Por Rafael Zacca, no site Outras Palavras:
Em todo o mundo a extrema direita surfa a onda conservadora da última década. Sempre que nos deparamos com um fenômeno confuso, vasculhamos a memória atrás de algum ponto de apoio para distinguir as coisas. É assim que por toda a parte o nazi-fascismo volta a ser sussurrado de ouvido em ouvido, como o marulho dessas águas. Chamar as coisas por seu nome é uma tarefa importante – mas distinguir os nomes corretamente é a tarefa justa. No caso brasileiro, o retorno do recalcado de nossa época ditatorial militar nos impele, a um só tempo, a lhe dar o nome de fascismo, e a acrescentar-lhe um broche, provavelmente maior que a roupa. Um broche tropical. Pois é difícil de acreditar que se possa sobrepor diretamente a imagem de Hitler ou de Mussolini à de Jair Bolsonaro, e nada nos parecerá mais absurdo do que a ideia de um povo ariano brasileiro.
Não obstante, a morte do capoeirista Moa do Katendê, na madrugada de 8 de outubro, é a mais recente evidência da existência de um fascismo à brasileira que diferentes discursos negacionistas tentam abafar. O capoeirista foi morto pela peixeira de um bolsonarista muito mais jovem (Moa tinha 63, o assassino tem 36), que cometeu o crime por “discordância política”. Outra evidência se dá no contexto dos acontecimentos que se seguiram ao assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco. Sete meses depois da execução, motivada pela atuação de Marielle no combate às milícias e na defesa da população negra e pobre das favelas do Rio de Janeiro, os então candidatos (e agora eleitos) a duas vagas na Assembleia do Rio, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, quebraram uma placa feita em homenagem à vereadora na rua em que ocorreu o assassinato, no bairro do Estácio. Tratava-se de um evento político, e ao lado dos dois estava, no mesmo palanque, o atual candidato ao governo do Rio, Wilson Witzel – todos do partido da oligarquia Bolsonaro.
Nas eleições para o primeiro turno, fotos da urna eletrônica indicando voto em Jair Bolsonaro e pistolas repousando sobre os números expõem, com uma clareza freudiana, a vontade de entregar poderes excessivos ao candidato. A poucas semanas do processo eleitoral, em Copacabana, uma corrida de militares, destinada a homenagear um sargento morto durante operação em uma favela carioca, tornou-se prontamente uma carreata de apoio ao presidenciável, em uma espécie terrível de anúncio de uma possível “versão tropical dos Freikorps”, como afirmou Gilberto Maringoni, professor da UFABC. O professor referia-se aos grupos paramilitares que encabeçaram a escalada de violência nazista no século passado. Bolsonaro parece aceitar de bom grado o trono que lhe querem entregar: já afirmou, ao longo de sua história, que é a favor da tortura, que fechará o congresso na primeira oportunidade, e, recentemente, que irá “por um ponto final em todos os ativismos do Brasil”.
Quando teve fim o seu exílio, Leonel Brizola regressou ao Brasil com a ideia de realizar um “socialismo moreno”: mais libertário, mais afeito aos trópicos. Em uma espécie de piada histórica de mau gosto, o que parece ter vingado no país é um “fascismo moreno”, com as cores de nossa bandeira. Torquato Neto escreveu em 1968: “não faça esforço para ser tropicalista: continue moralista e será. O trópico é fatal.” Um nome mais adequado para essa ideologia talvez seja “fascismo tropical”.
Para compreender esse fenômeno, é preciso partir da premissa de que o que encontramos aqui não é exatamente igual àquela ideologia que nasceu das fasci di combattimento italianas. É preciso repetir o gesto daqueles que enfrentaram a meia-noite do século XX: na década de 1930, os que resistiam ao autoritarismo e à morte criaram institutos de estudo e combate ao nazi-fascismo. Tais institutos viriam a calhar hoje no Brasil. A história não se repete – conhecer o que se passa aqui, dessa vez, é tarefa prioritária, para que possamos traçar estratégias de resistência e combate mais bem definidas. O que se segue é um ensaio de distinções.
Lembrar ou esquecer
É curiosa a franca oposição em que se encontram a mentalidade histórica nazi-fascista e a do fascismo tropical. Enquanto para o primeiro a história (ainda que inventada e travestida de ciência) é importante na fundamentação dos símbolos nacionais a serem adorados pela população, para o segundo, o esquecimento é o cimento sobre o qual o autoritarismo pode se firmar. Não à toa a Comissão Nacional da Verdade tenha sido, desde a sua fundação, duramente atacada, simbólica e materialmente, por partidários, civis e militares, da ditadura. Ligada a um projeto de revisão da lei da anistia, que admitiu o retorno dos exilados políticos e perdoou os crimes dos agentes do Estado brasileiro, a Comissão trabalhou no sentido de revisar a dívida histórica com o passado recente nacional, quando o regime militar sequestrou, torturou, matou e desapareceu com inúmeros cidadãos, muitos dos quais sem paradeiro certo até hoje. O projeto de esquecimento envolvido nesse processo conhece agentes armados, e não apenas ideologicamente eloquentes. Em 2014, por exemplo, o coronel Paulo Magalhães confessou crimes de tortura e sequestro à Comissão; um mês depois, sua casa foi invadida, o coronel assassinado, e seus computadores roubados.
Enquanto no fascismo tradicional o passado é glorioso e os ancestrais exaltados, no fascismo tropical o passado é motivo de vergonha e deve ser esquecido. O fascismo tropical é um projeto de futuro que quer purgar, com fogo mesmo, o território nacional de seus males. Apenas o patriarca é respeitável, o que explica, por sua vez, que a centralização de poder em nossa história seja tão mais facilmente alcançável. Essa ideologia funda em nós uma atração desproporcional, mesmo se comparada a outros contextos patriarcais, pelas figuras do super-herói incorruptível, do avô amoroso provedor ou do coronel que apazigua os conflitos locais. E não importa que sejam essas as figuras nacionais que mais rapidamente se mostrem corruptas, avarentas e violentas, quando não as três coisas: o fascismo tropical tem mais amor pela violência do chefe que pela instauração de uma ordem, pois identifica ordem com o cano de um revólver.
Sob gritos de “mito”, Jair Bolsonaro é eleito deputado, ano após ano, como o grande patriarca do fascismo tropical. Quanto mais os seus adversários relembram de seu flerte com os crimes de guerra do regime militar, mais o candidato se apoia na amnésia social promovida pela lei da anistia como escudo ideológico. Esse grande patriarca sofre hoje, não por mera coincidência, a maior rejeição por parte das mulheres, sob a bandeira do movimento do #elenão.
O inimigo externo ou interno
A tipificação do alvo nacional, do inimigo número um, também difere nos dois casos. Na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, esse elemento sempre foi exterior. Fora do território, esse inimigo movia a guerra de conquista. Marinetti chegou a afirmar em manifesto futurista, em apoio à Itália na guerra colonial na Etiópia, que “a guerra é bela”. O nazismo, por seu turno, cresceu na sombra do argumento da humilhação por seus vizinhos: o discurso revanchista, pelas consequências da derrota na Primeira Guerra Mundial, pavimentou a marcha da SS. E mesmo o grande alvo interno dos arianos, os judeus, eram tidos como inimigos externos, que teriam saqueado e destruído a nação. De um modo ou de outro, o nacionalismo se constrói por oposição ao internacional.
No fascismo tropical, o alvo é nacional. Esse efeito é possível graças à produção de esquecimento – assim, o alvo pode ser aquilo que é nacional, mesmo sob justificativa nacionalista. O ódio aos afrodescendentes e aos índios, e a todas as políticas de reparação histórica e de inclusão social desses grupos na sociedade, é a mais estranha contradição de um fascismo tropical. E é vestindo a camisa da seleção nacional de futebol, que teve historicamente a maior parte de seus melhores jogadores pessoas negras, que os novos verde-amarelos exigem políticas de extermínio nas favelas, fim de cotas nas Universidades e em concursos públicos, etc. Também o nordestino pode ser odiado desse ponto de vista, como inimigo interno que desorganiza o país, bem como o pobre. Todos esses alvos acusados de imoralidade – pois o fascismo, lá como aqui, é antes de tudo um ato de conservação dos costumes do patriarcado.
Exatamente por isso, tanto em um caso como no outro, um alvo continua o mesmo: o corpo estranho. O desejo de morte aos corpos que fogem da norma reprodutiva heterossexual se traduz, hoje, sob gritos de “fim do kit gay nas escolas” ou na exigência de que os não-heterossexuais não se mostrem de tal forma em espaços públicos. De qualquer maneira, a pressão para que esses modos de vida permaneçam na esfera privada significa – mesmo antes dos espancamentos e das violências verbais, que ocorrem todos os dias – a morte social desses corpos.
Nacionalismo e entreguismo
É curiosa a posição dos fascistas tropicais: são nacionalistas e entreguistas ao mesmo tempo. Essa foi a postura social e econômica da Ditadura Militar, e parece continuar a ser o projeto do militar Jair Bolsonaro. A aceitação de sua candidatura, por parte de grandes contingentes da população, coincidiu, inclusive, com uma mudança de posição do candidato: de passado protecionista, Bolsonaro se move cada vez mais para o campo neoliberal. Nesse sentido, o fascismo tropical é bastante diferente de seu irmão europeu – lá, o protecionismo é a palavra de ordem. Aqui, o economista liberal, formado por Chicago, Paulo Guedes, é a arma do convencimento de fecundidade do projeto de Bolsonaro. Privatização e entrega das riquezas nacionais podem conviver em seu discurso porque o nacionalismo, no fundo, não é sequer a exaltação de tais ou quais aspectos nacionais. Nacionalismo no fascismo tropical é pura e simplesmente a defesa da família tradicional e a repressão da sexualidade.
Esse fenômeno ficou conhecido entre os historiadores como “modernização conservadora”. Modernização com a livre-circulação do capital e dos capitalistas internacionais, e conservação nos costumes. Se no nazi-fascismo a modernidade é imoral e destrói o passado glorioso das nações superiores, no fascismo tropical a modernização é o que pode fazer com que a nação concorra a um papel de destaque no arranjo internacional de disputa de riquezas. E como sempre cabe mais um ingrediente no prato brasileiro, soma-se a esses aspectos um reacionarismo no campo social, com a retirada progressiva de direitos. Ataques à legislação trabalhista são justificáveis em prol de uma “estabilização financeira” e “reequilíbrio das contas públicas”, delegando, no fundo, ao trabalhador, a tarefa de fechar as contas do cofre nacional.
O fenômeno não se desenvolve sem contradições, é claro. Um dos principais aliados de Bolsonaro, por exemplo, Alexandre Frota, é um dos defensores da moralidade e dos bons costumes, além de guardião discursivo da família tradicional brasileira, e parece não causar espanto o fato de que Frota tenha sido ator pornô e tenha contracenado tendo relações sexuais com diferentes moças e rapazes, performando hetero, bi e homossexualidade em seus filmes. Também não parece contradizer a família tradicional o fato de que Frota tenha feito apologia ao estupro em rede de televisão aberta. Nada disso impediu que o ator tivesse sido eleito deputado federal com 152 mil votos pelo partido de Bolsonaro, o PSL.
Antipartidarismo como guarda-chuva ideológico
O fascismo não se fundamenta sem um guarda-chuva ideológico. É preciso canalizar uma grande variedade de medos e inseguranças da população sob um mesmo signo para arregimentá-la em seu projeto. Largos contingentes de seres humanos, formados até mesmo pelos corpos ameaçados por essa ideologia, não são fascistas por natureza. São boas pessoas, incapazes de ferir o semelhante. É preciso que um elemento que filtre as diferentes demandas sob um só signo odiento e que, nesse mesmo movimento, impulsione a violência em ondas cada vez mais fortes. Somente com essa canalização aquilo que Hannah Arendt chamou de banalização do mal é possível. Como o fascismo floresce em épocas de crise das relações sociais, esse filtro se liga a um elemento que possa a qualquer custo conservar essas relações. Em 1964, o filtro era o anticomunismo. Hoje, é o antipartidarismo, principalmente o antipetismo. Sob o argumento da corrupção, esconde-se um ódio às transformações sociais exigidas por pobres, negros, mulheres, LGBTQ+ e índios.
De outro modo, não se explica o apoio dado a Jair Bolsonaro e àqueles que coligam com ele. Sua história partidária está ligada aos mesmos escândalos que sustentam a retórica do PT como o partido mais corrupto de todos. Bolsonaro era deputado pelo PTB na mesma época em que o partido protagonizou o mensalão; foi deputado pelo PP na mesma época em que o partido teve o maior número de indiciados no petrolão; além de ter participado da base ampla do PT por muitos anos. Mas nada disso adiantará nos ouvidos tropicais desse fascismo à brasileira. Atacar a sustentação do filtro ideológico é gastar energia sem produzir efeitos; aqueles que se comprometem com o combate ao fascismo devem estar dispostos a refazer as perguntas fundamentais que movimentam o medo daqueles que coligam com este projeto. Apenas na reformulação dos problemas sociais que servem de fundamentação real ao fascismo, a esquerda conseguirá apontar uma direção mais adequada. Isto é: não é a questão partidária que está em jogo. No limite, a questão partidária é apenas o conteúdo manifesto de um conteúdo latente que precisa ser trazido novamente para os debates públicos. Já o combate aberto, deve ser reservado aos ideólogos do fascismo tropical, tais como toda a oligarquia Bolsonaro, Kim Katagury, Olavo de Carvalho, Rodrigo Gurgel, Alexandre Frota, e outros pseudo-pensadores semeadores dos campos da morte.
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