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sexta-feira, 16 de junho de 2017

O cinismo é uma forma de racionalidade

VLADIMIR SAFATLE



Freud nos traz um relato no qual um homem, depois de cuidar por meses de seu pai doente que acabara de morrer, começa a sonhar que ele estava novamente em vida e que lhe falava normalmente.

Esse sonho era vivenciado de forma extremamente dolorosa, já que o pai agia de maneira natural, mas a condição de não saber que estava morto.

Ao produzir um sonho dessa natureza, o sujeito demonstrava estar preso em um tempo assombrado por mortos que não estavam enterrados, mortos que ocupavam o lugar dos vivos, repetindo cenas e rituais que não tinham mais sentido algum, pois cenas e rituais de um morto que luta por não querer saber.

Podemos dizer que não apenas sujeitos mas sociedades podem entrar neste tempo paralisado e em apodrecimento.

Elas serão submetidas a um espetáculo miserável de mortos que agem como se estivessem vivos, que ocupam o espaço dos vivos, que continuam a fazer discursos que já não têm realidade alguma, que julgam a partir de uma autoridade que eles já não têm.

Essas sociedades acreditam poder se estabilizar sobre uma profunda ausência de legitimidade, um pouco como esses personagens de desenho animado que continuam a correr mesmo que não estejam mais em solo firme, mas no abismo. Essas são sociedades cuja paixão central é o desejo de não querer saber.

O Brasil das últimas semanas demonstrou claramente o que isso significa. Comandado por uma casta política de pessoas mortas, em grau profundo de corrupção e desagregação, ele parece querer continuar sem saber que já não existe mais sequer como democracia mínima de fachada.

O Brasil assumiu de vez sua face de oligarquia cujos governantes e juízes permanecem no poder a despeito de qualquer consideração pela vontade popular.

Pouco importa se seu governo foi indicado pela imprensa internacional como um dos cinco mais impopulares do mundo, se as manifestações contra ele se espalham pelo país. Isso não irá influenciar as decisões governamentais, não irá modificar seus discursos.

Pouco importa se seu "presidente" foi gravado em caso explícito de formação de quadrilha, prevaricação e cumplicidade com banditismo.

Os juízes agirão como se as gravações não existissem e utilizarão, ainda, os mais rasteiros sofismas para se justificarem.

Mas, quando os mortos sobem à cena, uma explicitação importante ocorre no nível dos discursos. Vemos então uma forma de conservação de discursos desprovidos de legitimidade, de práticas discursivas repetidas tendo em vista certa "estabilização na anomia" que poderíamos chamar de "cinismo".

Cinismo não é apenas um julgamento moral, mas uma certa forma de racionalidade.

Cínicas são as ações nas quais repetimos a aparência de legitimidade, mesmo sabendo que todos compreendem que se trata apenas de aparência.

Um pouco como vimos na semana passada, com uma verdadeira aula de cinismo ilustrado dada pelo pilar do desgoverno atual, a saber, o grão-tucanato.

O mesmo tucanato que entrou como uma ação de cassação de chapa Dilma-Temer, que insuflou o presidente do TSE, homem de relações orgânicas com o partido, a não levar adiante a cassação, para no final afirmar que iria recorrer da decisão tomada "por si próprio", mesmo que seu partido continue a prometer juras de amor e a sustentar o governo.

Essa racionalidade cínica exige que a repetição da aparência deva ser feita como se estivéssemos diante da exigência de continuar a jogar um jogo sem sentido, a ter uma crença desprovida de crença, a fingir que democracia ainda há.

Há uma função "terapêutica" nisso tudo. Pois assim poderemos ridicularizar o poder ao mesmo tempo que a ele nos submetemos.

De fato, em seus momentos de desagregação o Brasil não leva sua casta dirigente à guilhotina, não invade o Ministério da Fazenda ou seus palácios.

Ele encontra alguma forma de alívio em submeter-se a um poder que não exige mais crença alguma.

Como se fosse possível continuar a viver esquecendo, por um momento, que o poder existe.

No entanto países que um dia levaram seus dirigentes à guilhotina e à forca (como a França e a Inglaterra) conseguiram civilizar minimamente sua classe dirigente.

Eles a civilizaram através de certo medo pelo povo que se inscreve no imaginário do poder.

Com guilhotina ou não (pois isso pode ser visto apenas como metáfora), uma coisa é certa; no Brasil, falta ao poder temer o povo.

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