[Cartaz soviético elaborado para o Dia Internacional da Mulher, em 1914.]
Por Luis Felipe Miguel.*
A comemoração do Dia Internacional da Mulher chama uma reflexão sobre as conquistas do feminismo em sua história. Nos mais de cem anos que nos separam de quando a militante comunista Clara Zetkin propôs uma data para as lutas das mulheres de todo o mundo, houve um enorme avanço na concessão de direitos e na obtenção da igualdade legal, na maior parte dos países ocidentais. Em primeiro lugar, a conquista do voto, que foi a bandeira mais visível das mulheres nas primeiras décadas de sua mobilização política. Também se obteve o acesso à educação e, hoje, elas são a maioria entre os estudantes do ensino superior. As mulheres ganharam acesso legal à propriedade, podendo dispor de seus próprios bens. De maneira mais vagarosa, caiu também a maior parte dos dispositivos jurídicos que garantiam ao homem a autoridade maior dentro da família.
Há, assim, uma progressão rumo à igualdade de direitos, que é em si impoprtante, ainda que, como veremos, incompleta. A ela correspondem avanços bem mais lentos e ambíguos nas condições reais de vida das mulheres – o que, aliás, faz parte do registro “típico” da ordem liberal em sua relação com os grupos subalternos.
A família é um exemplo perfeito. A responsabilidade pela gestão da vida doméstica recai quase exclusivamente sobre as mulheres, o que implica em fadiga, menos tempo livre e piores condições no mercado de trabalho, seja para as profissionais, que não podem se dedicar à carreira da forma como os homens o fazem, seja para as menos especializadas, que não têm como fazer horas extras e precisam faltar quando os filhos ficam doentes ou a escola entra em greve. Isso leva a uma situação de maior vulnerabilidade no matrimônio para as mulheres, em particular porque sua dissolução em geral ocasiona uma significativa queda de status e renda, levando-as a uma tolerância maior a relações insatisfatórias e mesmo violentas.
A manifestação do Dia Internacional da Mulher, 1917, em Pitsburgo na Rússia, marcou o início da Revolução de Fevereiro. A foto integra o caderno de imagens do livro Mulher, Estado e Revolução, de Wendy Goldman.
Essa assimetria na conjugalidade espelha também a sobrevivência da dupla moral sexual. As transformações aceleradas na vivência da sexualidade por mulheres e por homens, nas últimas décadas, não anula o fato de que um comportamento considerado aceitável para eles pode significar uma nódoa para elas – um simples passeio pelo universo mental dos internautas confirma essa impressão. A apreciação prioritária pela aparência e a aceitação compulsória dos padrões imperantes de beleza ainda fazem parte da experiência vivida de grande parte das mulheres. E a violência sexual continua presente, nas periferias como nas universidades de elite, sendo legitimada, ou ao menos tratada como pouco séria, por um discurso machista difuso. Além das vítimas diretas que produz, ela interdita o acesso das mulheres a inúmeros espaços e gera, em todas, um temor constante de agressão.
O Estado concede uma atenção limitada às demandas próprias das mulheres. Por um lado, muitas de suas políticas simplesmente tomam como pressuposto os arranjos familiares tradicionais, com o homem provedor e a mulher responsável pelo lar, sem levar em conta nem que a perpetuação de tal arranjo é prejudicial para as mulheres, nem que um número crescente de famílias não se organiza desta maneira. Com isso, equipamentos públicos tão cruciais para a efetiva emancipação feminina, como creches e pré-escolas, ainda são escassos em países como o Brasil.
No campo político, embora mulheres tenham se destacado e hoje ocupem, por exemplo, a presidência de Brasil, Argentina e Chile (para ficar apenas no Cone Sul), permanece uma nítida divisão do trabalho. Para mulheres, é mais fácil ingressar na política se associando às temáticas “femininas”, vinculadas à proteção social. Mas essas temáticas são também aquelas que menos agregam capital político e menos propiciam acesso às posições centrais no campo. Como em todas as outras atividades profissionais, na política as mulheres também se defrontam com dificuldades maiores para conciliar carreira e vida familiar, o que é mais um entre os elementos centrais para sua menor presença nos círculos mais elevados de poder – e as que lá chegam tendem a ser, em número desproporcional, solteiras, divorciadas ou viúvas, indício poderoso de que o matrimônio, que é um apoio para eles, é um estorvo para elas.
Por fim – sem pretender que a lista seja exaustiva – é possível observar a manutenção das desigualdades no espaço do trabalho. O salário das mulheres ainda é, em média, menor que o de homens que realizam trabalho similar. Elas são promovidas com menos frequência e raramente alcançam cargos mais elevados. As mulheres estão concentradas nas ocupações menos especializadas e sobretudo, como a literatura que cruza sociologia do trabalho com gênero vem mostrando há décadas, atividades que exigem uma expertise vista socialmente como típica das mulheres não são entendidas como trabalho qualificado. Operar um torno aparece como exigindo mais qualificação do que operar uma máquina de costura. O próprio movimento sindical, nas categorias com forte presença de mão de obra de ambos os sexos, tende a priorizar as demandas dos homens, aceitas como “universais”, ao passo que as necessidades das mulheres são lidas como se fossem localizadas e específicas.
A denúncia do descompasso entre igualdade legal e desigualdade real, que não se tornou menos verdadeira por ser tão antiga, vale assim para as mulheres como para trabalhadoras/es e negras/os. No caso delas, porém, cabe observar que, mesmo entre os direitos legais, em muitos mais países (incluindo o Brasil) ainda falta um: o direito ao aborto. No debate sobre o tema, a legalização do aborto é muitas vezes – e por bons motivos – justificada como necessidade de saúde pública. Afinal, a ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez é uma das principais causas de internamento hospitalar de mulheres em idade fértil e também de mortalidade materna. A difusão dos métodos de abortamento químico, com uso do misoprostol, reduz os riscos para as mulheres, mas a proibição de seu uso as coloca à mercê do tráfico de medicamentos, por vezes de procedência insegura, e da utilização inadequada.
Mas, para além da questão de saúde, a legalização do aborto é também parte das condições necessárias para o acesso pleno das mulheres à cidadania. Não é preciso ir longe: na tradição liberal, a autonomia sobre si – e mesmo sobre o próprio corpo – é entendida como sendo a condição básica para o usufruto dos direitos. Para as mulheres, porém, tal prerrogativa é condicional. No momento em que engravidam, deixam de exercer autonomia sobre si mesmas. A mesma sociedade que não é capaz de amparar de forma eficaz as mães que escolhem sê-lo impõe um tipo de maternidade compulsória àquelas que engravidam sem desejar.
Ao negar às mulheres a capacidade de decidir se prosseguem ou não com a gestação, a proibição de aborto também recusa a elas o reconhecimento como agentes capazes de escolha moral. Faz delas indivíduos tutelados, que precisam do Estado – quando não da igreja – para tomar decisões sobre suas próprias vidas. Assim, o que está em questão, quando se coloca em pauta o direito ao aborto, é o acesso de metade da população aos direitos de cidadania em condição de igualdade com a outra metade. Por isso, entre tantas lutas importantes que o Oito de Março evoca, a defesa do direito ao aborto possui um estatuto especial. Sua negação é uma das últimas sobrevivências, na letra da lei, da afirmação expressa da desigualdade entre os sexos e da tutela sobre as mulheres.
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