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sábado, 26 de setembro de 2015

A esquerda depois do PT




É possível dizer que é injusta a maneira pela qual o Partido dos Trabalhadores se tornou o emblema de todos os vícios da política brasileira, enquanto seus concorrentes da direita são preservados sistematicamente por uma cobertura de mídia manipulada. É verdade. Caixa dois, loteamento do Estado, relações de compadrio com grandes grupos econômicos, corrupção: o PT não inventou nada disso; pelo contrário, tornou-se participante tardio de uma festa que começara muito antes (e, aliás, para a qual nem fora convidado). Nem por isso, os efeitos do desgaste do PT no eleitorado deixam de ser sentidos. Para a classe média, que se sentiu ameaçada pelo pequeno avanço dos mais pobres nos três mandatos presidenciais petistas, o discurso da indignação moral permite extravasar sua insatisfação, de maneira mais legítima do que se ficasse apenas no registro do simples egoísmo. E a maioria politicamente desmobilizada, com menor acesso a outros canais de informação, tem poucos recursos para resistir ao bombardeio da mídia.

Ao mesmo tempo, os grupos mais politizados à esquerda se sentem cada vez menos contemplados pelo partido que é responsável por um governo que implanta políticas altamente prejudiciais aos interesses dos trabalhadores e que, na busca da permanência no poder, não imagina outro caminho além de uma submissão cada vez mais profunda ao capital. Em nove meses de segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff não foi capaz sequer de fazer um aceno simbólico aos movimentos populares, certamente por imaginar que tal gesto assustaria aqueles que ela tenta desesperadamente agradar. Na visão política de Dilma e seu círculo, os movimentos populares não existem. Todas as equações que fazem para sair da crise incluem os mesmo elementos: os grandes grupos econômicos, as elites políticas tradicionais, as oligarquias partidárias. Por mais que a conta nunca feche, não se cogita agregar um novo fator.

No início deste segundo mandato ainda era possível imaginar que, apesar de todo desgaste, o PT possuía lastro nos movimentos sociais para manter sua relevância como força política. Hoje, está claro que não. Por mais que o golpismo dos defensores do impeachment seja evidente, por mais que ver Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves entronizados no papel de guardiães da moralidade pública cause repulsa, quem quer defender um governo cujo único programa é o aumento do desemprego e a redução do investimento social?

Espremido entre a campanha ascendente da direita, uma mídia cada vez mais abertamente hostil e o seu governo, que age diariamente contra sua base social, o PT caminha para se esfarelar com uma velocidade inimaginável um ano atrás. Movimentos sociais acomodados com a interlocução com o PT estão percebendo que o partido perdeu a capacidade de expressar suas demandas. Mas também muitos deputados, prefeitos e vereadores petistas buscam novas legendas, por vezes até na direita, em geral por simples oportunismo – o que revela, por si só, como o PT se tornou parecido com os partidos tradicionais.

Evidentemente, tudo isso não é efeito apenas do descalabro do segundo governo Dilma. O PT nasceu com um projeto – inacabado, em aberto, contraditório. Apontava para um horizonte de transformação profunda da sociedade, incluindo algum tipo indefinido de socialismo, alguma forma nova de fazer política e também a revalorização da experiência das classes trabalhadoras. A busca de relações radicalmente democráticas, de uma política efetivamente popular, fazia parte da “alma do Sion”, como André Singer definiu o espírito original do partido, fazendo referência à sua fundação no Colégio Sion, em São Paulo, em 1980.

Para pessoas treinadas nas tradições organizativas da esquerda, o PT original possuía uma perigosa indefinição programática, além de ser vítima de um basismo e de um purismo paralisantes. De fato, o partido surgiu num momento em que essas tradições estavam em xeque. Os equívocos do PT foram fruto de sua vontade de não repetir o trajeto dos partidos leninistas ou da social-democracia, que, cada um a seu modo, tenderam a se fossilizar em estruturas hierárquicas e burocráticas. Tratou-se de uma experiência inovadora, inspiradora para a parte da esquerda que tentava se renovar em muitos lugares do mundo.

Tal inovação apresentava custos crescentes, à medida em que o partido crescia. Na famosa lei de ferro das oligarquias, no início do século XX, Robert Michels afirmou que “quem fala organização, fala oligarquização”. Deixando de lado seu determinismo retrógrado, é possível dar crédito ao pensador alemão nos dois eixos centrais de sua reflexão: as camadas dirigentes tendem a desenvolver interesses próprios, diferenciados daqueles da massa de militantes, e a eficiência organizativa trabalha contra a democracia. De fato, é fácil “discutir com as bases” quando se é um ator político pouco relevante. Depois, fica cada vez mais claro que o timing da negociação política prevê a concentração das decisões nas mãos dos líderes.

Como costuma ocorrer em organizações políticas inovadoras, o crescimento levou a tensões crescentes entre percepções mais “realistas”, que julgavam necessário um esforço de adaptação ao mundo da política tal como ele é, e outras mais principistas. A conquista das primeiras prefeituras municipais foi, em muitos casos, dramática. Mas até então o partido lutava para não renunciar à possibilidade do exercício localizado do poder político sem abrir mão dos princípios gerais que orientavam sua organização.

É possível datar com precisão o momento em que o PT iniciou sua caminhada para se transformar naquilo que é hoje: o anúncio do resultado do primeiro turno das eleições de 1989. Quando Lula passa à etapa final da disputa, ao lado de Fernando Collor, parecia se tornar claro que um bom aproveitamento do clima político, aliado a um marketing eleitoral competente, proporcionaria um acesso mais rápido ao poder do que o trabalho de mobilização no qual o partido apostava desde sua fundação. O fato de que o partido hesitou em aceitar, no segundo turno, o apoio de políticos conservadores, mas democratas, é em geral apontado como uma demonstração de seu caráter naïf e de seu despreparo para a política real. É provável. Mas não dá para não respeitar tal purismo, sobretudo à luz do PT posterior, para o qual ninguém, de Maluf a Collor, de Sarney a Jader Barbalho, de Kátia Abreu a Michel Temer, está fora do alcance de uma possível aliança.

Entre a hesitação inicial de 1989 e a política de alianças indiscriminada adotada a partir de 2002 houve uma evolução paulatina, eleição após eleição. Evolução também no discurso, no programa político, na forma de fazer campanha. É razoável dizer que o PT abandonou a ideia de que a campanha eleitoral era um momento de educação política. Quando Duda Mendonça assume, na quarta candidatura presidencial de Lula, já está claro que não se deve mais disputar a agenda, nem os enquadramentos ou valores dominantes. Para ganhar a eleição, é mais fácil mudar o candidato para se encaixar nas expectativas vigentes. Estava surgindo o Lulinha paz e amor, que não é só uma persona do marketing eleitoral, mas a indicação da visão de que seria possível fazer política transcendendo os conflitos.

Só que os conflitos não são transcendidos, são escamoteados. E quando são escamoteados, isso sempre trabalha em favor daqueles que já estão em posição privilegiada. O governo Lula vendeu ao capital sua capacidade de apaziguar os movimentos sociais. Com a elite política, prosseguiu no toma-lá-dá-cá típico brasileiro, agravado pelo fato de que, dada a desconfiança que o PT precisava enfrentar, os termos da troca eram piores. Graças a isso, ganhou a possibilidade de levar a cabo uma política de combate à miséria. Sem negar sua importância, o fato é que foram 12 anos em que o avanço social se mediu exclusivamente pelo acesso ao consumo. A fragilidade de uma política que não enfrentou nenhuma questão estrutural nem desafiou privilégios fica patente pela facilidade com que os supostos avanços da era petista vão sendo desmontados. Voltamos ao momento do desemprego, da redução do poder de compra dos salários, do desinvestimento nos serviços públicos. E, como o ambiente parece propício, de roldão são acrescentados retrocessos ainda maiores: precarização das relações de trabalho, criminalização da juventude, legislação retrógrada no campo da família e da sexualidade.

O momento, em suma, é o da maior derrota das forças progressistas no Brasil após o golpe de 1964. E uma parcela considerável da responsabilidade recai sobre um partido que não soube ou não quis aproveitar as oportunidades de que dispôs para consolidar algum tipo de avanço político e social.

Ao fim do processo, a esquerda brasileira parece órfã. Nos últimos 30 anos, o PT ocupou uma posição de absoluta centralidade neste campo, seja sob a chave da utopia, seja sob a chave do possível. Mesmo os críticos, mesmo os não petistas, encaravam o partido com um pilar incontornável da esquerda. Hoje, é cada vez mais evidente que a única maneira de ler o PT é como um experimento fracassado. Torna-se necessário pensar novas formas de organização e ação, novos instrumentos para fazer política, superando o saldo de desencanto e de desesperança que o final melancólico dos governos petistas deixa.

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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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