Dois ou três episódios recentes tematizam a pergunta: liberdade para quem diverge de nós? liberdade para quem defende a ditadura? Amigos discutem. Vou analisar esta questão sem me perder nos fatos, porque estes só respondem se os casos se enquadram ou não na regra geral, e é esta que precisamos definir.
A liberdade de expressão é suprema na democracia. Tanto o é, que está se emancipando da liberdade de imprensa. Esta última é exercida por organizações de mídia. A de expressão começava com o maluco inglês falando num caixote do Hyde Park e hoje está nas redes sociais.
A liberdade, dizia a líder marxista Rosa Luxemburg, é sempre a liberdade de quem pensa diferente de nós. Não pode haver liberdade só para o "nosso" lado. A liberdade incomoda. A democracia não é um regime da unanimidade. É o regime no qual os leitores convencidos de que o PT é um partido de ladrões veem gente votar nele, e os que acusam o PSDB de indiferença aos dramas sociais sentem igual frustração... Dependendo de nosso grupo social, uma dessas convicções pode predominar, a ponto de só convivermos com gente que pensa como nós. Mas a divergência existe e é essencial.
Todavia, a liberdade de expressão inclui o direito de incitar ao crime? Não. Incitar a cometer um crime é crime. Não há liberdade de expressão para pregar "mate policiais". Então, por que seria livre pedir a repressão aos negros, a desigualdade entre homens e mulheres, a cassação de direitos de quem não é criminoso, a tortura, prisão e assassinato de quem não concorda conosco? Defender a ditadura é pregar que se cometam crimes contra muitas pessoas; mais que isso: é defender que se cometa, contra a sociedade inteira, o megacrime que é privá-la do direito de escolher. É pregar crimes de altas proporções. Tanto assim que no Brasil é ilegal o racismo, nos EUA se punem crimes de ódio (como a homofobia) e na Alemanha, a pregação do nazismo.
Essa linha divisória deve ser nítida. Devem ficar claros os temas cuja prédica a democracia tipifica como crimes. Deve se evitar o julgamento por inferência ("se disse isso, significa que também disse aquilo...). Mas não esqueçamos, aqui, os dois princípios em choque. Um é a liberdade de expressão. O outro é o direito de cada um a não ser vítima de crime. A liberdade de falar e agir cessa onde fere o direito do outro à integridade física e pessoal. Por isso defender a tortura e mesmo a desigualdade dos gêneros pode constituir crime.
Não entro no detalhe dos casos recentes, como o do professor de Direito da USP. Entrar neles é checar se os fatos precisos se ajustam ou não aos princípios éticos que validamos. O que quero é esclarecer estes últimos. Por exemplo, se alguém acredita que a democracia deve admitir até os discursos contra a democracia (posição oposta à minha), ele avaliará de outra forma o caso do professor. Mas a diferença dirá respeito aos princípios, não aos fatos. E cada país legislará do seu modo sobre os crimes de pregação de ódio. Com nosso histórico de racismo e ditadura, esses dois temas exigem, de nossa parte, uma ação mais firme do que em países que não viveram tais experiências de desumanidade.
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Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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