“Deixemos com sua piedade aqueles que querem que se guarde viva e intacta a herança da Aufklärung. Esta piedade é claramente a mais forte das traições.” (Foucault)
Questão que permeia as considerações da Filosofia da História, é a noção de teleologia. Palavra derivada do grego télos, teleologia designa o estudo das finalidades e a doutrina filosófica que considera o mundo como um sistema de relações entre meios e fins. Kant denuncia sua orientação teleológica ao tomar o homem como um ser que se orienta em direção ao melhor, em outras palavras, considera que a história se revela como uma sequência de tempos cronológicos em que a humanidade caminha no sentido de atingir sua finalidade última: o progresso moral refletido na ordem social.
Em conferência ministrada no Collége de France, em janeiro de 1983, Foucault se propôs a apresentar a gênese de seu próprio trabalho e de seus esforços para a construção de uma forma de compreensão da história e dos fatos que compõe a atualidade. Para tanto, discorre sobre o pensamento de Kant, expresso nos artigos “O que é Iluminismo”, “Estará o Gênero Humano em Contínuo Progresso em Direção ao Melhor?” e “O Que é Revolução”. Foucault chama a atenção para a Aufklärung entendida não como fato histórico isolado e sim, segundo ele, como um “progresso permanente que se manifesta na história da razão, no desenvolvimento e instauração de formas de racionalidade e de técnica”.
Declarando-se um seguidor da tradição filosófica delineada por Hegel, por Nietzsche, por Max Weber e, mais recentemente, pelos teóricos da Escola de Frankfurt, Foucault vê em Kant a origem das reflexões filosóficas que tomam como objeto elementos inseridos no tempo presente. Imerso no Século das Luzes, foi Kant quem chamou a Aufklärung a analisar a si mesma e a conceituou como “a saída do homem de sua minoridade auto-imposta”. Livre para dispor de seu próprio entendimento, o homem, segundo Kant, deve superar a indecisão e a falta de coragem, libertar-se dos dogmas, das fórmulas estabelecidas e, tal como Platão representou no Mito da Caverna, deixar um mundo de sombras, de aparências, para conquistar seu lugar como pensador autônomo que se aventura no universo das ideias essenciais.
Foucault se aprofunda na teleologia kantiana ao comentar a análise apresentada em “Estará o Gênero Humano em Contínuo Progresso em Direção ao Melhor?” Procurando um objeto que seja causa concretizadora do progresso humano verificável, Kant detecta na revolução um forte indício. Foucault explica que não se trata da revolução em si, pois esta não faz mais do que substituir uma ordem estabelecida por outra similar, mas sim do que denuncia o entusiasmo que move um povo à revolução.
Este entusiasmo é verificável em todas as épocas, passado e presente, assim como voltará a reclamar seu lugar no futuro, pois é força motriz que recusa o conformismo e cristaliza conflitos que impulsionam os Estados nacionais em direção à justiça e à garantia dos direitos naturais dos homens. A revolução, nas palavras de Kant, é signo da “disposição da qual a humanidade é portadora”.
Mas a revolução não é o único signo possível a essa disposição, a esse entusiasmo. Na Grécia antiga, em meio aos mitos e superstições, surgiram homens que desafiaram o senso comum e os dogmas estabelecidos, questionando sobre a verdadeira origem das coisas e as leis da natureza. Fazendo uso do pensamento racional, ergueram os pilares que servem de sustentação à civilização ocidental. O pensamento racional que os gregos sistematizaram, possibilitou o nascimento e desenvolvimento da ciência em seus vários segmentos, além de sedimentar as bases da moral e da política. A própria Filosofia, portanto, no que ela encerra de busca pela satisfação humana através do conhecimento, é um signo da disposição e do entusiasmo da humanidade para caminhar em direção ao melhor. É, porém, um signo não massificado, que só lentamente atinge um número maior de adeptos.
Outro signo possível é o desenvolvimento tecnológico que, embora atrelado aos meios de produção, não deixa de denunciar a disposição e entusiasmo de alguns homens pela racionalidade e pelo conhecimento técnico que beneficia a humanidade. Mas o desenvolvimento tecnológico é um símbolo problemático.
Nicolau Sevcenko, em “A Corrida Para o Século XXI”, chama a atenção para a crise que caracteriza a atualidade: a crise tecnológica. Abordando o desenvolvimento tecnológico que ganhou destaque a partir do século XVI, Sevcenko se detém na transição do século XX para o XXI. Trata-se de período profundamente marcado pela informática, pela vertiginosa velocidade em que se chocam a redução dos tempos de transmissão das mensagens e a noção de superação das distâncias geográficas, disseminando entre os homens um estado “apatetado e conformista” que ameaça as instituições e a sobrevivência dos valores humanos.
Desnecessário dizer que o torpor que envolve a todos, frente às inovações das tecnologias da informação, caracteriza o desenvolvimento tecnológico como signo de duas dimensões: por um lado impulsiona, por outro aprisiona no universo do senso comum e das ideias prontas, agora eletronicamente processadas. Sobre o processo histórico das luzes projetam-se as sombras do pensamento formatado, do irrefletido como reflexo de vazio existencial. É um “signo em duas dimensões”, também, pela projeção da técnica e pelo que trás em si como possibilidade de racionalidade.
Ao procurar alertar seus leitores para a necessidade de despertar do sono latérgico provocado pelas tecnologias modernas, Sevcenko afirma: “uma coisa que a técnica não pode fazer é abolir a crítica, pela simples razão de que precisa dela para descortinar novos horizontes”. O sentido tecnológico tem como premissa básica justamente o “descortinar novos horizontes” em processo contínuo, o que torna possível a busca incessante pelo esclarecimento, presente, mesmo que discretamente, em todas as épocas.
Para Sevcenko, neste momento histórico, garantir o progresso em direção ao melhor implica submeter o desenvolvimento tecnológico à crítica, seguindo o exemplo do que fez Kant com a Aufklärung, no momento mesmo em que ela se tornava a característica máxima de uma época. Para tanto, conforme Sevcenko, é preciso conquistar um distanciamento que favoreça o discernimento crítico; recuperar o tempo histórico da própria sociedade, visualizando seu contexto geral; sondar o futuro com perspectiva histórica, de forma a identificar como a técnica pode vir a favorecer a racionalidade orientada no sentido dos valores humanos.
Como declara Kant, “o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre apenas ao ideal e, claro está, puramente moral”. Assim, o mal, mesmo que travestido de bem, é um estágio a ser racionalizado e superado.
O que há de comum entre os pensadores aqui mencionados – além de pertencerem à tradição filosófica que fundamenta as bases da civilização ocidental –, é a preocupação com os fatos que permeiam o tempo histórico em que estão inseridas suas próprias existências. Foi com esta proposta que Foucault se lançou a um “pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade”. Ele tem em Sevcenko um correspondente que convoca para a mesma linha de reflexão. Ambos se posicionam em sentido oposto aos traidores da Aufklärung, contrários àqueles que em nome do saudosismo histórico ignoram a necessidade de diagnósticos do nosso tempo em detrimento do ideal humano de construção infinita em direção ao melhor.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. O que é o Iluminismo? Tradução de Walderson Flor do Nascimento. Magazine Litteráire. Paris: Collége de France, n. 207, pp. 35-39, maio, 1984.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é Ilustração? Disponível na Internet em . Acessado em 10.04.2009.
KANT, Immanuel. O Conflito das Faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993, pp. 95-112.
SEVCENKO, Nicolau. A Corrida Para o Século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
(Artigo escrito em junho de 2009, para obtenção de créditos no curso de Filosofia)
Fonte: helenanovais.blogspot.com