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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

E quem vai me pedir desculpas?



Texto de Jamil Cabral Sierra.

No futebol brasileiro (1) é assim: jogador pede desculpa por dar selinho no amigo, jogador pede desculpa por sair com pessoas trans*, jogador pede desculpas por dar pinta em campo. Agora, pedir desculpa por inflar a homofobia, por espalhar a transfobia, por reiterar o machismo e o (cis)sexismo nenhum desses jogadores vem a público se desculpar.

Lembro-me, até hoje, como eram sacrificantes para mim as aulas de Educação Física (2) na escola, especialmente quando, nessas aulas, eu era obrigado, por imposição de docentes, a jogar futebol. Me sentia tão humilhado e fracassado nessas aulas que a única coisa que eu queria era sumir da escola e das aulas de Educação Física e nunca mais voltar. Essa violência a que eu era submetido cotidianamente materializava-se por caminhos cruéis e, evidentemente, promotores de exclusão. Mesmo que, à época, eu me apresentasse socialmente como um garoto branco, cis, de classe média e bom nos estudos eu não tinha garantia alguma de que tais privilégios fossem suficientes para me salvar das ofensas que pululavam da cabeça de coleguinhas adolescentes que se achavam mais homens do que eu por terem sido treinados a chutar a bola – e a chutar, consequentemente, toda a diferença que incomodavam a norma para fora da quadra. E por que tais privilégios não eram suficientes para garantir minha paz em campo? Eu era branco como eles, eu me vestia como como eles, eu tinha uma bola Topper como a deles, eu tinha pinto como eles… mas eu era gay e eles não. Isso bastava para que me colocassem em uma determinada categoria identitária desprezada e, com isso, me enquadrassem no campo da anormalidade, revogando-se, assim, todo e qualquer direito que, supostamente, eu poderia acessar. Meu único direito era o de ser escolhido por último para o time.

Minha gueizidade me fazia querer experimentar o corpo de outras formas, me lançava na experimentação do físico muito menos para me afirmar como homem e muito mais para, no contato com outros corpos, inventar relações das quais eu pudesse extrair algum tipo de prazer. Como não via ali, no futebol, nada que pudesse me dar prazer, eu não fazia. Acolhia-me, junto às meninas, na mesa de ping-pong, na amarelinha, no pega-pega. Com elas, ao menos, experimentava certa afetividade e contato corporal que me satisfaziam. Em vista disso, as aulas de Educação Física se constituíam, para mim, apenas como um lugar em que se processavam, no interior da escola, as mesmas violências com as quais eu era obrigado a lidar fora dela, o que significava que eu não estava seguro em lugar algum: nem na rua, nem na escola; nem no campinho do vizinho, nem na quadra do colégio.

Foto de Cesinha Marin no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Evidentemente que na época eu não conseguia perceber, de forma mais analítica, o quanto eu era violentado por meio do esporte, em especial, pelo futebol. Não reconhecia, obviamente, como o futebol se convertia numa tecnologia que além de operar a fabricação dos gêneros operava, também, como diz Foucault (3), o governo de corpos de modo a conduzir a conduta daqueles moleques todos em direção à heteronormatividade, à cissexualidade, ajudando a construir, assim, o machismo e o (cis)sexismo que, no futuro, seriam seus comparsas em campo e fora dele. Não era capaz de enxergar que o culpado não era eu. Não via, ao contrário, que eu era a vítima de todos eles que me imputavam rótulos e me perseguiam feito gafanhotos. Não conseguia perceber que não gostar de futebol não era um problema intrinsicamente meu, que não era uma obrigação minha – por ter sido designado como menino ao nascer, compulsória e naturalmente, como uma inscrição em meu DNA – saber dar dribles e acertar o gol. A adolescência é, de fato, cruel com a gente, não é?

Por tudo isso, não se enganem. O futebol, como vários outros esportes, é uma maquinaria disposta a fabricar gêneros, a reforçar os lugares do feminino e do masculino, a reiterar performatividades hegemônicas, engendrando formas de violência e exclusão. O campo de futebol, lugar em que se reitera o dispositivo da sexualidade, como descreveu Foucault (4), publiciza uma noção de masculinidade que ignora as múltiplas vivências masculinas, que invisibiliza outros modos viver o corpo-homem, que subjulga e ignora as masculinidades trans*. O campo de futebol, como lugar em que se produz o macho-atacante, em que se negociam as formas de ser e parecer homem de verdade, em que se refratam gritos e gestos de intimidação tão tipicamente preconceituosos se transforma em um lócus privilegiado de produção do machismo e do (cis)sexismo que vemos por aí. O torcedor ou o jogador que entre as quatro linhas ofende o juiz chamando-lhe de “filho da puta” e zoa com o adversário chamando-lhe de “viado” é feito, em grande parte das vezes, do mesmo amalgama do homem que, ao chegar em casa, depois de ver o jogo da arquibancada, bate na esposa e achincalha o filho gay por não ter ido ao estádio com ele participar desse espetáculo homofóbico e machista.

Por isso, não adianta dar selinho no amigo para fazer média com a opinião pública, se depois vai ter que pedir para torcida do time desculpas pela “tamanha obscenidade” praticada. O que acontece hoje nos campos de futebol não é diferente das mesmas violências que praticavam os meus colegas nas aulas de Educação Física. Pessoas, inclusive, que me devem, até hoje, um pedido de desculpas.

Notas e Referências

(1) Falo aqui especialmente do futebol masculino, aquele jogado por homens cis e, em sua grande maioria, héteros. Não falo do futebol feminino, por achar que nessa modalidade há algumas especificidades que o diferem, inclusive em termos de reprodução da lógica machista, do futebol masculino.

(2) Evidentemente que falo aqui de uma experiência de aulas de Educação Física muito particular e pessoal, fruto do meu processo de escolarização em uma cidade muito pequena, do interior do Paraná, entre os anos de 1980 e 1990. Lógico que talvez há, hoje, outras possibilidades de experienciação do corpo nas aulas de Educação Física mais dissociadas dos processos de heteronormatividade pelos quais eu passei.

(3) FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

(4) FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. V. 1. 14 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

Jamil Cabral Sierra é professor da UFPR, pesquisador na área de Gênero e Diversidade Sexual e, como não canto, não danço, não atuo, não toco nenhum instrumento, não pinto… nem bordo (só às vezes), não desenho e não esculpo, resta apenas inventar-me na/pela escrita. Uso os caracteres como arma de guerrilha.

Via:http://mariadapenhaneles.blogspot.com.br/

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