Na madrugada, os oportunistas votaram. Dos 51 deputados federais do PSDB que participaram da sessão coruja da Câmara de quarta-feira consagrada à análise do veto presidencial à flexibilização do fator previdenciário, apenas um conservou-se fiel à regra instituída por FHC. Samuel Moreira (SP), o deputado coerente, explicou-se apelando ao óbvio: "Criar mais despesas para a Previdência não é prudente no momento em que o país está vivendo, com os cofres públicos dilapidados". Sob o encanto do impeachment, todos os demais revelam-se dispostos a queimar o navio para limpar um de seus porões. O principal partido de oposição, que não tinha rumo nos tempos áureos do lulopetismo, segue sem bússola na hora da mudança.
Meses atrás, José Serra disse que "impeachment não é programa de governo". O alerta não foi ouvido por um setor crucial do partido que abrange Aécio Neves e a bancada tucana na Câmara. Seduzidos pelo canto das ruas, os cavaleiros do impeachment reduziram a política à sua menor dimensão, substituindo o imperativo de derrotar uma narrativa sobre o Estado e a sociedade pela meta exclusiva de derrubar a presidente. No caminho, enfiados em armaduras medievais, atrelaram o PSDB ao jogo de conveniências do PMDB de Michel Temer, Renan Calheiros e Eduardo Cunha. De fato, em nome de um objetivo que depende de outros, renunciaram a fazer o que está a seu alcance.
O fator previdenciário não se confunde com o ajuste fiscal de Dilma Rousseff, essa desastrada tentativa de cobrir o rombo orçamentário pela via da tributação aleatória. Uma coisa é votar contra os remédios falsificados que se fabricam pela improvisação no laboratório recessivo de Joaquim Levy. Outra, bem diferente, é retroceder à época da irresponsabilidade fiscal crônica anterior ao Plano Real. Na madrugada do oportunismo, os deputados tucanos desperdiçaram a oportunidade de desmascarar a narrativa lulopetista, revezando-se ao microfone para explicar que o veto presidencial é a homenagem prestada compulsoriamente pelo vício à virtude. Mas, no lugar de confrontar o FHC do fator previdenciário à Dilma do colapso fiscal, escolheram perder duas vezes, nas esferas do voto e dos princípios. Os cavaleiros do impeachment não passam de moleques brincando de Idade Média.
Certo ou errado, justo ou inevitável, o impeachment situa-se fora do território controlado pelos tucanos. O impedimento presidencial depende de decisões prévias de instituições de Estado (TCU, TSE, STF) e, em seguida, de uma maioria qualificada no Congresso que só se formará pela ruptura do PMBD com o governo. Os cavaleiros do impeachment não têm poder para obter uma coisa nem a outra. Mas se desqualificam perante a opinião pública ao cortejar inutilmente os caciques peemedebistas envolvidos nos escândalos de corrupção.
A obsessão dos cavaleiros do impeachment envia a mensagem errada à sociedade brasileira. No fundo, eles estão dizendo que o problema chama-se Dilma, quando a presidente é apenas a manifestação terminal de um sonho retrógrado chamado lulopetismo. Dilma passará, cedo ou tarde, recolhendo-se ao lugar apropriado: uma nota de pé de página no livro da história, destinada a ilustrar a simbiose teratológica do anacronismo ideológico com a incompetência e a arrogância. O lulopetismo, porém, tem raízes profundas, fincadas no solo do patrimonialismo, do corporativismo e de um neonacionalismo de araque, salpicado do autoritarismo típico da esquerda latino-americana. Os cavaleiros do impeachment desviam-se do alvo certo, enquanto exibem às ruas suas espadas reluzentes.
"Programa de governo", disse Serra, em meio ao alvoroço da molecada. Na crise do lulopetismo, os tucanos têm a chance de desenhar na lousa vazia algumas ideias básicas sobre o futuro. Mas, pelo visto, seu futuro é mesmo uma lousa vazia. Viva Samuel Moreira!
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