna.

Na década de 50 do século passado, a Venezuela já havia se convertido no segundo produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No entanto, essa notável afluência econômica, obtida numa relação de estreita dependência com os EUA, não se refletia na diminuição de suas graves desigualdades sociais, na diversificação de sua estrutura produtiva e na implantação de um regime democrático estável. Tampouco numa política externa que combatesse seu alto grau de dependência.

Na realidade, esse processo econômico e político marcado por tal profunda dependência resultou em três grandes consequências que têm de ser levadas em consideração em qualquer análise séria sobre a Venezuela:

1) Um sistema político formalmente democrático, porém profundamente oligárquico.

2) Uma política externa avessa à integração regional e a uma articulação com outros países periféricos.

3) Uma estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza.

a) O sistema político oligárquico

Em 1957, foi celebrado o Pacto de Punto Fijo, articulado pelos EUA, pelo qual os partidos tradicionais e conservadores aceitaram alternar-se no poder, sem permitir a entrada de novos partidos. O objetivo, para os EUA, era garantir alguma estabilidade política na Venezuela, diante de sua importância como fornecedora de petróleo.

A realização de eleições presidenciais periódicas apenas entre os dois partidos conservadores (Ação Democrática-AD, de orientação socialdemocrata, e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente-COPEI, de tendência democrata-cristã), fez com que a Venezuela fosse apresentada como um exemplo raro de “democracia na América do Sul”.

Trata-se, é claro, de uma grosseira falácia. A bem da verdade, o sistema político gerado pelo Pacto de Punto Fijo era muito semelhante à política do “café-com-leite” da República Velha brasileira: por trás de uma fachada de democracia, escondia-se um sistema fortemente oligárquico.

Avalia-se que cerca de 50% da população teria sido excluída do exercício do voto desde os anos 60. Como o registro eleitoral era facultativo e como as zonas de inscrição estavam situadas apenas nas zonas mais prósperas do país, a população mais pobre não participava, na prática, de quaisquer decisões eleitorais.

Além disso, o federalismo venezuelano era profundamente autoritário. Cabia ao Presidente da República nomear todos os governadores e prefeitos biônicos, muitos dos quais hoje militam na oposição venezuelana.

Apenas em 1989 foram realizadas as primeiras eleições para prefeitos e governadores. Não bastasse, eram comuns as prisões de jornalistas, em razão da publicação de matérias que desgostassem o governo de plantão.

b) A política externa satélite dos interesses estratégicos do EUA

A “estabilidade” democrática, ainda que conservadora, formal e excludente, a afluência econômica proporcionada pelo petróleo e as relações privilegiadas com os EUA, mesmo que eventualmente contraditórias, fizeram com que Venezuela se isolasse do restante da América do Sul e dos demais países em desenvolvimento.

Na década de 60, esse relativo isolamento foi exacerbado pela aplicação, no plano das relações externas venezuelanas, da chamada Doutrina Betancourt, criada em homenagem ao ex-presidente Rómulo Betancourt.

De acordo com essa doutrina, a Venezuela deveria restringir o estabelecimento ou a manutenção de relações diplomáticas apenas a países que tivessem governos eleitos democraticamente conforme regras constitucionais estáveis.

Criada para agradar os EUA, pois justificava o isolamento diplomático de Cuba, a doutrina Betancourt, porém, complicou as relações com vários vizinhos da Venezuela aliados de Washington, inclusive o Brasil.

Assim, durante vários anos, a Venezuela recusou-se manter relações diplomáticas com o Brasil, que vivia uma ditadura. Por uma ironia da história, a “cláusula democrática”, que hoje o Brasil do golpe tenta impor à Venezuela no Mercosul, já foi usada contra nós pelos venezuelanos conservadores.

Após levar um “puxão de orelhas” de Washington, a Venezuela flexibilizou sua cláusula democrática e passou a usá-la apenas contra Cuba, contemplando os interesses dos EUA.

Esse isolacionismo da Venezuela, que privilegiava somente suas relações bilaterais com os EUA, fez até que aquele país aderisse tardiamente ao GATT, à Comunidade Andina e a outros organismos regionais e multilaterais, numa demonstração de total falta de iniciativa própria no cenário mundial.

Tal isolacioanismo dependente da Venezuela só começou a ser parcialmente revisto ao final da década de 80, quando a relativa abundância de petróleo no mercado internacional, que fez diminuir o preço dessa commodity, somada à crise da dívida, que viria a atingir aquele país ao final do decênio, produziu uma modesta mudança na estratégia de sua política externa.

De fato, a política externa isolacionista, baseada na noção de uma suposta superioridade político-democrática, na afluência econômica do petróleo e nas relações privilegiadas com os EUA, principal comprador dessa commodity, passou a ser substituída progressivamente por uma estratégia de inserção no cenário externo mais realista, na qual o Caribe e a América do Sul passaram a ter lugar de destaque.

Contudo, mesmo com essa mudança modesta e parcial, a Venezuela continuou a orbitar em torno dos interesses estratégicos do EUA na região, constituindo-se, junto com a Colômbia, no seu aliado mais fiel.

c) A estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza

Antes do “cruel e ditatorial” governo bolivariano, a Venezuela, o país com a maior reserva de óleo do mundo, tinha 70% de sua população abaixo da linha da pobreza e 40% do seu povo na pobreza extrema. Isso diz tudo sobre os governos anteriores.

Antes do governo de Chávez, em 1998, 21% da população estavam subnutridos. É isso mesmo. No país que, como Celso Furtado escreveu em 1974, tinha tudo para se tornar a primeira nação latino-americana realmente desenvolvida, 1 em cada 5 habitantes passava fome. Essa era a Venezuela dos Capriles, dos López e da “oposição democrática”.

Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil era de 25 por mil, em 1990, quase o dobro da brasileira de hoje (13,8 por mil). Em relação à educação, apenas 70% das crianças concluía o ensino primário e o acesso às universidades era restrito às elites e à pequena classe média.

Além disso, o Estado de Bem Estar venezuelano tinha alcance mínimo. Com efeito, na era pré-Chávez, apenas 387.000 idosos venezuelanos tinham aposentadorias ou pensões. A maioria simplesmente vivia à míngua.

Desse modo, a Venezuela chegava ao fim do século XX com uma contradição gritante e insustentável: apesar das grandes riquezas derivadas da exportação de petróleo, o país convivia com problemas sociais muito graves.

Em 1989, no contexto de uma crise econômica, manifestações populares se multiplicaram por todo o país.

Uma delas, o “Caracazo”, foi duramente reprimida pelo Estado, cujas forças mataram indiscriminadamente entre 1000 e 3000 pessoas. Em muitas ocasiões, as manifestações estudantis foram também reprimidas, tendo sido ordenado o fechamento da Universidade Central da Venezuela, que durou três anos, em 1968.

Durante vários meses, as favelas de Caracas foram cercadas por forças militares e submetidas a toque de recolher.

Entretanto, isso não comoveu muito a “comunidade internacional”, que hoje chora as cerca de 100 vítimas dos embates nas ruas da Venezuela.

Afinal, eram apenas pobres e excluídos sendo submetidos a um regular massacre na América Latina. Em todo caso, já estava claro, na época, que o modelo econômico, social e político plasmado no Pacto de Punto Fijo tinha atingido seu limite.

Pois bem, a eleição de Hugo Chávez, em 1998, se insere justamente no colapso do Pacto de Punto Fijo: para uma população desprovida de sistemas públicos includentes (saúde, educação, moradia, etc.), a plataforma política de Chávez surgiu como proposta sem precedentes na história do país, o que explica, em grande parte, a sua popularidade nas camadas historicamente excluídas do povo venezuelano.

Embora o chavismo não tenha alterado, de forma significativa, a estrutura produtiva da Venezuela, que permaneceu estreitamente dependente das exportações do petróleo, Chávez implodiu as arcaicas estruturas sociais e políticas da Venezuela, bem como a política externa de alinhamento automático aos EUA.

A desigualdade, medida pelo índice de Gini, foi reduzida em 54%. A pobreza despencou de 70,8%, em 1996, para 21%, em 2010, e a extrema pobreza caiu de 40%, em 1996, para 7,3%, em 2010.

O chavismo implantou as chamadas misiones, projetos sociais diversificados e amplos que beneficiam cerca de 20 milhões de pessoas, e passou a criar um verdadeiro Estado de Bem Estar Social na Venezuela. Hoje, 2,1 milhões de idosos recebem pensão ou aposentadoria, ou seja, 66% da população da chamada terceira idade.

Na Venezuela pós-chavismo, a desnutrição é de apenas 5%, e a desnutrição infantil 2,9%.

Após o chavismo, a Venezuela tornou-se o segundo país da América Latina (o primeiro é Cuba) e o quinto no mundo com maior proporção de estudantes universitários.

Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil diminuiu de 25 por mil, em 1990, para apenas 13 por 1000, em 2010.

Atualmente, 96% da população já tem acesso à água potável. Em 1998, havia 18 médicos por 10.000 habitantes, atualmente são 58.

Os governos anteriores ao de Chávez construíram 5.081 clínicas ao longo de quatro décadas, enquanto que, em apenas 13 anos, o governo bolivariano construiu 13.721, um aumento de 169,6%. Barrio Adentro, o programa de atenção primária à saúde que recebe a ajuda de mais de 8.300 médicos cubanos, salvou cerca de 1,4 milhões de vidas.

Nove anos após as grandes inundações de 1999, que destruíram centenas de e milhares de lares, o governo de Chávez deu início a um ambicioso programa de habitações populares. Já foram construídas e entregues 2 milhões de casas. Trata-se, proporcionalmente, do maior programa de habitação popular da América Latina.

Esses amplos e inegáveis avanços sociais fizeram daquele nosso país irmão um modelo de cumprimento dos Objetivos do Milênio da ONU.

No campo da política externa, Chávez rompeu com o paradigma anterior de país periférico e dependente e investiu na integração regional e no eixo estratégico da geoeconomia e geopolítica Sul-Sul, com destaque para as relações bilaterais com o Brasil, o que acabou conduzindo à adesão da Venezuela como membro pleno do Mercosul, algo que nos beneficia muito.

A Venezuela chavista tornou-se uma grande parceira do Brasil, comprando vorazmente nossos produtos e recompensando-nos com elevados superávits comerciais e com forte apoio político à integração do nosso subcontinente. Chávez era, sobretudo, um grande amigo do Brasil.

Ademais, Chávez estabeleceu relações próximas com Rússia, China e Cuba e passou a apoiar experiências políticas que divergiam da ordem mundial dominada pelos interesses dos EUA.

Em contraste com o isolacionismo anterior, Chávez fundou a ALBA e criou a Petrocaribe, objetivando fornecer petróleo a preços convidativos para os países daquela região. Isso explica porque a OEA, apesar dos esforços febris dos EUA e do Brasil, não consegue aprovar uma resolução forte contra o governo de Maduro.

Mas o principal mérito do chavismo foi ter implodido o conservador e excludente modelo político venezuelano, baseado no Pacto de Punto Fijo.

Com Chávez, assim como com Lula, Morales, Rafael Correa e outros, aqueles que não tinham voz e vez passaram a se fazer ouvir e a se fazer cidadãos. Passaram a comer, a se educar, a morar. Deixaram de ser invisíveis, miseráveis anônimos, e passaram a ser sujeitos da história.

O chavismo, entretanto, foi além e organizou e mobilizou as massas destituídas da Venezuela, bem como passou a dominar setores importantes do aparelho de Estado, como as Forças Armadas e o poder judiciário. Isso acabou privando as oligarquias venezuelanas de seus principais instrumentos de intervenção política. São esses fatores que ajudam explicar a radicalidade do atual processo político venezuelano.

II - A Reação

Com todos sabem, a reação das oligarquias ao chavismo não tardou. Além do conhecido golpe de 2002, que quase resultou na execução de Chávez, houve também o processo conhecido como “paro petrolero”, a suspensão das atividades da PDVSA, a estatal do petróleo da Venezuela.

A suspensão das atividades da PDVSA, controlada então pelas oligarquias venezuelanas, resultou numa contração do PIB de 18%, entre 2002 e 2003, inflação, carestia de produtos básicos, desemprego, aumento do risco país, etc.

No país com a maior reserva de petróleo do mundo, houve até falta de gasolina. O governo brasileiro, ao final de 2002, enviou navio tanque com gasolina para suprir parcialmente a carência de combustíveis na Venezuela.

O “paro petrolero” forçou o chavismo a intervir na PDVSA, dominando-a, assim como o golpe de 2002 forçou o chavismo a controlar mais fortemente as forças armadas.

Entretanto, essas ações antidemocráticas e destrutivas, das quais participaram as atuais das oposições venezuelanas, como López, Capriles e Ledezma são eloquentes da falta de compromisso real das oligarquias venezuelanas com a democracia.

O “paro petrolero”, em particular, evidencia que tais oligarquias não têm pruridos em arruinar a economia do país, desde que isso signifique uma oportunidade para voltar a controlar o poder perdido.

Desde então, o processo político venezuelano permanece bastante radicalizado.

Ainda assim, há de se constatar que o chavismo manteve seus compromissos democráticos. Desde a ascensão de Chávez e a implosão do Pacto de Punto Fijo, foram realizadas nada menos que 21 eleições, inclusive a de um referendo revogatório. Todas elas limpas e internacionalmente auditadas.

Ademais, na Venezuela há partidos de oposição que funcionam regularmente e imprensa livre, mesmo após a cassação da concessão do canal RCTV, que articulou o golpe de Estado de 2002.

A crítica de que o chavismo controla setores do aparelho de Estado, como o poder judiciário, por exemplo, não deixa de ser curiosa.

Na Venezuela, como em quase toda a América Latina, os setores estratégicos do aparelho de Estado sempre foram fortemente controlados pela direita. No entanto, tal controle nunca foi questionado como algo antidemocrático.

Ao contrário, o caráter de classe desses segmentos estatais sempre foi considerado como parte intrínseca e natural do modus operandi dos sistemas políticos do subcontinente. O controle só se torna um “problema” quando passa a ser exercido, ainda que parcialmente, pela esquerda.

Assim sendo, não se pode falar em quebra da ordem democrática na Venezuela, apesar da radicalização do processo político e dos graves problemas institucionais que acometem o país vizinho. A última vez em que houve realmente quebra da ordem democrática na Venezuela foi no golpe militar de 2002.

III - Desdobramentos Recentes

A situação da Venezuela atual é muito próxima da existente no período 2002-2003.

Com a morte de Chávez, em 2013, a oposição radicalizada da Venezuela, considerou que poderia derrotar facilmente o sucessor na revolução bolivariana.

Entretanto, a vitória de Maduro sobre Capriles, ainda que por pequena margem, frustrou as expectativas da oposição.

Pouco tempo depois, os setores mais radicalizados da oposição venezuelana, liderados por Leopoldo López, iniciaram o processo denominado de “la salida”, que consiste na utilização de manifestações violentas de rua, com a formação de barricadas, as chamadas “guarimbas”, incêndio de edifícios públicos e até mesmo de atos terroristas com o intuito de derrubar o governo eleito.

Trata-se de uma estratégia que teve êxito na chamada “revolução colorida da Ucrânia”, diretamente financiada e estimulada pelos EUA.

Essas manifestações, muito concentradas nos bairros do leste de Caracas e algumas outras poucas municipalidades dominadas pela classe média e pelas classes afluentes da Venezuela são amplificadas por uma mídia nacional e internacional comprometida com os interesses conservadores.

De um modo geral, as informações sobre as manifestações são produzidas com o auxílio das agências de inteligência e propaganda norte-americanas, que as repassam às agências internacionais de notícias, como a Reuters. A partir daí, elas se disseminam para o mundo inteiro, gerando uma percepção falaciosa do processo político venezuelano.

Entre 2013 e 2016, esse processo político radicalizado pela oposição de direita acabou provocando a morte de pelos menos 46 pessoas, a maioria chavistas ou de pessoas sem afiliação política, bem como danos milionários a equipamentos públicos.

Tais “guarimbas” foram e são financiadas desde o exterior. Com efeito, há uma conexão clara da direita venezuelana, particularmente dos setores ligados a Leopoldo López, com a extrema direita da Colômbia, principalmente com Álvaro Uribe e seus grupos de extermínio.

São essas conexões e os reiterados atos de violência que levaram à prisão de López e Antonio Ledezma na Venezuela.

Caracterizá-los como presos políticos que tivessem cometido “crimes de consciência”, como faz a imprensa brasileira, é desconhecer a realidade de uma direita que não tem, de fato, qualquer compromisso com a democracia e os direitos humanos e que aposta sistematicamente na violência como arma política preferencial.

Concomitantemente, foi iniciado um processo econômico que visa produzir carestia, desabastecimento e inflação, tal com o ocorreu, por exemplo, no Chile de Allende ou mesmo na própria Venezuela dos anos 2002 e 2003.

De fato, a este respeito é necessário que a crise econômica da Venezuela tem dois aspectos claros: um natural e outro artificial.

O natural, por assim dizer, tange ao fato óbvio de que a economia venezuelana, apesar dos esforços de chavismo para diversificá-la, ainda é muito dependente das exportações do petróleo e tem agricultura e indústria débeis.

A arrecadação tributária da Venezuela é muito baixa, apenas 13,5% do PIB, bem abaixo da brasileira, por exemplo, que está em cerca de 35% do PIB. Assim, o gasto público depende estreitamente da renda petroleira. Com a grande queda dos preços dessa commodity a partir de 2012, a economia da Venezuela passou enfrentar dificuldades reais graves, particularmente problemas cambiais.

Entretanto, há também aspectos artificialmente induzidos na crise econômica venezuelana. Há uma guerra econômica em curso.

Entre os instrumentos utilizados dessa guerra econômica estão: 1) o desabastecimento programado de bens essenciais; 2) a inflação induzida; 3) o boicote a bens de primeira necessidade; 4) o embargo comercial disfarçado; e 5) o bloqueio financeiro internacional.

O desabastecimento é produzido pela especulação cambial e pelo boicote político. O governo fornece aos importadores e comerciantes dólares cotados, pelo câmbio oficial, a apenas 10 bolívares. Entretanto, no câmbio negro, o dólar chega a ser cotado a milhares de bolívares. Na semana passada, cegou a 16 mil bolívares por dólar.

O que acontece é que muitos importadores simplesmente não importam o que deveriam. Fazem os contratos, mas importam apenas uma fração e depositam dólares no exterior. Além disso, boa parte (cerca de 35%) dos alimentos comprados são contrabandeados para o exterior, principalmente para a Colômbia, onde são vendidos com muito lucro. Outra parte é vendida no mercado interno, mas a preços excessivos, gerando carestia e inflação.

Ressalte-se que as importações de alimentos na Venezuela totalizaram US$ 7,7 bilhões em 2014, sendo que em 2004 elas foram de apenas US$ 2,1 bilhões. Ou seja, nesse período elas cresceram 259%. E, no caso de medicamentos importados, em 2014 as importações foram de US$ 2, 4 bilhões, enquanto que, em 2004, elas somaram apenas 608 milhões. Um aumento de 309%.

Portanto, a falta de alimentos, medicamentos, kits de higiene, peças sobressalentes para transporte e outros produtos, bem como as longas filas, não podem ser explicadas porque o setor privado não conseguiu receber uma quantidade suficiente de dinheiro para as importações. Esse dinheiro foi simplesmente desviado. Dessa forma, os depósitos em dólares de empresas venezuelanas no exterior cresceram 233% em apenas cinco anos.

Outro fator da guerra econômica tange à inflação induzida pela especulação. Em 2016, a economista venezuelana Pasqualina Curcio estimou, com base nas reservas e na liquidez monetária, que taxa real de câmbio deveria ser de 84 bolívares por dólar. No entanto, no câmbio negro o dólar já chegava a 1.212 bolívares por dólar. Essa discrepância dilatada e sem base real alimenta um índice inflacionário inteiramente especulativo.

Além de tudo isso, Venezuela sofre, desde 2013, com uma espécie de bloqueio financeiro não oficial. Ele consiste em tornar cada vez mais difícil e caro para a República e, especialmente, PDVSA, o acesso ao crédito no mercado internacional e em obstaculizar as transações financeiras.

Nesta área, as armas são invisíveis: tratam-se principalmente da publicação de níveis elevados de índice de risco país e do retardamento das transações financeiras costumeiras. Observe-se que, mesmo com a crise, a Venezuela vem cumprindo estritamente as suas obrigações financeiras, de modo que tais obstáculos não têm base racional e real.

No entanto, o fato concreto é que essa guerra econômica vem ajudando a radicalizar ainda mais o processo político venezuelano.

Nos últimos 4 meses, morreram mais de 100 pessoas nos conflitos de ruas. Houve linchamentos de chavistas, inclusive de um que foi queimado vivo, atentados terroristas, incêndios de prédios públicos, inclusive de uma maternidade. Houve também, é claro, a morte de manifestantes da oposição pelas forças de segurança. A violência se generalizou.

Ao mesmo tempo, o impasse institucional entre o Poder Executivo e a Asamblea Nacional, dominada pela oposição congregada na MUD, agravou-se, sem quaisquer iniciativas de ambos os lados para um diálogo sério e construtivo.

Assim sendo, a Venezuela de hoje está à beira de uma guerra civil de proporções calamitosas e consequências imprevisíveis.

Ante tal impasse, o governo chavista optou pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, prontamente rejeitada pela oposição.

A oposição logo alegou que a convocação era inconstitucional e que visava perpetuar o poder de Maduro.

Bom, em primeiro lugar, tal convocação não é inconstitucional. A convocação da Assembleia Constituinte pelo presidente da república está prevista clara e explicitamente no artigo 348 da Constituição da Venezuela.

Em segundo lugar, a Assembleia Constituinte não substitui a Asamblea Nacional (o parlamento unicameral da Venezuela), como foi afirmado falsamente, a qual continuará a funcionar e a cumprir suas funções legislativas.

Em terceiro lugar, a convocação de assembleias constituintes é um mecanismo frequentemente usado em países democráticos como solução pacífica para impasses políticos e institucionais como o que acomete a Venezuela atual.

Em quarto lugar, a convocação teve apoio expressivo da população. O número de votantes para a assembleia (mais de 8 milhões) foi superior aos votos que teriam sido obtidos pelo plebiscito informal que a oposição convocou uma semana antes contra a assembleia ( cerca de 7,2 milhões de votos).

Observe-se que esse plebiscito é que foi, sim, inteiramente ilegal. Não fosse o clima de violência criado pela oposição, as barricadas que impediram o acesso aos centros de votação e o boicote ostensivo das empresas de transporte, que fizeram locaute no dia da votação, a participação eleitoral poderia ter sido bem superior.

Em quinto lugar, os objetivos estratégicos da Assembleia Constituinte são bem mais amplos do que o suposto desejo de perpetuar Maduro no poder.

A Assembleia visa essencialmente constitucionalizar as misiones sociais, bem como estabelecer as bases jurídicas e institucionais de uma economia pós-petroleira. A preocupação fundamental é impedir retrocessos sociais, como os que ocorrem atualmente no Brasil, e criar mecanismos econômicos que levem a Venezuela a ampliar a base produtiva de sua economia, de modo a superar definitivamente a sua dependência dos hidrocarbonetos.

Há de se enfatizar, além disso, que o texto que sairá dessa Assembleia só terá valor jurídico se for aprovado pela população em referendo.

Tal constatação minimiza a crítica da oposição de que o sistema de votação estabelecido para a Assembleia Constituinte criava um “jogo de cartas marcadas”.

Na realidade, dos 545 membros da Assembleia, dois terços (364) foram eleitos em base territorial, e um terço (181) com base em setores organizados da sociedade civil, como estudantes, agricultores, sindicatos de trabalhadores, organizações empresariais, representantes das comunidades indígenas, etc.

Embora se possa argumentar que tal sistema gera uma distorção na proporcionalidade do voto, é necessário se entender que tal distorção é menor do que a distorção na proporcionalidade que se verifica em muitos países democráticos que adotam o voto distrital.

No Reino Unido, por exemplo, o Partido Liberal tem sido frequentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que recebe é sempre inferior ao seu percentual de votos. O partido foi sub-representado em todas as eleições para a Câmara dos Comuns no pós-1945: com uma média de 12,4% dos votos, obteve uma média de 1,9% das cadeiras. A diferença mais acentuada ocorreu em 1983, quando recebeu 25,4% dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes.

Entretanto, as distorções também se dão entre os partidos principais. Por exemplo, nessas ultimas eleições britânicas, os conservadores tiveram apenas 2,4% a mais de votos entre os eleitores que o Partido Trabalhista (42,4% x 40,0%). Contudo, conseguiram eleger 55 representantes a mais que os trabalhistas (317×262). Pela proporcionalidade do voto, tal diferença deveria ter resultado em apenas 15 cadeiras a mais.

Na França moderna, nas duas eleições em que um partido obteve mais de 50% de cadeiras, ele o fez por intermédio de maiorias manufaturadas por distorções: em 1968, os gaullistas (atual RPR) receberam 38% dos votos e 60% das cadeiras; em 1981, o Partido Socialista, com 37% dos votos, ficou com 57% das cadeiras.

Assim sendo, caracterizar a convocação da Assembleia Constituinte como um “golpe” ou uma “ruptura da ordem democrática” é algo de evidente má-fé. Pode-se não concordar com tal convocação, mas não se pode denominá-la de “golpe”. Golpe foi que aconteceu no Brasil.

A alternativa à Assembleia Constituinte parece ser uma guerra civil aberta. Ao menos, a Assembleia Constituinte cria uma oportunidade para que se estabeleça um diálogo que supere o atual impasse político e institucional daquele país.

Lamentável, em todo esse processo, é a posição do governo golpista e sem voto do Brasil. Desde que assumiu ilegitimamente o poder, esse governo fez da suspensão da Venezuela do Mercosul e da derrubada do governo chavista a sua diretriz principal em política externa, atuando como braço auxiliar dos EUA no subcontinente.

Ao fazê-lo, o governo golpista apequenou o Brasil e retirou qualquer possibilidade do nosso país atuar como mediador de conflitos na região, como vinha fazendo nos governos do PT.

O empenho do Brasil contra a Venezuela foi de tal ordem que a suspendeu duas vezes do Mercosul. Com efeito, antes da última decisão de utilizar a cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia, a Venezuela já estava suspensa, na prática, do Mercosul desde dezembro do ano passado, sob a escusa, sem embasamento jurídico, de que o país não havia internalizado todas as normas do bloco, situação que se verifica em todos os Estados Partes.

Assim, a decisão de utilizar a cláusula democrática representa mera peça propagandística contra o governo legitimamente eleito da Venezuela.

Além de empenhado nos retrocessos socais e políticos internos, o governo do Brasil está empenhado também em forçar retrocessos na região.

Nosso principal produto de exportação é hoje o golpe.

* Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).