A cada dia, cinco pessoas são assassinadas pela polícia brasileira. O número, que se refere ao ano de 2012, é 4,6 vezes superior ao dos Estados Unidos. Naquele ano, 1.890 pessoas foram assassinadas no Brasil e 410 nos EUA. As informações foram levantadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG que anualmente compila os dados estaduais e traça um perfil da violência pelas 27 Unidades da Federação.
Apesar dos dados serem um tanto antigos, o ano de 2013 parece que não deve apresentar uma melhora tão significativa no cenário nacional. Uma breve análise sob as informações disponíveis em três dos cinco Estados mais populosos do país (São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) mostra que a retração não foi tão grande no ano passado.
As informações disponibilizadas pelas secretarias de Segurança Pública desses três Estados mostram que seus policiais matam, juntos, duas pessoas em média por dia. Esses dados que se referem a supostos confrontos entre criminosos e policiais, mas ele ainda está distante da realidade. Isso porque algumas investigações ainda estão em andamento, como o do caso de um jovem em Limeira (interior de São Paulo) que foi encontrado morto após ter sido preso, algemado e colocado dentro de um carro da PM. Esse óbito não entrou para a estatística de mortos por policiais.
Em São Paulo, o Estado mais populoso do Brasil, apresentou uma diminuição das mortes cometidas por policiais militares. O ano passado registrou a menor letalidade da PM em 15 anos. Ainda assim, a polícia local responde por 7,5% de todos os assassinatos do Estado. No Rio, esse índice é de 8,7% e no Rio Grande do Sul, de 3,1%.
Em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, três dos cinco Estados mais populosos do Brasil, duas pessoas são mortas por dia por policiais
Para o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, José Vicente Tavares dos Santos, esse índice ainda é alto porque a cultura policial é de que esse agente de segurança precisa ser um herói. Autor de estudos que analisam o treinamento policial, Santos é categórico em afirmar que é necessário mudar o ensino desses profissionais, caso contrário, a letalidade policial não se reduzirá tão cedo.
“Em todas as academias de polícia em que estive pude perceber que o policial é preparado para atirar no coração do agressor. Não há uma preocupação de trabalhar o tiro defensivo ou de não usar armas letais como há na Inglaterra, por exemplo”, afirmou o especialista.
Tânia Pinc, doutora em ciência política e major da reserva da PM, vai mais ou menos na mesma linha e diz que o problema da letalidade policial é exatamente a falta de treinamento. Ainda assim, segundo ela, é preciso analisar cada caso de morte provocada por um policial. “Temos a tendência de tratar a letalidade como uma ilegalidade. Nem todos os resultados letais são intencionais. Eles estão relacionados à falta de preparo. A maioria dos policiais não quer matar, mas, sob forte stress ele acaba usando a arma de fogo e matando. Ao invés de ser um instrumento de proteção da sociedade a arma acaba se tornando um objeto de defesa pessoal ”, avaliou a especialista que foi oficial na polícia por 25 anos.
A cultura do heroísmo citada pelo sociólogo Santos não está apenas dentro da polícia. No Judiciário ainda é possível encontrar incentivadores dessa violência. Em setembro de 2011, por exemplo, uma reportagem da Folha de S. Paulomostrou que um promotor reclamava que um dos policiais conseguiu matar só um dos criminosos que atirou contra ele. Dizia o promotor: "Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento, todavia, que tenha sido apenas um dos rapinantes enviado para o inferno. Fica aqui o conselho para [o policial] Marcos Antônio: melhore sua mira..."
Ainda hoje, a maneira mais comum de se medir a violência policial é analisar quantas pessoas foram mortas pelos agentes. Isso porque ainda não é possível aferir quantas foram vítimas de agressões gratuitas, como o motorista que foi parado porque passou na frente de uma moto de um PM, do jornalista que filmou uma abordagem e questionou a ação, da mulher que brigou porque um conhecido seu estava sendo preso e por aí vai. Basta fazer uma breve pesquisa na internet para encontrar dezenas de exemplos de atitudes incomuns de policiais.
Esses casos são classificados pela cientista política Pinc como “ações abusivas invisíveis”. “Para se combater isso seria preciso ter um maior controle do policial. As denúncias feitas sobre esses abusos deveriam ser isentas e quem tiver a culpa ser punido. Mas, infelizmente, ainda temos poucos casos de punições, o que desestimula a denúncia e faz com que os casos continuem acontecendo”, ponderou.
A preocupação dos especialistas é que essa agressividade extrapole para momentos em que ela não é nem um pouco necessária como para conter manifestantes que não estão cometendo nenhum delito, como ocorreu nos últimos protestos contra a Copa do Mundo na capital paulista. “Temos que aproveitar esse momento de comoção social, essa série de protestos para rediscutir nossa polícia. O ideal é acabar com a PM? Eu acho que não. Deveríamos democratizá-la e reduzir algumas regras internas que são prejudiciais a ela”, disse o professor Santos.
Policiais vítimas
Algo que não dá para negar é que, ao mesmo tempo em que são autores de homicídios (ainda que em confrontos) os policiais têm sido vítimas em várias ocasiões. Em 2012, ao menos uma centena de policiais militares da ativa e aposentados foram assassinados em São Paulo em uma onda de violência que foi tratada como uma reação do crime organizado contra o fechamento de pontos de venda de drogas. Desde então, a tensão na tropa cresceu.
Em um dos artigos publicados no “Anuário Brasileiro de Segurança Pública” , as pesquisadoras da Fundação Oswaldo Cruz Edinilsa de Souza e Maria Cecília Minayo reforçam que “enquanto a sociedade reclama da letalidade produzida por eles contra a população, os policiais também estão morrendo violentamente em elevadas proporções”. No ano de 2012, por exemplo, 23 das 27 Unidades da Federação informaram que tiveram policiais assassinados durante o serviço ou nos horários de sua folga.
Para essas duas pesquisadoras, há diversas razões para que eles sejam vítimas de homicídio. Eis algumas delas : a negação do perigo por considerar que medo, ansiedade e choro são manifestações de fraqueza e devem ser reprimidas, além do sentimento de urgência da vida, como se houvesse sobre eles uma "sentença de morte” antecipada.
De fato, ao acompanhar uma recente abordagem policial de um homem na região central de São Paulo, a reportagem do EL PAÍS questionou por qual razão o PM havia sido tão agressivo ao abordar um cidadão que, sem querer, passou o carro na frente da moto do agente. A resposta do PM: “Você tem de entender meu mundo. A todo momento eu acho que vou morrer. Não posso falar um ‘por favor’ ou um ‘muito obrigado’ para uma pessoa que pode estar querendo me matar. Primeiro sou duro. Depois relaxo”.
Ao que parece, o que ainda prevalece é aquela velha tese reproduzida nos filmes de bang-bang: atira primeiro, pergunta depois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário