Leonardo Sakamoto
Apesar de respeitar as trajetórias de esportistas que se dedicam a superar seus próprios limites, não consigo – mesmo tentando muito – considerá-los heróis de alguma coisa.
Ayrton Senna – cuja triste morte, há 20 anos, em um acidente no circuito de Ímola, na Itália, é lembrada nesta quinta – ocupou espaço de herói da TV quando a seleção brasileira de futebol (que é a heroína de plantão) estava em baixa.
Usineiros de cana já foram chamados de heróis pelo ex-presidente Lula.
Quando um grande empresário morre, há um esforço para que ele se torne o herói que não foi em vida.
Alguém vai me tacar uma pedra por colocar um ídolo do esporte e um usineiro de cana no mesmo bote. Mas não estou discutindo caráter, apenas dizendo que nós, da mídia, e o poder criamos heróis sem nenhum constrangimento quando nos convém.
Quem mora em São Paulo sabe que havia uma avenida chamada Águas Espraiadas. Mas a prefeitura acabou por rebatizá-la, homenageando um morto ilustre. Seria preferível, na minha opinião, que ganhasse o nome do jornalista Vladimir Herzog, que se dedicou à liberdade e foi assassinado pela ditadura.
Esconder os verdadeiros heróis, seja largando-os ao ostracismo, seja fazendo suas biografias competir com histórias de outros “heróis'' diz muito sobre um país.
Ao centrar o foco em exemplos valiosos para os grupos dominantes, que nos vendem essas biografias como caminhos a serem seguidos, nos distanciamos de quem mereceria ganhar uma medalha de verdade.
Tempos atrás um amigo que cobre a área de esportes disse que heróis no esporte são “fabricados” com frequência, entre os exemplos de superação pessoal que mereceriam ser seguidos pelo restante da população.
Seguindo essa lógica, trago uma história que já havia apresentado neste blog para ser incensado como herói neste Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador e da Trabalhadora.
Antônio acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, é hora de começar a trabalhar o serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês que, sinceramente, não vale a pena – mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois não tem acesso ao Sírio Libanês, é o jeito.
À noite, acende o fogo e começa a vender “churrasquinho de gato'' no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente.
Como mora não muito distante do autódromo de Interlagos, pôs sua churrasqueira perto de casa para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora.
Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Superação? Heroísmo?
É claro que ninguém gostaria de seguir a vida de merda de Antônio.
Ela nunca sentirá o glamour do paddock de Mônaco e sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da merda para que ela brilhe.
A sua vida, muito provavelmente, não terá um final feliz para ser levada às telas do cinema. Não irá vencer a pobreza do sertão de Pernambuco e virar presidente ou superar o racismo da sociedade norte-americana e virar presidente. Também não será usado como exemplo de programas de educação estranhos como o “Amigos do Joãozinho'', em que crianças que comem biscoitos de lama seca, brincam com ossinhos de rabo de zebu e andam 115 quilômetros diários para ir à escola superam tudo e, graças a Deus sem a ajuda do Estado, viram presidentes de multinacionais para, depois, superexplorarem sua terra natal – tornando-se exemplos. Tampouco tem um equipe de marketing para manter seu nome vivo e resplandecente pela eternidade.
É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia-a-dia porque se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso. Não foram criados em berço de ouro e se houvesse uma escala justa que pudesse comparar diferentes superações, esses trabalhadores e trabalhadoras fariam nossos heróis da TV comerem poeira.
Pelo contrário, são tratados como restolho da sociedade, mão de obra barata, voto fácil, massa burra pelos mais ricos.
Apesar de servi-los, alimentá-los, transportá-los, enriquecê-los. Se usineiros são heróis, cortadores de cana são o quê?
Esperemos que os livros de história e nós, narradores da contemporaneidade (não apenas os profissionais, mas todos os que têm uma conta de rede social, um blog, uma rádio comunitária ou um jornal mural e, portanto, são tão jornalistas quanto os outros), tenhamos a decência de registrar que não foram apenas reis, ditadores e presidentes e mesmo pilotos, jogadores de futebol e famosos, que fizeram a realidade do nosso tempo mas, sim, o conjunto dos carregadores de pedra, como diria José Saramago.
Na hora em que o nome de qualquer um desses milhões, cuja desgraça é apenas um detalhe e por isso mantém-se escondida embaixo do tapete, for retirado das entranhas da sociedade e gritado a plenos pulmões como alguém que merece ser um herói, não precisaremos mais de heróis. E a vida seria outra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário