Hoje, num desdobramento típico do nosso realismo fantástico, o futuro da democracia brasileira será decidido em Curitiba. O palco está armado – até os dentes, segundo vídeos que documentaram ontem as movimentações da tropa de choque da PM na capital paranaense. Assim Lula e as centenas de movimentos sociais que se organizaram para manifestar o seu apoio ao ex-Presidente serão recebidos.
Na madrugada de hoje, foram filmados morteiros sendo jogados no acampamento do MST, perto do centro da cidade. Helicópteros, “caveirões”, proibição de circulação nos arredores da Justiça Federal, o clima de estado de sítio foi cuidadosamente preparado pelas autoridades.
No último dia 28, o da greve geral, não se esperava a reação violenta e descabida da PM – em especial no Rio de Janeiro. Já em Curitiba, hoje, a PM do governador Beto Richa, que massacrou professores e alunos da rede estadual, não surpreenderá se repetir a atuação usual contra os movimentos sociais. E provavelmente o fará mesmo sem provocação. Oxalá eu esteja errado.
Para completar o clima, a Globonews já prepara o ambiente para uma eventual prisão de Lula, antecipando que Moro não aceitará “desacato”.
Se esta tragédia anunciada ocorrer nas próximas horas, sacramenta-se o estado de exceção, a suspensão do Direito, e podemos falar sem erro que estaremos sob ditadura. O passo seguinte certamente será a supressão das eleições de 2018, onde não se tem clareza de que um candidato que representa os interesses do regime poderá ser eleito.
Nunca é demais lembrar que o regime Temer é uma espécie de desdobramento natural do projeto de poder de Eduardo Cunha. Assistir ao House of Cards Tupiniquim equivale testemunhar o desenrolar grotesco de um espetáculo que mortifica a democracia. Tanto mais quando se testemunha que o golpe se desdobra em destruição de direitos, repressão e desemprego, desembocando na fraude das eleições em 2018.
O regime não esconde funcionar como plutocracia. Os ricos mandam subtrair as riquezas do país através da destruição das forças políticas que sempre reagiram ao seu desmonte. A realização deste “projeto”, realizada através da violência certifica a ditadura.
A questão não é singela. A noção de que o 1º de abril de 1964 consumou um golpe de Estado não se instalou naturalmente na consciência dos brasileiros. Apesar dos esforços de historiadores, cientistas sociais, militantes e personagens da época, até hoje existem os que defendam que o que houve, foi sim, uma revolução. Contra o comunismo. E uma revolução democrática.
A diferença de hoje para a dos resistentes às posteriores comprovações de que o golpe se fez ditadura – e violenta – é que nos dias que correm paira no ar um cheiro estranho, um constrangimento que não ousa reivindicar a verdade da “revolução constitucional” capitaneada pelo temeroso Michel. Afinal, o rótulo artificial de impeachment para o golpe é menor e menos glorioso que a ideia de que o golpe teria se produzido como revolução. Desta vez, os golpistas não acertaram nem na retórica de justificação.
Muito mais velozmente que em 1964, o golpe judiciário-midiático-parlamentar de 2016 deságua não somente no seu esgotamento político, mas, em particular, para a sua falta de consistência simbólica. Os desdobramentos do interrogatório de Lula hoje em Curitiba coroará este fato.
E porque, apesar dos esforços do mass media, isto não surpreende?
Mais uma vez a história pode trazer luzes ao presente. Em 1964 o golpe representou a culminância de um conjunto de articulações desde muito e por muitos operada. A classe empresarial e os oficiais das Forças Armadas foram doutrinados pelos EUA desde final dos anos 1940 na Doutrina de Segurança Nacional, abdicando da soberania e da defesa das fronteiras contra ameaças externas para centrar fogo nas organizações sociais e sindicais – o inimigo interno.
Obviamente que este movimento de radical mudança da tradição nacionalista e que atingiu as forças militares do cone Sul fora longamente articulado, antes do final da Segunda Guerra, por intelectuais ligados às instituições de Estado dos EUA.
Assim, havia uma efervescência anabolizada artificial, mas solidamente constituída e que, alinhada com uma tradição cultural escravista, objetivava combater a institucionalização de procedimentos democráticos, em especial a articulação política da classe trabalhadora.
Nesse sentido, a cultura do golpe de Estado corria nas veias das classes dirigentes e se espalhava pelas classes médias através da propaganda financiada pelos EUA, por instituições como o IPÊS e o IBADE – no que os norte-americanos denominam hoje de smart power. E, ainda assim, levou mais de 10 anos para se cristalizar.
O golpe de 2016, sabe-se hoje, ensaiou sua eclosão desde 2003, quando da primeira eleição majoritária vitoriosa do Partido dos Trabalhadores. Lula não podia governar. Esta era a palavra de ordem que transbordava em metáforas nos jornais de grande circulação.
Prontamente articulou-se parlamento, judiciário e mídia em torno da CPI dos Correios, que se transformou na famigerada AP 470 do STF.
Sem um projeto de país, sem uma interpretação que desse sentido a ascensão dos trabalhadores ao poder, sem condição de estabelecer uma estratégia de ocupação de “corações e mentes” – ao contrário do que se acusava o PT então, de “aparelhamento” – o governo Lula não foi capaz de sequer compreender que as instituições políticas estavam em marcha acelerada para o golpe.
Herdeiros diretos do modus operandi da ditadura empresarial-militar, Judiciário, mídia e setores marginalizados do Congresso Nacional de então – capitaneados pela figura abjeta de Roberto Jefferson, ex-Ministro de Collor – articularam a narrativa do mensalão.
A “ética na política” foi a bandeira politicamente correta a se colocar no lugar do “mar de lama” que a direita anteriormente queria jogar no colo de Getúlio. Isso enquanto Vargas implantava a Petrobrás, a Eletrobrás, a Vale do Rio Doce e garantia o aumento de 100% do salário mínimo dos trabalhadores, reafirmando, a ferro e fogo, a legislação trabalhista.
Hoje a orientação é não deixar a esquerda ir tão longe como foi Vargas.
O alvoroço causado nas elites pelas as conquistas sociais efêmeras – porque não transformadas em direitos ou cláusulas pétreas – dos governos Lula-Dilma produziu forte reação. O impeachment foi o desdobramento natural da articulação de grupos que foram democraticamente alijados do poder por mais de uma década.
Mas, ao fim e ao cabo, este golpe começou pelas mãos de Eduardo Cunha. Simbolicamente não se sustenta. Historicamente demonstrará a sua inconsistência.
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