Às vezes me pego pensando se o fato de sermos humanos nos exime de nossos erros, afinal, dizem por aí que "errar é humano". Mas e quando o erro não afeta apenas você? E o que dizer dos erros que tiram vidas, esperanças? Dos erros que machucam e matam? Dos erros que magoam e ferem?
Essa crônica do Antonio Prata é antiga, mas ainda consegue refletir os nosso dias, pois ainda continuamos nos comportando como humanos, tanto com as características boas quanto com as ruins...
Essa crônica do Antonio Prata é antiga, mas ainda consegue refletir os nosso dias, pois ainda continuamos nos comportando como humanos, tanto com as características boas quanto com as ruins...
Monstros e Humanos
Quando uma pessoa é muito boazinha, honesta e prestativa, costuma-se dizer que ela é muito humana. É verdade, essa belas características são exclusividade da nossa espécie e nos distinguem dos outros animais. As araras não fazem caridade, as onças não dão carona a tartarugas atrasadas e, até onde eu saiba, as girafas não emprestam seus longos pescoços aos macacos interessados em pegar as frutas dos galhos mais altos das árvores.
O problema é que a capacidade de fazer o bem sem esperar nada em troca é apenas um dos traços da espécie humana: matar por motivo fútil, destruir o mundo para ganhar dinheiro e passar rasteira no corredor da escola também são. Por isso, quando dizemos que alguém é muito humano, estamos mentindo, ou melhor, omitindo o lado obscuro da humanidade. Afinal, se são próprias da humanidade coisas tão opostas como a poesia e a guerra, o beijo e o tapa, o cafuné e a tortura, dizer que alguém é muito humano deveria significar que esse alguém é capaz de todas essas coisas, do melhor ao pior que nós somos capazes de fazer.
Quando associamos à humanidade apenas seu lado cor-de-rosa e varremos para baixo do tapete tudo o que é feio em nossa condição, acabamos desumanizando tudo o que não assumimos, chamando os criminosos de monstros, inumanos, e isso causa dois grandes problemas. Primeiro: os monstros, como toda criança sabe, devem ser mortos sem dó nem piedade. Chamando os bandidos de monstros, aceitamos que se faça com eles aquilo que eles fizeram com suas vítimas - até matá-los. Segundo: ao identificarmos com os monstros aqueles que cometem atos que a maioria de nós considera horrorosos, deixamos de reconhecer em nós mesmos aquelas características que nos fariam capazes, em determinadas condições, de cometer os mesmos atos. Sim, cara leitora: você poderia roubar ou matar dependendo das condições.
Calma, não estou justificando essas lamentáveis ações, não estou dizendo que tudo bem, muito pelo contrário. É o reconhecimento dessa possibilidade que faz com que você, que opta por outro caminho (o diálogo em vez da violência, o trabalho em vez da corrupção), possa se orgulhar de sua atitude. E é o reconhecimento de que o outro, o cara que matou, assaltou ou fez sei lá o quê, é um ser humano como você, que poderia não ter feito nada disso, que te permite condenar seus atos. Afinal, não há nada estranho quando os monstros saem por aí fazendo o mal. Quando os humanos fazem, sim, temos que parar para pensar: o que está errado? O que fez com que um ser humano, como eu, possa ter cometido atos tão horrendos? É nisso que venho pensando há algumas semanas, vendo nos jornais as histórias da mulher que roubou uma criança dos braços da mãe, na maternidade, e da garota, que com a ajuda do namorado, matou os próprios pais. É nisso que penso também quando vejo a escalada da violência no Oriente Médio e nas cidades brasileiras. Como é que pode essa mesma espécie produzir poesia e assassinato, música e guerra, tanta beleza e tanta dor? Estive pensando e acho que vou continuar pensando por mais muito, muito tempo.
REFERÊNCIA: PRATA, Antonio. Adulterado. São Paulo: Moderna, 2009 p. 34-36
Quando uma pessoa é muito boazinha, honesta e prestativa, costuma-se dizer que ela é muito humana. É verdade, essa belas características são exclusividade da nossa espécie e nos distinguem dos outros animais. As araras não fazem caridade, as onças não dão carona a tartarugas atrasadas e, até onde eu saiba, as girafas não emprestam seus longos pescoços aos macacos interessados em pegar as frutas dos galhos mais altos das árvores.
O problema é que a capacidade de fazer o bem sem esperar nada em troca é apenas um dos traços da espécie humana: matar por motivo fútil, destruir o mundo para ganhar dinheiro e passar rasteira no corredor da escola também são. Por isso, quando dizemos que alguém é muito humano, estamos mentindo, ou melhor, omitindo o lado obscuro da humanidade. Afinal, se são próprias da humanidade coisas tão opostas como a poesia e a guerra, o beijo e o tapa, o cafuné e a tortura, dizer que alguém é muito humano deveria significar que esse alguém é capaz de todas essas coisas, do melhor ao pior que nós somos capazes de fazer.
Quando associamos à humanidade apenas seu lado cor-de-rosa e varremos para baixo do tapete tudo o que é feio em nossa condição, acabamos desumanizando tudo o que não assumimos, chamando os criminosos de monstros, inumanos, e isso causa dois grandes problemas. Primeiro: os monstros, como toda criança sabe, devem ser mortos sem dó nem piedade. Chamando os bandidos de monstros, aceitamos que se faça com eles aquilo que eles fizeram com suas vítimas - até matá-los. Segundo: ao identificarmos com os monstros aqueles que cometem atos que a maioria de nós considera horrorosos, deixamos de reconhecer em nós mesmos aquelas características que nos fariam capazes, em determinadas condições, de cometer os mesmos atos. Sim, cara leitora: você poderia roubar ou matar dependendo das condições.
Calma, não estou justificando essas lamentáveis ações, não estou dizendo que tudo bem, muito pelo contrário. É o reconhecimento dessa possibilidade que faz com que você, que opta por outro caminho (o diálogo em vez da violência, o trabalho em vez da corrupção), possa se orgulhar de sua atitude. E é o reconhecimento de que o outro, o cara que matou, assaltou ou fez sei lá o quê, é um ser humano como você, que poderia não ter feito nada disso, que te permite condenar seus atos. Afinal, não há nada estranho quando os monstros saem por aí fazendo o mal. Quando os humanos fazem, sim, temos que parar para pensar: o que está errado? O que fez com que um ser humano, como eu, possa ter cometido atos tão horrendos? É nisso que venho pensando há algumas semanas, vendo nos jornais as histórias da mulher que roubou uma criança dos braços da mãe, na maternidade, e da garota, que com a ajuda do namorado, matou os próprios pais. É nisso que penso também quando vejo a escalada da violência no Oriente Médio e nas cidades brasileiras. Como é que pode essa mesma espécie produzir poesia e assassinato, música e guerra, tanta beleza e tanta dor? Estive pensando e acho que vou continuar pensando por mais muito, muito tempo.
REFERÊNCIA: PRATA, Antonio. Adulterado. São Paulo: Moderna, 2009 p. 34-36