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terça-feira, 27 de junho de 2017

O Lulismo não é utopia, não é projeto. O Lulismo é experiência.


Rodrigo Perez Oliveira


Pesquisa eleitoral é aquele tipo de coisa que a galera despreza, diz que não serve pra nada, mas que atrai a atenção de todo mundo, fundamentando análises e pitacos aqui e acolá.


É justo.

Afinal, não há outra maneira de olhar para além do nosso próprio umbigo e de nossas relações pessoais mais próximas que não seja através das pesquisas, dos dados estatísticos.

Curto muito os dados. Muito mesmo.

Os institutos de pesquisa erram? De montão. Mas como é o que temos, vão lá os meus pitacos. Assim, organizadinhos, pois sou desses.

1°) Aos companheiros petistas orgânicos.

Não se iludam! A popularidade não é do PT. É do Lula.

Sim, isso mesmo, sem piti! Tem uma galera no PT que é mimizenta, parece até PSOL. Chatos até não poderem mais.

O PT sem Lula não chega nem a 4%, meus amores. Haddad, com todas ciclovias, com os prêmios internacionais, os projetos urbanos, com aquele charme de intelectual uspiano, não dá nem pra saída.

A força do PT está na combinação entre o carisma de Lula e a memória popular. As pessoas sabem que nos tempos de Lula a vida era melhor, que o prato estava mais cheio.

É que esse negócio de “classe trabalhadora” é mais uma abstração do que um dado real, entendem? É claro que o conceito é importante, pois é o fundamento da nossa identidade ideológica; tem alguma utilidade como ferramenta analítica.

Mas cá pra nós, assim, no miudinho, sem os reaças ouvirem: na prática a ideia de "classe", assim, fria, não serve pra muita coisa.

Os afetos, as demandas, as opções eleitorais das pessoas são configurados pelas suas experiências, entendem? É ali, no nível da prática, que a coisa acontece. O negócio é quente.

E num país como o Brasil, onde historicamente 35% da população é formada por pobres e outros 20% por miseráveis, o povão, o povão mesmo, tá preocupado com ganhos de curto prazo.

O povão só quer ter uma vidinha digna: trabalhar, ter acesso ao crédito, aposentadoria, 13°, colocar os meninos na escola. Comprar geladeira. Namorar. Fazer neném.

Só isso.

Essa galera não tá ligando pra revolução, pra reforma política, pra ciclovia, pra camada de ozônio, pra identidade de gênero.

Essas pautas aí vêm depois que a barriga tá cheia e cá no Brasil, amigos, nós só ensaiamos o Estado de Bem Estar Social. Mal começamos a encher as barrigas e os caras vieram e pá! Golperaram.

Só que o golpe se dá no plano das instituições, da política formal, e não nos afetos. Por mais que a mídia manipule, o povão não é burro.

O povão olha pra Lula e vê exatamente a tal vidinha digna, que via também na imagem do "Dr Getúlio".

O povão não quer sabe se o lulismo surfou na onda do boom das commodities, se é ideologicamente conservador, se tencionou ou não as estruturas do grande capital.

O povão não quer saber se o itaú ganhou milhões de reais.

O povão sabe, pela experiência, que antes a vida tava melhor, e isso já basta.

Não sei se se esses afetos serão suficientes para trazerem o povão pra rua numa eventual prisão de Lula: às vezes acho que sim, às vezes acho que não.

Mas tenho certeza de que esses afetos são mais que suficientes para fazerem as pessoas apertarem 13 nas urnas em 2018.

Apertar 13 se a foto que aparecer lá for a de Lula, com aquela barba, com as covinhas na bochecha.

Se não for a foto a de Lula, meus amigos, vai ser difícil, muito difícil.

Capital político não se transfere assim, como se fosse dinheiro em conta corrente.

Se rolar um empenho grande de Lula na campanha, pode até ser que se repita o que aconteceu com Dilma. Mas não se iludam, amigos petistas, isso não é garantido, não é nada garantido.

Quem sobreviveu à crise foi Lula, e não o PT.

Seria prudente, então, que os companheiros Lindberg e Tarso baixassem as bolas, pois parece que eles não entenderam o que está acontecendo. Tão cabaçando, pagando de psoletes, tão fechando na errada, fechando com gente errada.

2°) Sobre o bolsonarismo.

É claro que o que mais chama atenção nessa pesquisa divulgada pelo DataFolha é o tal bolsonarismo, que já bate nos 15%.

Bom, vamos lá, no meio termo entre o desespero e a indiferença.

Por um lado, é óbvio que o bolsonarismo não pode ser ignorado, não mais. Mas duvido, e muito, que tenha fôlego para vencer eleição majoritária.

Acho mesmo que numa campanha eleitoral, o fôlego político de Bolsonaro não é tão grande. É muita barbaridade junta, e isso seria explorado à exaustão.

Ele bate no teto dos 10% e daí não passa.

Só que o fato de termos 10% dos eleitores brasileiros votando na barbárie já é um problemão.

O termo é exatamente esse "barbárie": o bolsonarismo não é uma ideologia política, pois o que temos ali não são propostas políticas.

Tudo bem ser liberal e achar o que o Banco Central deve ter autonomia. Discordo, mas beleza, estamos aqui na esfera do debate politico.

Tudo bem ser conservador e questionar os debates sobre gênero no sistema educacional. Discordo, pois acho essas discussões fundamentais, principalmente para adolescentes. Pra crianças de primeira infância, tenho lá minhas dúvidas.

E sim, posso tê-las, pois aqui estamos no reino da opinião, da controvérsia, dos debates políticos. Nem adianta o piti!

Agora, não dá, de forma alguma, pra defender a tortura, o estupro, o extermínio como política de Estado.

Não dá pra debochar dos desaperecidos do Araguaia. É indigno.

Aqui, não estamos mais no terreno da opinião. Direitos Humanos não são matéria de opinião. Desrespeitar os direitos humanos não é uma opção. É crime.

Por isso, os 10% do bolsonarismo traduzem, de um lado, o aspecto mais terrível da crise; uma crise que não é apenas política, que não é só institucional. A crise é civilizacional.

Por outro lado, essa direita incivilizada, bárbara, não é exatamente uma novidade. Essa galera tava se escondendo sob as asas tucanas do PSDB desde os anos 1990.

Venho lendo muito sobre o PSDB. Tô muito convencido de que a face mais triste da dimensão política da crise foi o colapso do PSDB.

Um partido que nasceu marcado pelas ventos mais renovados do marxismo pós-estruturalista se tornou isso que é hoje: uma legenda de gangsters, um amontoado de golpistas. É triste.

Seria muito saudável para o nosso sistema político se o PSDB tivesse se tornado, de fato, um partido social-democrata, com tendências liberais.

Nunca foi.

Talvez tenha sido ali no comecinho, entre a fundação, em 1988, e o início do primeiro governo de FHC, em 1995.

Depois se tornou o portador de um neoliberalismo entreguista da pior espécie e, já no século XXI, um partido sustentado por um eleitor sem identidade, pelo voto antipetista, pelo voto de direita, de uma direita raivosa e violenta.

Uma pena, uma pena mesmo.

Cerca de 60% dos eleitores do PSDB, segundo dados de uma pesquisa realizada em 2006, tinham identidade eleitoral negativa. Ou seja, votavam no PSDB porque odiavam o PT. A semente do bolsonarismo já estava ali.

Acontece é que a crise está muito marcada por um certo conceito deontológico de corrupção. Aí o tal Bolsonaro consegue surfar nessa onda da “honestidade”.

Somem isso à mobilização de algumas tópicas com grande capilaridade na cultura popular, como "família" e "honra masculina", e temos a força do bolsonarismo. Uma força relevante, mas limitada, ao menos na minha avaliação.

O bolsonarismo, portanto, é um problemaço, mas não tem força pra vencer eleição majoritária. Sou capaz de apostar várias cervejas nisso.

3°) Por último, aquilo que anula tudo que falei até agora.

A pesquisa eleitoral, nas atuais circunstâncias, é pura ficção.

Por que estamos ainda muito longe das eleições? Não, não e não.

Eleição sugere a saúde do sistema político e a atual crise é, exatamente, a crise geral do sistema político.

A classe política, já há algum tempo, não está no controle da crise. Ela é um passageiro desesperado em uma locomotiva desorientada, sem comando central.

O capital especulativo não está comando da crise, e já entendeu que Temer não entregará as tais reformas, ao menos não como prometeu.

A classe política olha para Temer e vê nele a única esperança de salvação, através do controle do judiciário, especialmente da Procuradoria Geral da República.

Temer já mandou matar um ministro do STF e nomeou para vaga um homem da sua confiança. Temer nomeou três ministro do TSE para salvar o seu mandato.

Temer irá substituir Rodrigo Janot na PGR, nomeando um engavetador geral da Reública. E fará assim, tudo na base do "foda-se o que vocês pensam".

Uma coisa temos que admitir: Temer está dando uma aula de como defender um mandato.

A força de Temer, cuja popularidade é uma margem de erro de 2%, está no sentimento corporativo da classe política, quase toda envolvida em escândalos de corrupção.

Temer está manipulando esse sentimento, esse medo, com maestria.

Por isso, amigos, tirem o cavalinho da chuva: Temer não cai pela via da política. Rodrigo Maia não abre um processo de impeachment nem que a vaca dance forró. Os parlamentares estão com o Temer, não exatamente na agenda das reformas, pois o preço político desse apoio é caro.

Os parlamentares estão com o Temer no contra-ataque ao judiciário. O núcleo duro da crise tá aqui: Políticos X Juízes.

Então, amores, podemos colocar dez milhões nas ruas, tatuar "Fora Temer" nas nossas testas e nas nossas bundas que o vampiro não irá cair.

Se depender da política, Temer governará até 18, para proteger a si mesmo e os seus pares. O país ficará parado. Os pobres, que são os que mais precisam do governo, sofrerão muito.

A outra possibilidade é a Procuradoria Geral da República entrar em cena.

Provavelmente, Rodrigo Janot denunciará Michel Temer. Aí, o jogo muda um pouco, pois o Congresso Nacional precisará decidir se aceita ou não a denúncia. Até que ponto os parlamentares irão se expor para defender Temer?

Nesse cenário, a peça fundamental passa a ser Rodrigo Maia. Se o gordinho convencer a turma de que ele mesmo pode proteger a rapaziada da jornada moralizante de Janot, Temer tá fudido. Do contrário, nada muda, e Temer fica exatamente onde está.

Hoje, o grande problema do Brasil não é Michel Temer. O grande problema do Brasil é a PGR, comandada por Rodrigo Janot. Se o projeto de poder desses caras se concretizar, se eles escaparem da ofensiva comandada pela classe politica, sob a liderança de Michel Temer, joguem as pesquisas no lixo, pois eles darão as cartas e o voto será moeda sem valor.

Ah, vocês acham que o voto já não tem valor em um sistema político corrompido pelo captial? Esperem só pra ver numa ditadura da toga. A coisa sempre pode piorar.

Confesso pra vocês que nessa disputa, to torcendo pros políticos. O político corrupto nós podemos derrubar nas urnas. Já o juiz ninguém controla. O juiz é Deus. E brigar com Deus é "barril", como se costuma falar cá na Bahia.

"Barril"! Adoro essa expressão.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Para onde vamos: socialismo ou barbárie?




Transcorrido um ano de governo de Michel Temer, não há mais dúvida de que sua posse resultou de um golpe parlamentar-jurídico, cujo objetivo central foi liquidar as conquistas dos trabalhadores brasileiros consagradas na legislação do país. Nesse sentido, são emblemáticas as propostas encaminhadas ao Congresso Nacional das reformas trabalhista e da previdência, assim como os esforços voltados para invalidar os direitos democráticos consagrados na Constituição de 1988, não obstante suas limitações, apontadas por Luiz Carlos Prestes, no que diz respeito ao artigo 142 dessa Carta, ou seja, à manutenção da tutela militar acima dos três poderes da República1. Artigo este usado pela primeira vez pelo atual governo para reprimir manifestação popular realizada recentemente em Brasília.

Da mesma maneira, assistimos ao desmonte da Petrobras, que está sendo entregue despudoramente ao capital internacional, e à privatização de grande parte da economia nacional. O Brasil é, assim, oferecido à rapina dos grupos monopolistas internacionais e se agrava acentuadamente sua dependência do imperialismo estadunidense e de outras potências imperialistas.

As políticas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso não só não foram interrompidas, mas puderam prosseguir durante os governos do PT. E as próprias reformas trabalhista e da previdência tiveram curso nesses governos, assim como a desnacionalização da Petrobras e da economia nacional, embora encontrassem resistências significativas de parte de setores democráticos e populares. Quebrar tais resistências – eis a razão por que se tornou necessário para o imperialismo e os setores burgueses a ele associados perpetrar o golpe parlamentar-jurídico de 2016.

Em 2002, os compromissos assumidos pelo PT com a “Carta aos brasileiros” deram garantias ao grande capital internacionalizado de que seus interesses não seriam prejudicados, o que permitiu a eleição de Lula após três derrotas consecutivas nas tentativas anteriores para eleger-se presidente da República. Entretanto, as concessões postas em prática, mesmo as mais graves perpetradas no início do governo Dilma, ao renegar as promessas feitas durante a campanha eleitoral, não foram suficientes para, num cenário de agravamento da crise econômica mundial, atender aos propósitos dos setores burgueses identificados com os interesses do grande capital internacionalizado.

O retrocesso produzido pelos golpistas na vida nacional não deve obscurecer a responsabilidade dos governos do PT pela situação hoje presente no Brasil. Contrariando o que haviam imaginado e proposto pensadores marxistas como Florestan Fernandes, nos primeiros anos de existência do PT, o “partido dos trabalhadores” transformou-se numa versão brasileira da social-democracia europeia, com a diferença de que os conflitos sociais no Brasil, resultado de desigualdades extremas, não têm solução, mesmo que temporária, nos marcos do capitalismo, como aconteceu com o “estado do bem-estar social”, criação dos partidos social-democratas na Europa. Experiência esta hoje falida, como é do conhecimento geral.

Uma vez no governo, os dirigentes do PT incluíram em sua base aliada partidos e agrupamentos políticos comprometidos com a continuidade das políticas neoliberais que haviam constituído a essência dos compromissos assumidos com a “Carta aos brasileiros”. Estava fora de cogitação qualquer possibilidade de os novos governantes desenvolverem esforços voltados para a organização e a mobilização populares, tendo em vista a implantação de políticas favoráveis aos interesses dos trabalhadores e das grandes massas vitimadas pela exclusão social.

Pelo contrário, tanto o PT e seus aliados mais próximos, como é o caso do PCdoB, quanto os governos Lula e Dilma contribuíram para transformar a CUT e os sindicatos operários, assim como a UNE e grande parte das entidades populares, em meros instrumentos a serviço dos propósitos governistas, em meras correntes transmissoras dos desígnios petistas e governistas. Através da manipulação da opinião pública não se contribuiu para o avanço da organização dos diferentes setores populares, que foram mantidos como massa de manobra à disposição de lideranças “salvadoras” do PT, submetidos à influência carismática dessas lideranças, interessadas em impedir o protagonismo dos trabalhadores e das massas populares, empenhadas em mantê-las desorganizadas e desmobilizadas para melhor exercer seu controle.

De acordo com a cartilha neoliberal, formulada pelas agências ligadas aos grupos monopolistas internacionais, aos setores populares seria destinada uma parte dos recursos provenientes dos lucros fabulosos desses grupos, através de políticas assistencialistas – as chamadas “políticas compensatórias”-, promovidas pelo Estado brasileiro, cujo objetivo principal jamais deixou de ser a garantia da paz social. Dessa forma, tentou-se evitar as convulsões sociais e garantir o apoio popular aos governos do PT e de seus aliados, assegurando a sucessão tranquila desses governantes a cada eleição. Foram distribuídas migalhas ao povo, enquanto as multinacionais obtinham lucros fabulosos e os dirigentes do PT e seus aliados garantiam a reeleição para os principais cargos dos governos da República.

Diante da atual situação política do Brasil, a direção do PT continua recusando-se a analisar autocriticamente o comportamento dos governos Lula e Dilma. Contando com o apoio de Lula, a recém-eleita presidente do partido, afirma que “não fará autocrítica porque não quer fortalecer o discurso de seus adversários políticos”.2 Lembremos que V.I. Lenin, o grande artífice da Revolução Russa de outubro de 1917, afirmava que os dirigentes políticos comprometidos com os interesses populares não deveriam jamais ocultar das massas seus próprios erros, recusando-se a assumir posições críticas em relação aos mesmos, pois isso abriria espaço para sua repetição. Postura que sempre foi seguida por Luiz Carlos Prestes durante sua longa trajetória política.3

A desmobilização popular e, principalmente, a ausência de organizações e partidos representativos dos legítimos interesses dos trabalhadores – para os quais a política do PT e dos seus aliados contribuiu de maneira decisiva -, têm como consequência a carência de lideranças populares autênticas e a tendência generalizada a buscar um “salvador” que pudesse enfrentar os desafios resultantes da situação criada no país com o golpe parlamentar-jurídico de 2016. A proposta que está sendo amplamente divulgada pelas “esquerdas” de eleições diretas com a candidatura de Lula à presidência representa a concretização de tal tendência. Lula seria novamente o “salvador” da pátria.

Semelhante solução pode ser considerada compatível com os interesses dos trabalhadores e das massas populares? A atual correlação de forças políticas, extremamente desfavorável para os setores populares, parece indicar que, mais uma vez, na história Brasil as classes dominantes ensaiam uma solução de conciliação, cuja característica principal seja a preservação dos interesses espúrios do grande capital em detrimento dos anseios dos trabalhadores e das grandes massas do nosso povo. Devido à desorganização dos setores populares, seus representantes carecem de força política para influir decisivamente nos acontecimentos.

Dessa forma, semeia-se a ilusão de que Lula possa ser a solução. Na realidade, as “elites” representativas das classes dominantes poderão admitir eleições diretas e até mesmo a eleição do ex-presidente Lula desde que uma nova “carta aos brasileiros”, recheada de concessões maiores das que foram feitas pelo PT em 2002, seja assumida como compromisso eleitoral. É ilustrativa a proposta do “tucano” Fernando Henrique Cardoso, disposto a buscar entendimento com Lula para “salvar o Brasil”.4

Na verdade, no curto prazo não existe uma solução que realmente contemple os anseios populares e dê resultados positivos. As “esquerdas” precisam reconhecer isso e contribuir para o esclarecimento das massas, mostrando-lhes que a disputa eleitoral e a “democracia representativa” não constituem a solução. No máximo, podem ser coadjuvantes na atividade fundamental de organização dos trabalhadores, de organização popular, e na luta cotidiana que deve ser desenvolvida em cada lugar de trabalho, de estudo e de moradia em torno das reivindicações mais sentidas dos setores populares.

Luiz Carlos Prestes enfatizava que a emancipação econômica, social e política dos trabalhadores brasileiros deveria ser obra deles próprios. Para que isso se tornasse possível, considerava necessário contribuir para a mobilização, organização e conscientização dos diferentes setores populares, assim como para o surgimento de novas lideranças e novas organizações partidárias efetivamente comprometidas com a solução radical dos graves problemas nacionais.5

É necessário trabalho e empenho para construir as forças sociais e políticas capazes de garantir o avanço rumo ao socialismo – o único regime social capaz de assegurar justiça social e democracia para todos. Trata-se de um projeto a ser realizado a médio e longo prazo – o único capaz de garantir soluções verdadeiras para os anseios da grande maioria do povo brasileiro.

Reformar o capitalismo deixou de ser a solução. Karl Marx escrevia que, se não se avança para o socialismo, chega-se à barbárie, algo que já estamos vivenciando nos dias atuais e que urge ser revertido através do único caminho viável – a organização popular.


sexta-feira, 16 de junho de 2017

O cinismo é uma forma de racionalidade

VLADIMIR SAFATLE



Freud nos traz um relato no qual um homem, depois de cuidar por meses de seu pai doente que acabara de morrer, começa a sonhar que ele estava novamente em vida e que lhe falava normalmente.

Esse sonho era vivenciado de forma extremamente dolorosa, já que o pai agia de maneira natural, mas a condição de não saber que estava morto.

Ao produzir um sonho dessa natureza, o sujeito demonstrava estar preso em um tempo assombrado por mortos que não estavam enterrados, mortos que ocupavam o lugar dos vivos, repetindo cenas e rituais que não tinham mais sentido algum, pois cenas e rituais de um morto que luta por não querer saber.

Podemos dizer que não apenas sujeitos mas sociedades podem entrar neste tempo paralisado e em apodrecimento.

Elas serão submetidas a um espetáculo miserável de mortos que agem como se estivessem vivos, que ocupam o espaço dos vivos, que continuam a fazer discursos que já não têm realidade alguma, que julgam a partir de uma autoridade que eles já não têm.

Essas sociedades acreditam poder se estabilizar sobre uma profunda ausência de legitimidade, um pouco como esses personagens de desenho animado que continuam a correr mesmo que não estejam mais em solo firme, mas no abismo. Essas são sociedades cuja paixão central é o desejo de não querer saber.

O Brasil das últimas semanas demonstrou claramente o que isso significa. Comandado por uma casta política de pessoas mortas, em grau profundo de corrupção e desagregação, ele parece querer continuar sem saber que já não existe mais sequer como democracia mínima de fachada.

O Brasil assumiu de vez sua face de oligarquia cujos governantes e juízes permanecem no poder a despeito de qualquer consideração pela vontade popular.

Pouco importa se seu governo foi indicado pela imprensa internacional como um dos cinco mais impopulares do mundo, se as manifestações contra ele se espalham pelo país. Isso não irá influenciar as decisões governamentais, não irá modificar seus discursos.

Pouco importa se seu "presidente" foi gravado em caso explícito de formação de quadrilha, prevaricação e cumplicidade com banditismo.

Os juízes agirão como se as gravações não existissem e utilizarão, ainda, os mais rasteiros sofismas para se justificarem.

Mas, quando os mortos sobem à cena, uma explicitação importante ocorre no nível dos discursos. Vemos então uma forma de conservação de discursos desprovidos de legitimidade, de práticas discursivas repetidas tendo em vista certa "estabilização na anomia" que poderíamos chamar de "cinismo".

Cinismo não é apenas um julgamento moral, mas uma certa forma de racionalidade.

Cínicas são as ações nas quais repetimos a aparência de legitimidade, mesmo sabendo que todos compreendem que se trata apenas de aparência.

Um pouco como vimos na semana passada, com uma verdadeira aula de cinismo ilustrado dada pelo pilar do desgoverno atual, a saber, o grão-tucanato.

O mesmo tucanato que entrou como uma ação de cassação de chapa Dilma-Temer, que insuflou o presidente do TSE, homem de relações orgânicas com o partido, a não levar adiante a cassação, para no final afirmar que iria recorrer da decisão tomada "por si próprio", mesmo que seu partido continue a prometer juras de amor e a sustentar o governo.

Essa racionalidade cínica exige que a repetição da aparência deva ser feita como se estivéssemos diante da exigência de continuar a jogar um jogo sem sentido, a ter uma crença desprovida de crença, a fingir que democracia ainda há.

Há uma função "terapêutica" nisso tudo. Pois assim poderemos ridicularizar o poder ao mesmo tempo que a ele nos submetemos.

De fato, em seus momentos de desagregação o Brasil não leva sua casta dirigente à guilhotina, não invade o Ministério da Fazenda ou seus palácios.

Ele encontra alguma forma de alívio em submeter-se a um poder que não exige mais crença alguma.

Como se fosse possível continuar a viver esquecendo, por um momento, que o poder existe.

No entanto países que um dia levaram seus dirigentes à guilhotina e à forca (como a França e a Inglaterra) conseguiram civilizar minimamente sua classe dirigente.

Eles a civilizaram através de certo medo pelo povo que se inscreve no imaginário do poder.

Com guilhotina ou não (pois isso pode ser visto apenas como metáfora), uma coisa é certa; no Brasil, falta ao poder temer o povo.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Lula brincou de republicanismo na terra dos coronéis. Lula errou muito.




Rodrigo Perez Oliveira

Não dá mais pra tampar o sol com peneira: Lula errou, e errou feio.

Não é fácil admitir; tenho 31 anos. Votei pela primeira vez aos 16, em Lula. É óbvio!

Sempre votei junto com Lula, para todos os cargos. Todos! Lula apoiava e eu ia lá e pá! Votava.

Votei em Sérgio Cabral, votei em Eduardo Paes. Entendia como o preço a ser pago por algo maior.

Votei sim, com cinismo.

Durante a metade desses 31 anos de vida, olhei para o governo federal e vi o partido dos trabalhadores lá, tocando o projeto político que me formou.

É que sou da geração REUNI, entendem? Me formei como professor e intelectual, da graduação ao doutorado, na universidade pública administrada pelos governos petistas.

Todo aquele papo que vocês já conhecem: primeiro universitário da família, e blá, blá blá.

Trabalhei e estudei muito, muito mesmo. Mas tenho certeza, absoluta certeza, de que não chegaria aqui sem as políticas públicas petistas.

Sou um entusiasta da ideia de mérito, pois uma sociedade que não se fundamenta no mérito acaba se transformando no império dos privilégios.

Não podemos entregar a ideia de “mérito” numa bandeja de prata para a direita. Precisamos disputar essa narrativa, e reconhecer que toda a ascensão social da última década se explica pelo encontro virtuoso entre mérito e política pública.

Não foi só mérito. Não foi só política pública. É o encontro entre os dois.

Confesso que é muito difícil pensar o governo federal brasileiro sem o Partido dos Trabalhadores, sem as inaugurações das unidades do Minha Casa Minha Vida. É triste.

Mas o tempo passa, e na medida em que os governos petistas vão cada vez mais se transformando em ausência, vou conseguindo ter uma leitura mais sóbria disso tudo, menos apaixonada.

E como a sobriedade é o terreno da crítica, vai lá a minha, sob a forma de um textão.

Não é, exatamente, uma autocrítica, pois jamais tive uma relação fisiológica com o partido. Por vários momentos, fiquei a um passo de formalizar esse vínculo, mas nunca fiz. Não sei bem por quê.

Enfim.

O grande erro do PT foi o grande erro de Lula, pois já há algum tempo, Lula é maior que o PT, para o bem e para o mal.

Foi um erro conceitual. Foi um erro relativo à percepção de mundo, à compreensão do que é o Brasil.

Justo Lula, tão sagaz, tão sensível para o entendimento da realidade brasileira. Ele errou e errou feio.

Explico.

É que algumas ideias circulam como o ar, entendem ?

Algumas ideias estão em todos os lugares, configurando nossos sentidos, mediando nossa relação com o mundo. Se quiserem, podem chamar isso de "senso comum". A gente nem sabe de onde a ideia veio e por que pensa assim. Mas pensa. É algo tão profundo que se torna quase uma natureza.

O erro de Lula tá aí. Talvez nem dê pra chamar de erro.

Não! Vou chamar de erro sim! Não vou aliviar o sapo barbudo. Não dessa vez! Vou botar pra fuder mesmo. Não tô nem aí. Chega! Perdi a paciência!

Lula naturalizou uma das principais narrativas de fundação do Brasil, exatamente aquela que define nossas elites como “cordiais”, “paternais”.

Nossos senhores de escravo seriam mais generosos. Nossos patrões seriam mais bondosos. Nossa Casa Grande seria a morada não apenas da opressão, mas também do cuidado, da proteção.

O mito da cordialidade senhorial brasileira é tão forte, mas tão forte, que, de alguma forma, ele se faz presente em todos nós.

O mito da cordialidade senhorial estava em Lula, prefigurando a sua ação política, a sua interpretação do Brasil.

“Lula gosta de vida boa e cachacinha. Faz tudo pelos pobres, mas nunca quis incomodar os de cima”, disse Marcelo Odebrecht, em delação premiada.

Essa frase merecia mesmo um prêmio, um Oscar!

O aforismo define Lula com perfeição: Lula se convenceu de que seria possível melhorar a vida dos pobres sem incomodar os de cima. Lula comprou mito da cordialidade senhorial.

Lula, meus amigos, superestimou as elites brasileiras.

Lula pensou: “porra, é só Bolsa Família. Três refeições por dia. O dinheiro vai pro mercadinho, movimenta a economia. Ninguém vai se incomodar com isso”.

Lula pensou: “qual o problema do pobre estudando na universidade? Quanto mais gente estudando, melhor pra todo mundo, mais educada fica a sociedade”.

Lula pensou: “quanto mais gente andando de avião, mais as passagens ficam baratas. Melhor pra todo mundo”.

Lula errou, errou feio, errou rude. Lula não imaginavam que as elites brasileiras pudessem ser tão baixas.

Lula estava convencido de que dava pra melhorar a vida dos pobres sem incomodar os de cima. Afinal, uma coisa não necessariamente resulta na outra.

Certo?

Não, não e não.

Não porque o cálculo dessa gente não é objetivo. Nossas elites não são racionais. Nossas elites são de tipo antigo, estão atravessadas pela noção de privilégio.

A madame de Copacabana, viúva de militar, pensionista, não quer saber se é melhor, racionalmente falando, viver em um país onde as pessoas comam três vezes por dia. O simples fato de o pobre “ganhar” alguma coisa, uma merrequinha que seja, incomoda a rentista, a parasita que não trabalha, que não produz porra nenhuma pra ninguém.

O jornalista do Leblon não quer saber se o aquecimento do consumo é algo positivo pra economia do país. O simples fato de descer do prédio e ver as Tvs expostas nas vitrines das Casas Bahia tocando brega, funk e sertanejo lhe enoja. É isso: ele sente nojo, asco daquela estética, daquele tipo de gente.

A professora universitária não quer saber se a passagem de avião tá mais barata. Ela olha pro lado e ver o mestiço ali, de bermuda e chinelo, quase encostando nela. Tá muito perto, tá igualado pela posição de consumidor.

É outra lógica da luta de classes, entendem? É a luta de classes materializada na forma de convívio nos espaços de consumo, de gozo.

Nossa elite não consegue aceitar o gozo do pobre. Para as nossas elites, o pobre só deve gemer de dor. O prazer é monopólio, é privilégio.

Nossas elites são sádicas.

É com esse tipo de gente que convivemos, amigos. Um cabra que nem o Aécio, por exemplo, que manda matar, manda demitir e foda-se. É uma gente que não tem limites.

Lula vacilou, vacilou muito.

Lula achou que não precisava barbarizar, achou que dava pra todo mundo conviver em harmonia.

Lula não quis ser caudilho. Não quis cultivar um dispositivo militar. Não quis fechar a Globo. Não quis fazer culto à imagem. Não quis botar um busto de bronze em cada buraco desse país. Não quis um terceiro mandato. Não quis rasgar a constituição.

Lula não quis aparelhar o judiciário. Puta que Pariu. Lula errou muito.

Em algum momento, Lula achou que o problema do Brasil estava resolvido, e que era hora de sair de cena. Lula chegou a pensar em abandonar a política, e se tornar uma liderança mundial no combate à fome; um líder identificado com uma agenda humanista, suprapartidária.

Tolo!

Lula brincou de republicanismo na terra dos coronéis. Lula errou muito.

Lula achou que nossas elites o perdoariam, o deixariam em paz.

Lula achou que essa gente perdoaria sua ousadia.

Lula achou que poderia se sentar à mesma com eles. Beber o mesmo vinho.

Eles não engolem, eles não aceitam esse peão cachaceiro, insolente. Analfabeto.

Lula errou em se deixar levar pelo mito da cordialidade senhorial, e pagou caro, muito caro.

Pagou com a infelicidade dos filhos e netos, com a morte da companheira de uma vida. Lula sofrerá até o último momento de sua vida.

Lula será odiado por essa gente mesmo depois de morto.

Lula errou, e errou feio.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Vivi na pele o que aprendi nos livros



Um encontro com o patrimonialismo brasileiro*

Eu já havia trabalhado com Dilma Rousseff por um ano, ao longo da transição do Ministério da Educação para Aloizio Mercadante. Conhecia seu estilo tanto como ministra-chefe da Casa Civil quanto como presidenta da República. E, ao contrário do que se diz dela, que é “democrática” no tratamento duro que dedica aos subordinados, eu diria até que sempre me tratou com consideração. Em dezembro de 2012, ainda antes de minha posse no Edifício Matarazzo, fui a Brasília para aquela que seria a nossa primeira audiência de trabalho após minha eleição como prefeito de São Paulo.

Em um contato rápido que havíamos tido na manhã seguinte ao segundo turno, eu já havia insinuado à presidenta que entendia que o governo federal deveria tratar São Paulo de maneira singular, em função de sua importância. Ela então me olhou com um sorriso irônico, como quem diz “Não me venha querer levar vantagem”. Pensando em retrospecto, creio que a relação de Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente.

Dilma me recebeu em seu gabinete no 3º andar do Palácio do Planalto, ao lado dos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior, do Planejamento, Orçamento e Gestão. Comigo estava o secretário de Finanças Marcos Cruz, que o empresário Jorge Gerdau havia me apresentado e que deixara a consultoria McKinsey para organizar as contas da prefeitura.

As reuniões com Dilma têm sempre uma carga elétrica no ar. O ambiente nunca é relaxado, e aquele dia foi se tornando mais tenso à medida que o debate transcorria. Minha expectativa era realizar um primeiro encontro com ministérios estratégicos para definir o que Brasília poderia fazer para mudar a cara de São Paulo. Mas o que ouvi foi a demanda exatamente oposta: o que São Paulo faria para ajudar o governo federal? Sem muitos preâmbulos, a audiência passou direto a uma questão bastante específica: o reajuste da tarifa de ônibus no município. Percebi na hora que o clima de celebração pela minha vitória tinha passado e que aquilo era um balde de água fria.

A questão da tarifa havia se tornado um problema para a equipe econômica, que lutava contra o repique da inflação. Eu sabia que me seria demandado algo muito difícil: a manutenção do preço depois de um congelamento que já durava dois anos, já que o último reajuste da tarifa em São Paulo ocorrera em janeiro de 2011. Assim, cheguei à reunião com uma proposta alternativa.

Ainda durante a campanha, eu havia encomendado a alguns pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, encabeçados pelo professor Samuel Pessôa, um estudo sobre a eventual municipalização da Cide como fonte de financiamento do transporte público. A Cide, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, é um tributo de arrecadação vinculada, de competência da União, que incide sobre a importação e a comercialização de gasolina, diesel e derivados. A ideia seria a municipalização desses recursos a fim de que o transporte individual motorizado em nossas grandes cidades respondesse pelo subsídio ao transporte público.

Argumentei que o represamento do preço da tarifa não seria um bom expediente para combater a inflação. Mesmo que o Rio de Janeiro também o adotasse, como era o plano, estávamos falando de um único “preço”, em apenas duas cidades. Imaginar que tal congelamento pudesse colaborar significativamente para combater a inflação em âmbito nacional não me parecia razoável. Fiz, por fim, um apelo: “O tamanho do esforço que terei de fazer no plano local, com um impacto de 600 a 700 milhões de reais por ano, é desproporcional ao benefício que vocês terão. É um sacrifício enorme para um primeiro ano de mandato e não vai ter o efeito que vocês imaginam.” O governo, porém, mantinha-se inflexível.

Apresentamos, então, os números do estudo da FGV, provando inclusive que o resultado que se teria optando por aumentar a gasolina em vez da tarifa dos transportes coletivos seria deflacionário. O que oferecíamos ao governo federal, portanto, era uma alternativa que ia ao encontro daquilo que eles pretendiam, com um ganho de política pública indiscutível. Criava-se uma espécie de “pedágio urbano”, desestimulando o uso do carro e estimulando o do transporte coletivo, mais barato.

A equipe econômica levantou dúvidas sobre o caráter deflacionário da medida. Com o estudo à mão, eu dizia que, no frigir dos ovos, seria melhor optar pelo financiamento via Cide, pois o aumento da gasolina impacta menos na cesta de produtos que compõe o índice de inflação do que o aumento da tarifa. Além de ser uma solução estrutural e definitiva, em que a tarifa deixa de ser um problema que se repete a cada dois ou três anos em nossas cidades. A proposta de municipalização da Cide foi liminarmente descartada e o debate morreu, com a assertiva final de que não era “hora de mexer com o preço da gasolina”.

Estranhei a insensibilidade diante de uma oportunidade única: havíamos ganhado a cidade de São Paulo, derrotando no segundo turno o principal presidenciável tucano, José Serra. Na época em que fui ministro da Educação, eu sempre disse ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, desde 1932, o Brasil nunca havia se reconciliado de fato com São Paulo, nem São Paulo com o país. E quando Lula me encomendou o maior plano de expansão da rede federal de educação superior e profissional, com universidades e escolas técnicas que interiorizamos pelo país, fiz questão de lembrá-lo da pouca presença federal no principal estado da federação. Ele então questionou: “Mas São Paulo precisa? Já tem a USP, a Unicamp, a Unesp, a Fundação Paula Souza…” Insisti: “Mas não tem rede federal.” Assim, criamos a Universidade Federal do ABC, a Unifesp foi expandida pela região metropolitana e a UFSCar, pelo interior de São Paulo. Além do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, que ocupou o lugar do Cefet [Centro Federal de Educação Tecnológica] de São Paulo, que até então tinha apenas duas escolas e hoje tem mais de trinta.

Quando ganhei a eleição para a Prefeitura de São Paulo, pensei: “Quem sabe podemos começar nosso acerto de contas com 1932?”

Meu primeiro encontro de trabalho com Dilma mostrava que eu havia me equivocado. Ela encerrou a conversa, me acompanhou até a porta e disse uma frase de que não me esqueço: “Espero que o nosso próximo encontro seja mais produtivo.”

Sou filho do casamento de um comerciante libanês com uma normalista. Aprendi em casa a negociar e conversar, e tenho um temperamento em geral tranquilo, mesmo nas situações mais adversas. As pessoas confundem isso com frieza, mas não é. Choro até com propaganda de tevê. Mas costumo ser focado e dificilmente perco a cabeça. Meu corpo, no entanto, às vezes reage. É uma coisa neuromuscular, incontrolável.

Na saída daquela audiência, quando entrei no carro com o secretário Marcos Cruz, essa reação corporal foi muito forte. Ele estranhou, achou que o contratempo na reunião não era para tanto. O que eu sentia ali era algo que já havia experimentado algumas outras vezes na vida: mais do que um mal-estar ou uma simples angústia, era uma espécie de intuição, a sensação nítida de que algo muito sério estava se passando, de que havia um risco real e iminente.

Alguma coisa estava muito errada: não se pensa em controlar a inflação de um país continental pelo represamento de uma tarifa municipal sem atravessar estágios intermediários e sucessivos de uma compreensão equivocada. Não se chega a um erro deste tamanho sem ter feito um percurso todo ele equivocado. Não se produz estabilidade macroeconômica por intervencionismo microeconômico. Foi essa sensação que me tirou do sério naquela manhã em Brasília.

Sensação semelhante, de percepção dos próprios limites diante de uma situação que indica maus presságios, eu tive em 2011, no Ministério da Educação, durante a crise do chamado “kit gay”. A história toda, a começar pela expressão preconceituosa, é um exemplo de como uma informação falsa pode ser criada (e deliberadamente mantida) com intenções políticas nefastas – e consequências sociais que reverberam até hoje.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara, acertadamente, aprovou uma emenda de bancada ao orçamento, designando recursos para um programa de combate à homofobia nas escolas. O Ministério Público questionou o MEC sobre a liberação da emenda. Só então o MEC entrou na história, solicitando a produção do material a uma ONG especializada. No exato momento em que o material foi entregue para avaliação, eclodiu a crise do “kit gay”.

Desde o início, quem lia as notícias imaginava que aquela era uma iniciativa do Executivo, quando na verdade a demanda havia sido do MP e do Legislativo. Também se sugeriu que o material estivesse pronto e já distribuído, quando sequer havia sido examinado. Expliquei tudo à imprensa e às bancadas evangélica e católica do Congresso, e o mal-entendido parecia desfeito. Despreocupado, viajei no dia 25 de maio a Fortaleza para receber o título de Cidadão Cearense. Então, durante a minha ausência de Brasília, um material de outro ministério, o da Saúde, foi apresentado como sendo o tal “kit gay” do MEC para as escolas. Esse outro material se destinava à prevenção de DST/Aids e tinha como público-alvo caminhoneiros e profissionais do sexo nas estradas de rodagem – com uma linguagem, portanto, direta e escancarada.

O deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) exibiu em plenário a campanha do Ministério da Saúde dizendo que eu havia mentido no dia anterior e que as escolas de Campos dos Goytacazes, onde a mulher dele, Rosinha Garotinho, era prefeita, já dispunham de exemplares para distribuir aos estudantes. Aquilo virou um caldeirão. Gilberto Carvalho, então chefe de gabinete da Presidência, me telefonou alarmado. Eu disse: “Gilberto, pare dois segundos para pensar e se acalme. Isso não existe. O material para as escolas ainda está na minha mesa, não há chance de ele ter sido distribuído.”

Era, evidentemente, uma armação, explicada inúmeras vezes para a imprensa, mas a confusão já estava feita. E a polêmica do “kit gay” – que foi sem nunca ter sido – estendeu-se por meses. Em junho, às vésperas da Marcha pela Família, convocada por grupos religiosos em Brasília, recebi em meu gabinete o senador Magno Malta (PR-ES) para conversar sobre o assunto. Em determinado momento, ele elevou o tom e começou a me ameaçar. Disse que a Marcha ia parar na frente do MEC, que eles iriam me constranger. Mantive o tom calmo que sempre adoto: “Mas, senador, o senhor conhece a história, sabe que não é verdade.” Não adiantou. Percebi, então, que aquilo não era uma questão de argumentos, mas um jogo de forças. E eu disse, também com o tom de voz mais alto: “Então venham. Hoje à noite eu vou rezar um Pai-Nosso e amanhã nós vamos ver qual Deus vai prevalecer, o da mentira ou o da verdade.”

O senador parou, abriu um sorriso e pegou na minha mão: “Você é um homem de Deus. Se acredita n’Ele, eu acredito em você.”

Voltei a esse episódio já relativamente antigo porque ele me parece exprimir muito bem um fenômeno que o ultrapassa. Em um artigo recente para a revista nova-iorquina Dissent, a filósofa norte-americana Nancy Fraser discutiu a eleição de Donald Trump e o que chamou de “derrota do neoliberalismo progressista”. No texto, Fraser mostra como se constituiu nos Estados Unidos a disputa entre duas modalidades de direita: o neoliberalismo progressista dos governos Clinton e Obama e o protofascismo de Trump, com seu discurso protecionista na economia e seu conservadorismo regressivo em relação aos costumes e direitos civis. Pode-se discutir se é correto enquadrar Obama no campo neoliberal, mas o que importa preservar do argumento da autora, nesse embate, é que a grande vantagem do neoliberalismo americano, que era o diálogo com as minorias – LGBT, mulheres, negros e imigrantes –, se perdeu.

O que vimos no Brasil dos últimos anos foi algo um pouco diferente: essas duas modalidades de direita em boa medida se fundiram, de modo que mesmo nossa direita neoliberal passou a cultivar a intolerância. A vitória socioeconômica do projeto do PT até 2013 foi tão acachapante – crescimento com distribuição de renda e ampliação de serviços públicos – que sobrou muito pouco para a versão civilizada da direita tucana. Ela não podia mais se dar ao luxo de ser neo-liberal e progressista. Para enfrentar a nova realidade, os tucanos passaram a incorporar a seu discurso elementos do pior conservadorismo.

Temas regressivos foram insuflados no debate nacional. A campanha de José Serra à Presidência em 2010 foi um momento importante dessa inflexão tucana. Embora talvez fosse o desejo íntimo de alguém como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB não conseguiu se transformar na versão brasileira da agenda democrata norte-americana. Pelo contrário, ao radicalizar o discurso conservador, o partido revolveu o campo político de onde floresceu a extrema direita no Brasil. Quem abriu a caixa de Pandora de onde saiu o presidenciável Jair Bolsonaro foi o tucanato. Embora essa agenda pudesse vir à tona em algum momento, foram os tucanos que a legitimaram. Um equívoco histórico. Quando, pela mudança de conjuntura, se tenta abdicar desse ideário, isso já não é mais possível, pois logo aparece alguém para ocupar o espaço criado. Foi exatamente o que aconteceu: a extrema direita desgarrou e agora quer tudo – a agenda tucana e muito mais.

Um movimento semelhante ocorreu com a imprensa. Curiosamente, o veículo que mais respaldou essa pauta foi aquele de quem menos se esperava uma aproximação com o obscurantismo: o jornal Folha de S.Paulo. Sob o manto moderno do pluralismo, uma pretensa marca do jornal, a Folha legitimou, tornou palatável e deu ares de seriedade a uma agenda para lá de regressiva. Adotando inclusive a expressão “kit gay”, criada pela bancada evangélica do Congresso, o jornal deu dignidade a uma abordagem que contribuiu para que o debate sobre direitos civis atrasasse cinquenta anos no país.

Embora tenha desandado na cobertura noticiosa, a Folha continua utilizando o espaço dos editoriais para se apresentar como uma espécie de vanguarda da modernidade. O expediente tornou-se tão incongruente com as opções do noticiário que em determinado momento a Folha precisou alardear em peças publicitárias, no próprio jornal e na tevê, aquilo que seria seu posicionamento oficial sobre temas mais delicados. Vejo isso como um caso singular de cinismo que maquiava o embarque do jornal numa espécie de “neo-liberalismo regressivo”.

Um dos problemas do jornalismo no Brasil é a falta de regulação do mercado. Os meios de comunicação por aqui funcionam, do ponto de vista econômico, como oligopólio; e funcionam como monopólio do ponto de vista político. Chegaram a ponto de tentar tirar do ar, por via judicial, os portais de informação estrangeiros em língua portuguesa – como BBC Brasil, El País Brasil ou The Intercept Brasil –, invocando o artigo 222 da Constituição, que reserva aos brasileiros natos a propriedade de empresas jornalísticas.

Os grandes grupos de comunicação são geridos por famílias que pensam da mesma forma e têm a mesma agenda para o país, com variações mínimas. Em momentos cruciais de nossa história, como em 1964 e 2016, atuam em bloco.

Talvez a prova mais consistente de que esse oligopólio econômico funciona como monopólio político-ideológico seja o fato de que, à propriedade cruzada dos meios de comunicação, corresponde uma espécie de emprego cruzado no mundo do trabalho. Ou seja, os principais jornalistas do país, sobretudo aqueles que cumprem o papel de alter ego dos empregadores, podem estar – e rigorosamente estão – em qualquer lugar a qualquer tempo. Não se pode escapar da sua voz, imagem e comentários onipresentes, baseados ou não nos saberes dos “especialistas” de sempre, a não ser à custa de desesperado alheamento. Eles não só estão na emissora de tevê, na rádio e no jornal da mesma organização, como podem assinar uma coluna de jornal de um grupo de comunicação e, simultaneamente, comentar notícias na rádio ou tevê de outro. Em outras palavras, ocupam posições que só são plenamente intercambiáveis pelo caráter próprio do modelo. Algo que seria impensável em um país liberal como os Estados Unidos ou a Inglaterra, por exemplo. É bastante surreal que críticas ao modelo brasileiro de comunicação sejam apresentadas como um atentado à liberdade de imprensa, quando na verdade o modelo brasileiro é o que limita a atividade jornalística.

Claro que há limites para o poder desse monopólio político-ideológico. Num ambiente de relativa liberdade, os indivíduos trocam impressões, questionam, firmam contrapontos. Até as Organizações Globo, com todo o seu poderio, têm dificuldades em derrotar uma boa ideia. O Programa Bolsa Família, por exemplo, existe, apesar da Globo. Tentou-se por todos os caminhos deslegitimá-lo, desconstruí-lo, mas essa iniciativa de caráter eminentemente liberal é hoje recomendada a outros países do mundo pelo Banco Mundial. A promoção da igualdade racial é outro exemplo de ação que resistiu bravamente à tese “global”, bastante extravagante, da inexistência de racismo entre nós – tese que contraria absolutamente todas as evidências empíricas, em especial no que se refere à situação da mulher negra no país.

Por mais severo que fosse meu diagnóstico sobre a mídia brasileira, sempre procurei respeitar os profissionais da imprensa. O jornalismo, com todas as suas limitações, se bem exercido, é bastante útil à sociedade. Numa democracia, até uma imprensa ruim pode ajudar. O jornalismo crítico, mesmo quando desprovido de boas intenções, pode fazer bem ao poder público, fiscalizando a atividade política e trazendo pontos de vista novos que o administrador nem sempre observa, de modo a permitir aperfeiçoamentos e correção de rota.

Como prefeito, eu não nutria grandes expectativas sobre o tratamento que receberia da imprensa. Sabia que seria difícil. Vencer o would-be president José Serra na capital do assim chamado “Tucanistão” não ficaria impune. Mas confesso que, mesmo consciente das circunstâncias adversas que enfrentaríamos, os acontecimentos me surpreenderam.

Em dezesseis anos de vida pública, sempre mantive com as principais famílias proprietárias dos meios de comunicação uma relação cordial e respeitosa, em que pesem nossas diferentes visões de mundo. Não dispensava interlocução com os Marinho, os Frias e os Civita.

A abordagem destes três grupos de comunicação – Globo, Folha e Abril – em relação à minha administração oscilou da indiferença à tentativa de desconstrução das políticas públicas em curso. Era o melhor que se podia esperar: as críticas não eram pessoais; eram, em geral, políticas. À exceção do Bom Dia SP, da Globo, e sua destoante cobertura em comparação ao Bom Dia de qualquer outra capital do país, no que diz respeito a esses três grupos de comunicação as coisas andavam dentro do previsto, com uma ou outra exceção.

Houve casos insólitos, no entanto. A CBN certa vez publicou em seu portal reportagem cuja manchete anunciava: “Irmão de secretário de Haddad é denunciado por envolvimento na máfia do ISS.” Informada de que o denunciado era na verdade irmão de Rodrigo Garcia, secretário de Geraldo Alckmin, a emissora retificou a reportagem por meio de um duplo carpado hermenêutico para não mencionar o nome do governador.

A revista Veja São Paulo, por sua vez, alardeou, em matéria de 6 de fevereiro de 2015, que as ciclovias da prefeitura eram as mais caras na comparação com outras nove cidades estrangeiras. Misturaram alhos com bugalhos, desconsiderando projetos especiais que implicavam enterramento de fiação, readequação urbanística de canteiros etc. Mais de um ano de trabalho para desmentir o fato.

Em agosto de 2016, o Tribunal de Contas do Estado divulgou estudo denunciando que uma ciclovia provisória do Metrô de São Paulo havia custado “seis vezes mais que as ciclovias da prefeitura”, teoricamente uma das mais caras do mundo. A informação foi publicada na Exame. A gravidade das denúncias era inversamente proporcional à tiragem das revistas em que foram veiculadas.

Eu poderia citar dezenas de casos semelhantes. Mas problemas desse tipo não me incomodavam. O que de fato me deixava contrariado era a matéria jornalística que, para além de afetar a minha imagem ou a imagem do governo, afetava negativamente a vida dos beneficiários de políticas públicas. Mais ainda quando isso fazia crescer o preconceito e a intolerância em relação aos mais vulneráveis.

Não exagero em afirmar que o fim do programa De Braços Abertos é, em grande parte, resultado do tipo de cobertura da Folha. Até então, nenhum prefeito havia ousado atuar na Cracolândia, ao longo de vinte anos. O governo do estado, por sua vez, pouco êxito obteve na solução do problema ao longo dos mesmos vinte anos. Em apenas um ano o De Braços Abertos foi criado e o fluxo de moradores em situação de rua na Luz se reduziu em dois terços, de 1 500 para cerca de 500 pessoas. A situação dos acolhidos pelo programa foi atestada por uma pesquisa independente da Open Society Foundations, que reconheceu os méritos da política de redução de danos.

A publicação dos dados dessa avaliação externa só ocorreu na Folha após semanas de negociação – e foi seguida por reportagens que, na prática, isentavam completamente o governo do estado de responsabilidade pela ausência da polícia e consequente intensificação do tráfico na região. Do Recomeço, programa de internação do governo do estado, não eram exigidos resultados e muito menos avaliação externa. A cada eleição presidencial, o governo federal era cobrado pela vigilância de 17 mil quilômetros de fronteira seca, sem que o governo de São Paulo conseguisse vigiar um quarteirão da principal cidade do país.

Outros artifícios frequentes dos meios de comunicação são a omissão da autoria, o desvirtuamento da motivação ou a desigualdade de tratamento das políticas públicas. Existe uma diferença tênue entre capricho pessoal e construção de reputação. O primeiro caso atende pelo nome de vaidade; o segundo é uma exigência da democracia. O tratamento dado à informação pode impedir a construção da reputação de uns, enquanto alimenta a vaidade de outros. A inauguração do Hospital Vila Santa Catarina, na minha gestão, teve menos destaque que a recente reforma dos banheiros do parque Ibirapuera pela gestão de Doria.

O Fantástico chegou a fazer uma série de matérias sobre um programa municipal chamado FabLab – laboratórios de impressoras 3D que se espalham pelo mundo fomentando o empreendedorismo. Não me lembro de que tenham feito menção à Prefeitura de São Paulo. O programa Transcidadania, de assistência socioeducacional a travestis, foi, segundo a revista Veja, motivado pelos menos nobres sentimentos decorrentes da disputa entre mim e a senadora Marta Suplicy, quando a verdadeira motivação era a vontade de retomar a agenda contra a homofobia.

O que se percebe muito rapidamente é que a esfera pública está contida na mídia em vez de envolvê-la. O Brasil tem pouco mais de cinquenta cidades com mais de 400 mil habitantes, número que corresponde, na média, ao de moradores de cada uma das 32 subprefeituras da cidade. Numa escala tão grande como essa, um político não consegue ser avaliado pela forma como se apresenta, mas pela forma como é apresentado. Isso confere à mídia um poder enorme: ela tanto pode impedir que boas iniciativas se colem à imagem de um gestor, condenando-o à invisibilidade, como obrigá-lo a compartilhar responsabilidades que recaem sobre outra esfera de governo, superexpondo-o indevidamente.

Não bastassem os problemas estruturais de relacionamento da grande imprensa com qualquer governante de centro-esquerda, eu ainda tive problemas conjunturais com a segunda divisão dos meios de comunicação. Na minha percepção, foram muito mais danosos à imagem do governo do que os episódios até aqui narrados, porque impactaram diretamente a periferia da cidade. Nesses casos, a política transbordou para o pessoal.

Refiro-me, para ficar nos casos mais conhecidos, à atitude de desrespeito e escárnio do Estadão, da Record e da Bandeirantes perante a minha administração.

O Estadão recebeu bem minha indicação para o Ministério da Educação, chegando a fazer referências elogiosas à minha trajetória acadêmica interdisciplinar na Universidade de São Paulo. Quando meu nome começou a ser ventilado para concorrer a cargos majoritários, o comportamento do jornal mudou radicalmente. Contei 413 editoriais do Estadão – eu os coleciono – contra minha gestão à frente do MEC e da Prefeitura de São Paulo. Um par deles é particularmente significativo. No início de 2016, o jornal apostou que, sendo eu um “demagogo”, jamais reajustaria a tarifa de ônibus em ano eleitoral, mesmo que isso fragilizasse as finanças municipais num momento de crise econômica. Eu jamais me renderia à demagogia, mesmo sabendo que o último reajuste em ano eleitoral acontecera vinte anos antes, em 1996. Após o inevitável aumento, o Estadão critica a decisão num duro editorial intitulado “Cada vez mais caro e ruim”.

Com a Record, o contencioso envolvia a construção do Templo de Salomão. Quem licenciou a obra na gestão Kassab foi Hussain Aref Saab – então diretor do departamento de aprovação de edificações da prefeitura, acusado em 2012 de liberar obras irregulares em troca de propina. Entre outras coisas, a edificação invadia parte de uma zona especial de interesse social, destinada à moradia popular. A lei mandava demolir e esse argumento foi usado pela minha gestão para propor uma modalidade de acordo de leniência, aprovado por lei. A forma encontrada para indenizar a cidade previa a doação de um terreno com as mesmas dimensões e na mesma região, o que exigiria um dispêndio por parte da Igreja Universal do Reino de Deus de cerca de 40 milhões de reais. Essas negociações, que duraram anos, gerariam muito estresse em qualquer circunstância, mas o fato de a Record ter dentro de casa um candidato a prefeito, Celso Russomanno, agravava o quadro ainda mais.

Situação, aliás, muito semelhante à do Grupo Bandeirantes. Eu achava estranho o apresentador José Luiz Datena se recusar a conversar comigo. Dois almoços cancelados e uma animosidade incomum. Não imaginava que ele tivesse pretensões políticas, como mais tarde se revelou. O acesso à tela altera completamente as condições do jogo e os programas de tevê, nessas circunstâncias, se transformavam, um a um, em programas eleitorais. Foi difícil ter como potenciais adversários apresentadores de programas populares que dialogavam com a periferia diariamente.

O entrevero com a Band na verdade começou com o fim da Fórmula Indy. Cada edição custava 35 milhões de reais aos cofres paulistanos, piorava as condições do trânsito na Marginal Tietê e não trazia um centavo de retorno turístico para a cidade. Decidimos cancelar o evento. Plantamos vento e colhemos tempestade. A emissora promoveu uma campanha sistemática contra a atualização da planta de valores do IPTU e contra o plano municipal de mobilidade urbana. Premiado internacionalmente, o plano recebeu das emissoras de rádio do grupo o tratamento mais desqualificado que se poderia imaginar. Grande proprietário de terras na cidade, Johnny Saad chegou a me dar um telefonema dizendo: “Vamos para cima de você.”

Deixo a Jovem Pan para o final porque o comportamento da emissora em relação ao meu governo talvez seja a expressão mais transparente do déficit de republicanismo que há no Brasil.

Meus anos de universidade foram marcados pelo convívio com a nata da intelectualidade uspiana. Discutia filosofia com Paulo Arantes e Ruy Fausto, crítica literária com Roberto Schwarz, economia política com José Luís Fiori, história com Luiz Felipe de Alencastro, sociologia com Gabriel Cohn, direito com Dalmo Dallari e Fabio Comparato – e assim por diante. Estamos falando de grandes intelectuais a quem os jovens professores submetiam nossa produção acadêmica. Ver, de repente, e por imposição da atividade política, a minha produção acadêmica avaliada por comentaristas como Marco Antonio Villa e Reinaldo Azevedo foi um dos ossos mais duros de meu novo ofício. Em 1989, escrevi um livro intitulado O Sistema Soviético, uma crítica muito mais ácida àquele modelo do que, por exemplo, a elaborada por Bresser-Pereira no seu A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, de 1981. Na verdade, minha tese antecipava o diagnóstico feito pelo pensador alemão Robert Kurz em O Colapso da Modernização. Não obstante, nossos dois comentaristas leram e não entenderam, considerando o livro, para meu espanto, uma defesa do comunismo.

Em relação a mim, a Jovem Pan não fazia propriamente jornalismo, mas algo como uma campanha persecutória. Basta ir aos arquivos da emissora para constatar. Villa resolveu utilizar seu tempo para me difamar diariamente a partir de uma análise pedestre da agenda institucional do prefeito. Diante da recusa da jp em considerar os dados oficiais sobre minha jornada de trabalho, adotamos um procedimento didático que desmoralizou nosso acusador. Por poucas horas mantivemos no portal da prefeitura uma agenda no padrão da cumprida por políticos que esse pseudointelectual gosta de bajular. Ele mordeu a isca e fez os comentários raivosos de praxe para me desqualificar. Então informei o trote pelo Facebook. Até aí, só bom humor. Inconformado, entretanto, o comentarista cobrou no ar, ensandecido, providências do Ministério Público. E elas chegaram na forma de uma ação de improbidade, da qual já fui absolvido, e de um inquérito criminal, em curso.

Li praticamente todos os clássicos sobre a formação do Brasil. Conhecia teoricamente o nosso país. Mas a experiência prática é insubstituível. Vivi na pele o que li nos livros.

O Brasil conheceu períodos democráticos em sua história, mas nunca um período republicano, ou essencialmente republicano, em que as instituições não se envolvem no mérito das disputas partidárias. A discussão sobre as contradições entre república e democracia foi exposta com perspicácia pelos federalistas norte-americanos, há mais de 200 anos. Os Pais Fundadores observavam que a democracia podia facilmente degradar-se em tirania da maioria. Pensaram então numa série de contrapesos, em instituições que pudessem impedir a tirania sobre minorias e preservar o país da ação de facções.

O Brasil deixaria Madison, Jay e Hamilton de cabelos em pé. Quando se olha para as instituições do país, vê-se logo que são tomadas por uma espécie de luta interna entre seus propósitos mais nobres e uma encarniçada disputa político-partidária, que obedece à lógica das facções. As instituições que deveriam apenas “garantir o jogo” democrático têm apetite por “jogar o jogo”, o que o torna menos democrático.

Costuma-se dizer que é complicado administrar uma cidade como São Paulo, mas a mim isso sempre foi extremamente estimulante. O problema é que instituições que deveriam funcionar para, na forma da lei, dar respaldo a quem ganha as eleições para executar seu plano de governo agem, muitas vezes, de forma facciosa. Hoje a bandeira a empunhar talvez fosse a da “justiça sem partido”.

No primeiro ano de mandato, além do impacto do represamento da tarifa de ônibus no orçamento municipal, outro evento – na verdade, uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) – fez com que, em dezembro, eu rebaixasse ainda mais as expectativas sobre minhas possibilidades de êxito.

A decisão judicial inexplicável, que trouxe graves prejuízos à administração, foi a que barrou a atualização da chamada Planta Genérica de Valores do IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano, em dezembro de 2013, a partir de uma liminar pedida pelo PSDB e pela Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Não havia na jurisprudência precedente de um tribunal suspender a revisão da base de cálculo de um tributo. Mas aconteceu. Um erro que a Justiça só reconheceu um ano mais tarde, depois de termos perdido o equivalente na época a 850 milhões de reais de arrecadação, valor suficiente para a construção de vinte CEUs, o Centro Educacional Unificado. Além de estar prevista em lei municipal e na venerada Lei de Responsabilidade Fiscal, a revisão implicava uma redução significativa do imposto nas periferias e seu aumento no centro expandido, onde os imóveis experimentaram uma brutal valorização. Era, portanto, uma medida que promovia justiça social.

Tenho gravada na memória a audiência que tivemos com o ministro Joaquim Barbosa no dia 19 de dezembro de 2013 para tentar revogar a liminar. Primeiro ele atendeu o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e seu advogado Ives Gandra Martins. Só depois a mim e ao procurador do município. Era nítida a diferença de tratamento, de postura, de tom, a nosso desfavor. Na audiência discutimos a situação política do país, a elevada carga tributária, e até o valor do IPTU do imóvel do ministro no Rio de Janeiro, na opinião dele muito alto. Questões eminentemente jurídicas não receberam nenhuma atenção. O pedido de cassação da liminar nos foi negado, fato só revertido no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, com larga margem de votos a nosso favor, um ano depois – leite já derramado. Infelizmente, na política, quando a Justiça tarda, ela falha.

Se o primeiro ano de governo foi marcado pelo dissabor dessa decisão, no quarto ano vivi um episódio lastimável envolvendo um membro do Ministério Público Estadual. O caso gira em torno da Arena Corinthians, construída pela Odebrecht. Como se sabe, quando prefeito, Kassab aprovou uma lei que permitia ao Executivo emitir 420 milhões de reais em títulos, em nome do clube, que poderiam ser usados para pagamentos de tributos municipais. Com isso, viabilizava-se a construção do estádio para a abertura da Copa do Mundo. Um promotor de Justiça entrou com uma ação contra essa lei. E os títulos viraram um mico nas mãos do clube e da empreiteira. Alegando que haviam sido prejudicados pela ação, Corinthians e Odebrecht reivindicaram que a prefeitura, diante do imbróglio, recomprasse os papéis, invendáveis dada a insegurança jurídica provocada pela atuação do Ministério Público.

Obviamente recusei a proposta, que seria lesiva ao município. Foi quando fiquei sabendo de um suposto incidente gravíssimo envolvendo o promotor de Justiça Marcelo Milani. Fui informado de que, para não ingressar com a ação judicial, o promotor teria pedido propina de 1 milhão de reais. Eu respondi que essa informação não mudava o teor da minha decisão, contra a recompra, e que não me restava alternativa como agente público senão levar o fato relatado ao conhecimento da Corregedoria-Geral do Ministério Público, para que fosse devidamente apurado.

Por recomendação do meu secretário de Segurança Urbana, Roberto Porto, ele mesmo membro do Ministério Público, chamei em meu gabinete um assessor do corregedor do órgão, Nelson Gonzaga de Oliveira, e repassamos a informação do suposto pedido de propina. Fizemos isso com a maior discrição. Sem uma ampla investigação, não haveria como atestar a veracidade da informação contra o promotor, que eu sequer conhecia. Minha denúncia, contudo, chegou aos ouvidos do próprio Marcelo Milani. E desde então ele adotou uma atitude persecutória contra mim.

Dou exemplos. A Controladoria Geral do Município, que criamos, foi responsável por flagrar atos de corrupção no Theatro Municipal. Assim que a irregularidade foi detectada, nomeamos um interventor e estabelecemos uma parceria com o Ministério Público, bloqueando os bens comprados com o dinheiro da corrupção pelos envolvidos, que confessaram o crime. Uma CPI, de maioria oposicionista, criada pela Câmara Municipal decidiu excluir por unanimidade qualquer menção ao meu nome do relatório final, por entender que nada havia contra o prefeito neste caso. O promotor Marcelo Milani, ainda assim, encontrou uma maneira de propor uma ação de improbidade contra mim.

Mas talvez seja em outra ação de improbidade, relativa ao destino dos recursos de multas de trânsito, que o comportamento impróprio do promotor tenha ficado mais patente. Milani moveu duas ações semelhantes com o mesmo fundamento, uma contra a prefeitura, outra contra o estado. No primeiro caso, convocou-se uma coletiva de imprensa e o chefe do Executivo, o prefeito, figurava como réu por improbidade; no segundo, uma breve nota substituiu a coletiva de imprensa, o governador não figurava como réu e o processo acabou arquivado por perda de prazo pelo promotor. A isso eu chamo de comportamento faccioso. Fatos como esse são muito mais corriqueiros no Brasil do que se imagina.

***

Volto a 2013, de onde parti, para enfrentar a pergunta fundamental se quisermos entender os últimos anos e a situação atual do país: como explicar a explosão de descontentamento ocorrida em junho daquele ano, expressa na maior onda de protestos desde a redemocratização? O desemprego estava num patamar ainda baixo; a inflação, embora pressionada, encontrava-se em nível suportável e corria abaixo dos reajustes salariais; os serviços públicos continuavam em expansão, e os direitos previstos na Constituição seguiam se ampliando.

Cabem, ao menos, três reflexões a respeito de 2013: sobre as classes médias, sobre a polícia e sobre as redes sociais.

O Marx da maturidade foi obrigado a ceder a um argumento que só seria apresentado formalmente décadas depois pelo economista Joseph Schumpeter. Foi quando a tese marxista da pauperização da classe trabalhadora deu lugar a um raciocínio mais sofisticado. Como decorrência do incrível progresso tecnológico próprio do capitalismo, os salários poderiam, segundo seus textos mais tardios, aumentar continuamente – o que significava dizer que a situação da classe operária poderia melhorar em termos absolutos.

Ainda assim, o velho Marx não se viu obrigado a rever, por força dessa inflexão, seus prognósticos sobre a evolução da luta de classes. Isso porque ele avaliou que o relevante para a dinâmica de classe era a posição relativa das classes, e não sua posição absoluta. Importava mais a distância que separa as classes entre si, num dado momento, do que a comparação de uma classe com ela mesma ao longo do tempo.

O advento da social-democracia representou para o marxismo um desafio adicional. Nos chamados anos dourados do capitalismo, que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, não só a posição absoluta dos trabalhadores nos países desenvolvidos – o núcleo duro do sistema – melhorou continuamente, como a classe trabalhadora desses países viu sua posição relativa se alterar favoravelmente. O fenômeno, expresso nos indicadores de desigualdade social, é reconhecido pela economia política em geral – seja ele consequência das guerras mundiais, do desafio soviético ou da lei de ferro que estratifica as economias nacionais, concentrando riqueza oligárquica no núcleo duro do sistema.

O Brasil, por sua vez, é um país fortemente estratificado: a desigualdade sempre foi a marca da nossa sociedade. Somos um misto de sociedade de “castas” com meritocracia. O indivíduo pode, por esforço e talento próprios, mudar de casta sem reencarnar – mas a posição relativa das “castas” há de ser mantida.

Durante o governo Lula essa estrutura começou a se alterar e, aparentemente, gerou grande mal-estar: os ricos estavam se tornando mais ricos e os pobres, menos pobres. Por seu turno, as camadas médias tradicionais olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem. Sua posição relativa se alterou desfavoravelmente. Se os rendimentos dessas camadas médias não perderam poder de compra medido em bens materiais, perderam-no quando medido em serviços.

O verdadeiro shopping center das camadas médias brasileiras sempre foi o mercado de trabalho. A abundância de mão de obra barata lhes garantia privilégios inexistentes no núcleo duro do sistema. A empregada barata, a babá barata, o motorista barato. Serviços domésticos em quantidade eram a grande compensação pela falta de serviços públicos de qualidade.

A princípio, o desconforto não tinha como se expressar politicamente, pelo menos não da forma tradicional. Num dos países mais desiguais do mundo, defender a desigualdade não traria à oposição a projeção necessária nos embates no plano socioeconômico. Esse desconforto encontrou sua expressão possível pelo discurso da intolerância – contra pobres (Bolsa Família), pretos (cotas), mulheres (aborto), gays (kit) ou jovens (maioridade penal) –, que flertou com o fundamentalismo, violento ou religioso.

A panela de pressão estava ali, acumulando energia, e só não explodia porque o palpável sucesso econômico do governo a impedia. E, ao contrário do que já vinha acontecendo no restante da América Latina, na Venezuela, na Argentina, no Peru, no Equador e na Bolívia, a direita no Brasil ainda não tinha saído às ruas. A partir de 2006, em particular com a reeleição de Lula, apesar do aumento contínuo da aprovação ao governo, já se podia perceber um sentimento crescente de desalento por parte de setores mais tradicionais.

E veio a fagulha, acesa num protesto organizado pelo MPL, o Movimento Passe Livre, contra o aumento da tarifa de ônibus – um reajuste, é bom lembrar, de apenas 6% diante de uma inflação acumulada de 17%. Eu sabia que a situação exigia cuidado, que teria repercussão, ainda mais sendo eu o prefeito, mas imaginava que conseguiria estabelecer um diálogo com os manifestantes que, a princípio, recusaram o aceno.

Eis que entra em cena o “comando da polícia”, uma entidade desde sempre mais preocupada com a ordem pública do que com a segurança pública, mais preocupada com os deveres do cidadão do que com seus direitos.

Na ocasião, a administração municipal se desgastava com a cúpula da Polícia Militar em função da readequação das regras de remuneração da chamada Operação Delegada, programa criado por Kassab mediante o qual o município repassava mais de 100 milhões de reais para a corporação por serviços de combate aos ambulantes ilegais. Atrito, aliás, que já havia se manifestado na primeira Virada Cultural sob nossa administração, quando arrastões aconteceram diante de olhos displicentes de alguns policiais, segundo diversos relatos da época. E se agravaria com o boicote explícito ao programa De Braços Abertos, com a transferência dos excelentes policiais militares que inibiam a ação do tráfico na região da Cracolândia.

Em 13 de junho de 2013, a foto de um policial com o rosto coberto de sangue estampou a capa dos jornais. Ele havia sido agredido pelos manifestantes. Naquele dia eu voltava de uma viagem de trabalho com o governador Geraldo Alckmin e, até aquele momento, a situação nem de longe parecia fora de controle. Aquela foto, entretanto, me impeliu a dar um telefonema ao secretário de Segurança Pública do estado: era imprescindível um esforço para que não houvesse um revide da polícia. Mas ele veio. E então o país explodiu.

Para os padrões da classe média, a violência foi grande. Ainda tentando manter a situação sob controle, fiz uma crítica à atuação policial abaixo do tom, na esperança de criar algum espaço para a interlocução. Em vão. O MPL passou a me corresponsabilizar pela truculência da polícia, e a polícia, por seu turno, reprimia o movimento – a não ser quando os alvos da fúria eram prédios municipais, como o Edifício Matarazzo ou o Theatro Municipal. Nesses casos, a Polícia Militar simplesmente cruzava os braços. Apesar de um pedido que na ocasião fiz em audiência, Alckmin só viria a substituir o comandante-geral da PM ao final do seu mandato, em dezembro de 2014.

Alguém dirá, com razão, que nem o MPL nem a PM explicam a eclosão da crise. Aqui, é necessário introduzir um elemento sem o qual os eventos de 2013 não encontram explicação: a forma assumida pelas manifestações.

Tradicionalmente, todas as modernas organizações contestatórias no Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (mtst), passando pela Central Única dos Trabalhadores (cut), pela União Nacional dos Estudantes (une) e demais movimentos sociais, sempre foram adeptas de alguma mediação político-institucional. Mesmo durante a fase mais aguda do neoliberalismo, essas organizações faziam atos, exerciam seu direito de protesto, mas buscavam a negociação com as instituições. Diante de governos de centro-esquerda, essa tendência se acentuava e trazia ganhos efetivos para os grupos representados.

Nos países do núcleo orgânico do sistema, onde essa mediação era menos provável, ganhou corpo desde os eventos de Seattle, em 1999, uma certa esquerda antiestatal, neoanarquista charmosa, que mantém distância dos governos e das instâncias de representação política em geral. Os protestos nessas circunstâncias ocorrem de forma inteiramente nova. Sem vínculos partidários nem pretensões eleitorais, a partir de uma agenda bastante específica e de difícil contestação, esses movimentos começaram a fazer sucesso mundo afora. E eles foram bastante críticos em relação à política e às formas tradicionais de negociação, que viriam inspirar os movimentos mais contemporâneos que se desenvolveram no Brasil, dentre os quais o MPL.

Traduzida para as condições locais, porém, a novidade provocou um curto-circuito. A forma dos protestos, muito mais do que o conteúdo de suas reivindicações, oferecia uma chave de contestação que se prestava à defesa de tantas outras bandeiras. Logo ficou claro que ela, a forma, poderia ser sequestrada e servir de embalagem para uma miríade de novas demandas. E a panela de pressão de que falávamos pareceu ter encontrado a válvula para dar vazão à energia que havia se acumulado por anos.

No intervalo de uma semana as ruas estavam cheias, com uma pluralidade de reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si. Quando o sequestro da forma se consumou, o MPL se retirou das ruas, bem como a esquerda tradicional caudatária do movimento. E grupos de direita, apartidários, se organizaram para emparedar o governo federal, apropriando-se sintomaticamente da própria linguagem dos protestos originais, que ganhavam simpatia popular: MBL (Movimento Brasil Livre) é uma corruptela de MPL; Vem Pra Rua era um dos gritos mais ouvidos nos protestos; Revoltados On Line evoca diretamente a natureza daqueles eventos convocados via rede social.

Sem tratar das redes sociais não se entende 2013 em sua totalidade. Criou-se uma ilusão nas esquerdas em relação ao potencial emancipatório da internet. Acho que as redes sociais estão mais para Luhmann do que para Habermas. Quero dizer com isso que a ênfase dada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas às possibilidades de participação política proporcionadas pela modernidade talvez tenha sido exagerada. E que a visão mais pessimista de seu conterrâneo, o sociólogo Niklas Luhmann, seja mais adequada ao mundo de hoje.

De acordo com Luhmann, o advento da rede social representa uma ruptura radical entre a emissão e a recepção da mensagem. É uma ideia contraintuitiva numa época em que tudo se tornou instantâneo e tudo parece interligado. O ponto, segundo ele, é que hoje a reputação do emissor, a origem da informação, perdeu relevância. A técnica, diz Luhmann, “anula a autoridade da fonte e a substitui pelo irreconhecível da fonte”.

Imaginou-se inicialmente, sobretudo em ambientes de esquerda, que essa ruptura e o enfraquecimento da autoridade de quem fala reduziriam o poder de manipulação da indústria cultural. Entretanto, o que ocupou seu lugar parece tão ou mais perigoso que a força da tradição, com a difusão deliberada e em grande escala de informações com viés, sem o anteparo das instâncias costumeiras de validação. É nesse ambiente que prospera a chamada “pós-verdade”.

Há de se considerar ainda a dimensão econômica, o modelo de negócio da internet. Na verdade, as redes digitais são menos sociais do que se pensa. Por trás do black mirror há menos o desejo de promover a interação do que, por meio da interação, conhecer o feixe de relações do usuário para compor tanto quanto possível a “identidade” desse sujeito.

Somos decodificados a partir das nossas manifestações digitais e convertidos numa sequência binária de curtidas/não curtidas que revela nossas preferências e gostos, com um grau acurado de precisão. São essas preciosas informações que garantem o patrocínio às megacorporações como o Facebook e o Google. E, se essas informações podem ser usadas não somente para promover a venda de mercadorias, mas também a “venda” de ideias e ideais, estamos diante de um desafio considerável para a democracia.

A decorrência lógica desse processo é a formação de múltiplos nichos que exacerbam o individualismo e reforçam as “identidades digitais”. O indivíduo, nesse universo paralelo caracterizado pelo feixe de relações virtuais que estabelece, tende a adotar uma atitude francamente reativa e reacionária em relação ao contraditório.

Durante os protestos de 2013 no Brasil, a percepção de alguns estudiosos da rede social já era de que as ações virtuais poderiam estar sendo patrocinadas. Não se falava ainda da Cambridge Analytica, empresa que, segundo relatos, atuou na eleição de Donald Trump, na votação do Brexit, entre outras, usando sofisticados modelos de data mining e data analysis. Mas já naquela ocasião vi um estudo gráfico mostrando uma série de nós na teia de comunicação virtual, representativos de centros nervosos emissores de convocações para os atos. O que se percebia era uma movimentação na rede social com um padrão e um alcance que por geração espontânea dificilmente teria tido o êxito obtido. Bem mais tarde, eu soube que Putin e Erdogan haviam telefonado pessoalmente para Dilma e Lula com o propósito de alertá-los sobre essa possibilidade.

Eu estava decidido a manter posição diante dos protestos, apesar das pressões. Eis que recebo um telefonema do Eduardo Paes, a quem o Planalto também tinha pedido o adiamento do reajuste da tarifa, dizendo que era melhor ceder. “Não vou segurar, você vai ficar sozinho”, me disse o prefeito do Rio. A pressão interna sobre nós já atingia patamares insuportáveis e o telefonema era a gota d’água. Foi então que resolvi ir ao Palácio dos Bandeirantes e propor ao governador Alckmin que fizéssemos juntos o anúncio da revogação do aumento. Contrariado, certo de que aquilo nada tinha a ver com tarifa de ônibus, tentei com o gesto despartidarizar a questão e iniciar um processo de construção de uma política tarifária metropolitana.

Na chegada, quando apertamos as mãos, pouco antes da coletiva em que faríamos o anúncio, eu disse ao governador o que pressentia: “Podemos estar às vésperas de uma crise institucional.”

Tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho.

A crise internacional do neoliberalismo se desenrola desde 2008. Já no final dos anos 90, muitos economistas, dentre os quais me incluo, previam que a desregulamentação financeira provocaria uma crise de proporções consideráveis, cuja debelação não poderia contar com as clássicas políticas keynesianas que pressupõem, justamente, governança financeira global. Agregava-se a isso a chamada acumulação flexível, que, pelo incrível barateamento dos custos de transporte, comunicação e tecnologia da informação, desnacionalizou a produção, minando a base territorial dos sindicatos e demais organizações de trabalhadores, sobretudo no núcleo do sistema.

Os países periféricos, em particular os que se acoplaram como fornecedores de matéria-prima à locomotiva chinesa, beneficiaram-se do processo, impulsionados inclusive pelo overshooting do preço das commodities. Foi o caso do Brasil. Há muitas diferenças na forma como o país é visto por FHC e Lula, mas há um ponto em comum entre eles: ambos imaginaram, cada um à sua maneira, que o país poderia ter um lugar diferenciado no concerto das nações. Pressentiam que as especificidades brasileiras – o tamanho de sua população, a extensão do território, seus amplos recursos naturais, a terra agricultável e uma ciência ainda incipiente mas líder na América Latina – configuravam potencial suficiente para uma melhor inserção no mercado internacional. Para eles, o Brasil estava aquém da posição que poderia ocupar.

A diferença é que FHC e Lula definiram estratégias distintas para alcançar esse objetivo. O tucano dava mais ênfase ao capital estrangeiro e ao mercado externo. O petista priorizou o capital nacional e o mercado interno. Esses pontos de vista distintos determinaram políticas públicas muito discrepantes. Distribuir renda, por exemplo, pode representar uma ameaça, num caso, ou uma necessidade, no outro. Desnacionalizar as empresas pode ser uma exigência para o primeiro e um atentado ao desenvolvimento nacional para o segundo. E assim por diante.

Essas opções se refletem, às vezes, no alcance das políticas públicas. Um caso paradigmático é o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001. Aprovado pelo Congresso Nacional, o plano previa a universalização, em seis anos, do primeiro programa federal de transferência de renda. FHC vetou o dispositivo, alegando falta de fonte orçamentária. Lula percebeu que com ação semelhante poderia acabar com a fome na mesma medida em que dinamizava o mercado interno. Outros aspectos do PNE foram observados por Lula, que expandiu como nunca o acesso à educação superior, profissional e infantil das famílias de baixa renda. Transformou-se no “barão da ralé”.

No plano externo, Lula concebia a internacionalização da economia a partir do capital nacional. Toda a política externa de seu governo teve essa premissa: abrir mercados para as empresas brasileiras, agronegócio e construção pesada à frente, como vetores de um movimento mais amplo. As visitas que o ex-presidente fez a quase todos os países da África e do Oriente Médio, o desejo de fortalecer o Mercosul e a Unasul, o papel desempenhado pelo G20, a articulação dos Brics, todo o esforço da diplomacia Lula caminhava nessa direção. Ele realmente desejava que as empresas brasileiras crescessem e se internacionalizassem, imaginando que o Brasil também poderia engendrar, ainda que em escala menor, seus keiretsus e chaebols, os grandes conglomerados empresariais de Japão e Coreia, países de desenvolvimento tardio.

O mundo acompanhava tudo com atenção.

Fernando Henrique fazia uma outra leitura do papel que o Brasil poderia reivindicar no cenário internacional. Usando terminologia dos anos 60, eu diria que ele considerava que o país não tinha pernas para exercer uma posição de tipo subimperialista. O destino nos reservava um papel de tipo subcapitalista. O “príncipe da sociologia” nunca confiou na capacidade da burguesia nacional de empreender em escala internacional. Ao contrário, sempre a considerou limitada e condenada à submissão, cabendo ao país – mais com a ajuda do capital estrangeiro do que com a do capital nacional, estatal ou privado – promover o mero acoplamento à ordem internacional, deixando às nossas geográficas vantagens comparativas a função de nos situar numa posição mais favorável. O “entreguismo” de que foi acusado era apenas a tradução de sua visão sobre a baixa pretensão das nossas classes dirigentes.

No contexto brasileiro, a estratégia de Lula, por seu turno, se deparava com um enorme risco: o patrimonialismo brasileiro ou a versão beta do crony capitalism, o capitalismo clientelista ou de compadrio.

O patrimonialismo é, antes de mais nada, uma antítese da república. O despotismo é outra antítese da república. Entre nós, brasileiros, nenhuma obra do pensamento social e político descreve melhor o patrimonialismo, hoje com suas entranhas expostas no noticiário do país, do que Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro. O texto, publicado em 1958, deveria ser relido, cum grano salis, como veremos.

“Na peculiaridade histórica brasileira”, escreve Faoro, “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Não há sutileza aqui: ele afirma que o Estado no Brasil é objeto de posse, tomado pela camada dirigente como seu. E prossegue: a comunidade política comanda e supervisiona todos os negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios como negócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois em linhas que se demarcam gradualmente.”

A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo tipo de domínio, Faoro chama de patrimonialismo. E nota que, ao contrário do mundo feudal, que é “fechado por essência, não resiste ao impacto com o capitalismo, quebrando-se internamente”, o patrimonialismo se amolda “às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do mundo externo”. Ou seja, Faoro já percebia que o patrimonialismo brasileiro – que segundo sua tese remonta à dinastia portuguesa de Avis (1385–1580) durante a expansão comercial lusitana para a África, Índia e Brasil – adaptou-se à chegada do capitalismo. Ou seja, ele o concebia como um modelo arcaico que sobreviveu à modernização.

Em um artigo publicado na revista Reportagem em janeiro de 2003, logo após a primeira eleição de Lula, eu alertava que o PT ainda não havia feito o diagnóstico adequado sobre a natureza do que chamei de “patrimonialismo moderno”.

Argumentei que, dada a natureza patrimonialista do Estado brasileiro, “a mera chegada ao poder de um partido de esquerda, por si só, ainda que prometesse respeitar todos os direitos constituídos e os contratos celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório”. E, portanto, passível de forte reação contrária. Mas que o nó da questão era, como o próprio Faoro apontava em sua obra, a possibilidade histórica de um patrimonialismo social-democrata, que empreendesse “uma política de bem-estar para assegurar a adesão das massas”.

Obviamente, quando escreveu essas linhas Raymundo Faoro pensava em Getúlio Vargas. Mas o PT, que em certa medida retomava o projeto trabalhista tantas vezes abortado, não poderia ter desconsiderado esse risco. Hoje, se eu pudesse apontar um grande equívoco do PT, seria esse: o de subestimar o caráter patrimonialista do Estado brasileiro.

O PT que chegou ao poder naquele ano de 2003 podia ser dividido em três grupos internos: uma esquerda socialista, uma direita republicana e um centro social-desenvolvimentista, hegemônico no partido. No artigo, eu sugeria que poderíamos cometer um erro histórico se o centro social-desenvolvimentista, ignorando as percepções das duas outras alas, entendesse que nosso projeto era realizável sem reformar profundamente as estruturas do estado patrimonialista.

A minha esperança, à época, era a inserção social do PT. Que, de fora para dentro do governo, o partido e sua militância poderiam oxigenar a máquina pública. O que de fato ocorreu, mas só até determinado ponto. Prova disso é que na administração direta, nas autarquias e fundações, o governo avançou muitíssimo, por exemplo, pela criação da Controladoria-Geral da União, pelo fortalecimento da Polícia Federal, pelo grau de autonomia do Ministério Público Federal etc. As práticas patrimonialistas se fixaram justamente onde esses órgãos tinham um espaço muito menor de atuação, o local privilegiado em que o poder político encontra o poder econômico: as estatais, federais e estaduais, as agências reguladoras, o Banco Central etc. E na Petrobras, que ocupa o imaginário brasileiro desde Getúlio Vargas e administra, de fato, um ativo estratégico para o desenvolvimento nacional.

Aliás, há um equívoco ao se falar de corrupção sistêmica ou de lobby no Brasil. A corrupção no país é mais do que sistêmica, ela é o corolário de nosso patrimonialismo. Afirmar que a corrupção, aqui, é sistêmica pode passar a impressão de que seria possível um patrimonialismo incorrupto. Da mesma forma com o lobby. Não há lobby no patrimonialismo. Na verdade, o lobby devidamente regulamentado seria até um avanço diante do que temos. O lobby pressupõe pelo menos dois lados, se não uma mesa quadrada, pelo menos um balcão. No patrimonialismo, o poder político e o poder econômico – “os donos do poder”, na definição de Faoro – sentam-se a uma mesa redonda. Não se distinguem os lados. Em um contexto como esse, não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios.

A pergunta que se coloca nesses tempos em que a Operação Lava Jato expõe parte do funcionamento de nosso patrimonialismo é: pode uma revolução ser conduzida pelo Poder Judiciário?

Não é preciso consultar Montesquieu para saber que não. O Poder Judiciário não tem a faculdade de criar um mundo novo. Nas condições locais, entretanto, ele pode concorrer para destruir o antigo, criando ou não as condições de que algo novo surja no horizonte, ou simular a destruição do velho para que tudo permaneça exatamente como é.

O debate sobre corrupção no Brasil sempre foi um faz de conta, um tema de conveniência e oportunidade, não de princípios. As instituições que deveriam garantir a imparcialidade das apurações são, regra geral, arrastadas para dentro da arena da disputa política e contaminadas pelo espírito de facção. Terminada a batalha, as condições anteriores são repostas e os negócios voltam à normalidade. Business as usual.

O interesse que a Operação Lava Jato desperta deriva do fato de que ela, contra todos os prognósticos iniciais, parece fugir a esse roteiro. Quando se olha mais de perto, na verdade, é impossível não identificar a tensão no interior da operação entre uma ala facciosa tradicional, com claros interesses políticos, e uma ala republicana que quer passar o país a limpo sem aparentemente se dar conta da escala dos seus propósitos.

A Lava Jato tem o mérito inquestionável de abrir a caixa-preta das relações público-privadas no Brasil – algo que Faoro intuía, mas que não havia sido exposto tão escancaradamente. Mas, se o desfecho for aquele pretendido pela ala facciosa da operação, o que teremos é uma simples troca de comando do patrimonialismo. Corremos o risco de aniquilar o velho apenas para que ele ressurja.

O que complica ainda mais a situação é a relação entre o Judiciário e a mídia. O caráter contramajoritário do Poder Judiciário é pedra angular da República. Num certo sentido ele é ademocrático, pois resiste à maioria em nome da Justiça. A espetaculosidade dos processos em andamento deixa pouca margem para o desfecho desejável de saneamento de todos os partidos políticos e gradação das penas imputadas proporcionalmente ao delito.

Vivi os bastidores de um episódio que merece relato. No dia 10 de março de 2016, participei de uma reunião com o ministro da Fazenda Nelson Barbosa, à qual estavam presentes diversas lideranças sindicais, alguns economistas, assessores e o ex-presidente Lula. O tema era economia, mas o debate enveredou pela política. Muitos de nós acreditávamos que o governo Dilma agonizava e não resistiria por muito tempo. Por semanas, tentávamos convencer Lula a assumir o governo na condição de ministro-chefe da Casa Civil e ouvíamos sempre a mesma resposta dele próprio: “Não cabem dois presidentes num só palácio.” Outro argumento contrário era de que a mídia tentaria caracterizar o gesto como busca de foro privilegiado, mesmo que àquela altura Lula não fosse réu. A relutância do ex-presidente à ideia foi enorme. Apenas depois de insistentes apelos, Lula concordou em conversar com Dilma sobre as condições da uma eventual ida para o governo – aceitas apenas depois de longa negociação. Anúncio feito, história conhecida: grampo ilegal de um telefonema impróprio, vazamento ilegal de uma conversa surreal e uma liminar que impede a posse. A Justiça fazendo política.

Se junho de 2013 foi o estopim do impeachment, em março de 2016 viria a pá de cal.

Bem antes que se sonhasse com a Lava Jato, tão logo assumi a prefeitura tomei medidas que feriram interesses das grandes empreiteiras. Não renovamos o contrato de inspeção veicular, o que deixou a empresa responsável pelo serviço – a Controlar, do grupo CCR, formado por Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – bastante contrariada. Vetei também artigos de lei do Plano Diretor que facilitavam a implantação de um aeroporto em Parelheiros, de interesse da Camargo Corrêa, além de desagradar a Odebrecht no caso da Arena Corinthians, já mencionado.

Nenhum desses casos, no entanto, supera a polêmica em torno do túnel Roberto Marinho. Ele é representativo de quanto o interesse público pode ser desconsiderado na relação da prefeitura com as empreiteiras. A obra foi suspensa logo no início da minha administração. Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, UTC, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia – o clube VIP das empreiteiras – compunham, duas a duas, os consórcios vencedores da licitação, dividida em quatro lotes. Tal divisão só havia se tornado possível graças a uma mudança na extensão do túnel promovida pela gestão Kassab. Dos 400 metros do projeto original, elaborado ainda na gestão de Marta Suplicy, chegou-se a longos 2,3 quilômetros na inflacionada versão final. Esse episódio, inclusive, põe em xeque a versão, contada por Mônica Moura em sua delação, de que a Odebrecht, sem meu conhecimento, teria pago parte da dívida da minha campanha assumida pelo PT.

Tendo sido eleito durante o julgamento do mensalão, sempre tive a clareza de que minha conduta tinha que ser exemplar. E minha passagem limpa pelo Ministério da Educação me dava confiança de que disporia de algum capital político para iniciar uma gestão inovadora na cidade. Afinal, o orçamento do MEC é o dobro do da cidade de São Paulo e no tempo em que estive à sua frente jamais se levantou qualquer suspeita sobre desvios de conduta.

Então, quando irrompe a crise da tarifa, imaginei que esse histórico pudesse ajudar. Pura ilusão. Apenas um mês depois da revogação do aumento da tarifa, pesquisas indicavam que eu havia perdido metade do apoio que tinha e já se questionava se seria capaz de me reeleger. Num final de tarde melancólico, sozinho na sala do meu apartamento no Paraíso, anoiteceu sem que eu me desse conta. “Pai, o que você está fazendo aí no escuro?”, perguntou meu filho Frederico ao chegar da rua. Disse a ele que estava pensando naquela situação toda e na dor de ver doze anos de dedicação à vida pública serem liquidados em seis meses de gestão à frente da prefeitura. Ele disse: “Mas, pai, ainda faltam três anos e meio de governo.” Respondi: “Eu sei, filho, mas aconteceu uma coisa muito séria e não há como não viver o luto.”

Minha intenção de ficar oito anos à frente da prefeitura provavelmente não se viabilizaria. Se a reeleição da Dilma não estava mais assegurada mesmo depois de dez anos de prosperidade, a minha reeleição parecia ainda mais distante. Agarrei-me àquilo que se mostrava a única vantagem. Tinha esses três anos e meio de mandato e poderia governar como se não houvesse outro. Pela experiência no MEC, sabia das vantagens do ciclo de oito anos na gestão pública: muitas políticas só se estabilizam com o tempo. Mas a história dificilmente me permitiria repetir a dose. Então tive que achar graça no curto prazo.

Para minha surpresa, 2014 foi um ano extraordinário para a Prefeitura de São Paulo. As coisas efetivamente aconteceram. Ocorreram mudanças estruturais que vão beneficiar a cidade por muitos anos. A primeira delas, a obtenção do grau de investimento, a partir sobretudo da exitosa renegociação da dívida com a União. A segunda foi a aprovação do PDE, o novo Plano Diretor Estratégico, que definiu as diretrizes do desenvolvimento urbano e possibilitou que os planos setoriais fossem deflagrados nas áreas de habitação, mobilidade, saúde, educação e cultura. Registraram-se ainda recordes na criação de vagas destinadas à educação infantil, na criação de faixas e corredores de ônibus e ciclovias, na construção de hospitais-dia, na extensão da coleta seletiva e na instalação de lâmpadas LED, entre outros. A cidade começou a responder favoravelmente. Atingimos em quatro anos, apesar da brutal recessão que assolou o país, o maior montante histórico de investimentos em valores absolutos. Em 2014, era possível sentir certo frescor nas ruas, sobretudo durante a campanha presidencial. Perto do fim do ano, nosso governo tinha recuperado parte da avaliação positiva. Começamos a sentir que tínhamos alguma chance. Depois da execução sumária de 2013, era quase uma ressurreição. Fizemos uma reunião de secretariado em que as pessoas manifestaram otimismo.

Entretanto, a crise que se instalou depois da reeleição de Dilma faria o pesadelo de 2013 parecer um sonho erótico.

No final de 2013, num encontro com o presidente Lula, com a discrição que o caso requeria, perguntei se ele, passados três anos desde que tinha deixado a Presidência, conseguiria projetar a situação do país dali a cinco anos. Ele me perguntou por que cinco anos. E eu lhe disse que esse era o tempo que ainda restaria a Dilma para governar o país no caso, que me parecia muito provável, de sua reeleição. Ele me respondeu com o corpo: cotovelos colados à cintura, palmas viradas para cima e uma expressão facial que indicava “Não sei” ou, talvez, “Quem é que sabe?”.

Poucos meses depois, cruzei com João Roberto Marinho descendo as escadas do Instituto Lula. Cumprimentei-o e segui para o encontro com o presidente. Perguntei a ele o motivo daquela visita. Era uma sondagem para que Lula fosse o candidato à Presidência em 2014, no lugar de Dilma.

Mais explícito foi o movimento feito por Marta Suplicy, que chegou a organizar um jantar de “Volta, Lula”.

O ex-presidente nunca mexeu um dedo, muito pelo contrário, nem por um terceiro mandato, nem pelo “Volta, Lula”. Dilma quis ser e foi candidata à reeleição e venceu o pleito como previsto. E, a não ser pelos dois ou três dias que antecederam a eleição, quando mídia e redes sociais ferviam com denúncias e boatos de toda ordem, e fac-símiles de uma capa da revista Veja distribuídos por toda a periferia da cidade, não imaginei que a vitória pudesse estar em risco.

O que me surpreendeu foi a pós-eleição. As principais lideranças do PSDB se dividiram: Aécio começou a trabalhar por novas eleições; Serra, pelo impeachment; e Alckmin, grande vencedor do pleito de 2014, pela normalidade institucional até 2018, cenário que mais lhe favorecia.

O movimento mais visível foi o de Aécio. Pediu recontagem dos votos, ação pela cassação da chapa Dilma–Temer por abuso de poder econômico, mobilizou todos os argumentos para que o resultado das urnas não fosse aceito. A tensão aumentava a cada dia.

Convidei FHC para um almoço na prefeitura. Dias depois, fomos juntos ao Theatro Municipal. Queria entender melhor o que ele pensava. Concordamos sobre a gravidade da crise. Mas meu diagnóstico sobre seu desenrolar se mostrou totalmente errado. A certa altura do almoço, arrisquei: “Ela não governa, mas vocês não a derrubam.”

A unidade do PSDB a favor do impeachment foi construída com a participação de FHC. Alckmin, o último que resistia à ideia, finalmente foi enquadrado e a tese de Serra saiu vitoriosa.

Ao longo do ano de 2015, Serra trabalhou intensamente pela causa. Seu papel no impeachment foi subestimado. O ex-governador tucano aproximou-se muito de Michel Temer e lhe garantiu apoio. Era Serra quem telefonava para os governadores, sobretudo do Nordeste, e depois de uma conversa política passava a ligação a Temer, que a concluía com a senha “Precisamos unir o Brasil”. A articulação de Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal com Hélio Bicudo, autores do pedido de impeachment contra Dilma, teve participação direta de Serra. E, no final de 2015, a ida de Marta para o PMDB foi acertada no Senado com a participação de Serra. A estratégia servia a dois propósitos: garantia o voto da senadora pelo impeachment e criava uma candidatura competitiva alternativa à minha na periferia. (A candidatura de Erundina pelo PSOL complicaria ainda mais o quadro já fragmentado e abriria uma avenida para João Doria.)

Após as eleições de 2014, diante das investidas do PSDB contra o resultado das urnas, me parecia evidente que Dilma não se sustentaria sem o PMDB. E, de fato, até certo momento, todas as declarações do PMDB eram no sentido de dar suporte ao governo Dilma, tanto por parte de Temer quanto de Eduardo Cunha. Procurei o então vice-presidente. Tinha com ele boa relação. Propus, então, em nome de uma aliança PT/PMDB para 2016, a vinda de Gabriel Chalita para a Secretaria Municipal de Educação. Conhecia Chalita havia muitos anos e reconhecia seu enorme talento para o diálogo com o magistério. Chalita, é bom lembrar, não concorreu à reeleição para deputado federal em 2014. Desde 2012, seu interesse pela política diminuiu. Entre o primeiro e o segundo turnos da eleição, a campanha de Serra, sabendo do apoio que ele me daria, forjou um dossiê com uma dezena de acusações ridículas e as encaminhou ao Ministério Público. Foram meses de transtorno até que os inquéritos fossem arquivados. Mas, diante das perspectivas que se abriram, Chalita animou-se com o acordo – celebrado na presença de Temer e de Lula.

Enquanto fazíamos esse gesto de aproximação com o PMDB no âmbito municipal, o governo federal movimentava-se na direção oposta. Com a intenção de tentar diminuir o espaço de atuação do PMDB no governo, o Planalto fortaleceu meu principal adversário em São Paulo, Gilberto Kassab, nomeando-o ministro das Cidades. Kassab depois daria o tiro de misericórdia em Dilma, pelas costas.

Como se não bastasse essa malfadada intervenção na base aliada, o governo deu uma guinada na política econômica, com a nomeação de Joaquim Levy. Era evidente que ajustes tinham que ser feitos porque, entre outras coisas, o governo tinha comprado uma agenda equivocada, elaborada em parte pela Fiesp: desonerações, redução da tarifa de energia elétrica, swap cambial, administração de preços públicos etc. Em vez do ajuste, entretanto, veio um giro de 180 graus. Ainda assim, é certo que a retração econômica jamais teria sido a maior da história não fossem os efeitos multiplicadores da crise política e sua pauta-bomba fiscal, potencializados pela Lava Jato.

Crise econômica, crise política, crise ética: as maiores do gênero. Crises sobrepostas que se retroalimentavam. O impeachment foi construído por engenharia jurídica reversa. Quem se importava se havia ou não crime de responsabilidade? Sem crime de responsabilidade e, portanto, sem cassação dos seus direitos políticos, Dilma foi afastada definitivamente da Presidência pelo Senado, em 31 de agosto de 2016, numa afronta ao texto constitucional. Pouco antes, em 29 de julho, Lula se tornava réu pela primeira vez. Nas semanas seguintes ao impeachment, um de seus ex-ministros, Antonio Palocci, teve prisão decretada em 26 de setembro. Outro ex-ministro, Guido Mantega, teve a prisão decretada e relaxada no mesmo 22 de setembro. Tsunami sincrônico ao período eleitoral.

Quando jornalistas me perguntam a que atribuo minha derrota em 2 de outubro de 2016, contenho o riso e asseguro: “Faltou comunicação.”

Por trás do golpe parlamentar, o possível fim da Nova República. O que está em jogo é o pacto de 1988, expresso na Constituição. Por ironia, o partido que não assinou a carta constitucional, por considerá-la tímida demais, foi o único que lhe deu consequência. O governo Temer exerce um poder desconstituinte, com agenda política que jamais passaria pelo crivo do voto popular. Até a eclosão da nova crise patrocinada pela delação da JBS, o governo federal vinha promovendo contrarreformas em ritmo revolucionário. Em função do calendário, parecia editar a cada semana um Ato Institucional diante de um Congresso de joelhos, que não revela a quem presta contas.

O atual emparedamento de Temer coloca o país diante de um impasse, cujo desfecho ainda não é claro no momento em que concluo este texto. Só em 2018, se tudo der certo, saberemos se o Brasil do século XXI cabe no figurino da República Velha. Saberemos se o trabalhador que sentiu pela primeira vez a brisa ainda tênue da igualdade e da tolerância saberá prezá-la e cultivá-la.

Lula terá no próximo pleito papel central. A política brasileira organiza-se em torno dele há quatro décadas. Desde o final dos anos 70, é o personagem mais importante da história brasileira. Tudo o mais é circunstancial. A própria eleição de FHC foi obra do acaso – como o próprio reconhece. Lula participará da sua oitava eleição presidencial, seu nome estando ou não na urna eletrônica. Independentemente disso, as eleições do ano que vem podem se dar na arena da grande política ou num programa de auditório. A escolha está sendo feita agora.