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sexta-feira, 31 de julho de 2015

O Fascismo não virá, ele já está


Por Alberto Kopittke


Observação inicial: escrevo esse texto “inspirado” pelo vídeo de um jovem que agoniza baleado no chão sendo xingado e que está disponível na minha página do Facebook. O vídeo possui centenas de comentários de apoio e celebração.

O fascismo não é a chegada de um líder de massas ou um Partido, com um projeto totalitário ao poder. Ele é antes de tudo um estado de espírito da sociedade.

As imagens de Hitler e dos campos de concentração têm a importância fundamental de nos alertar até onde uma sociedade pode chegar, independente do seu chamado “grau de desenvolvimento” cultural. No entanto, essas imagens fortíssimas de seres humanos sendo exterminados em massa acabam por encobrir as formas menos “agudas” dessa faceta do comportamento humano.

Hannah Arendt sempre chamou a atenção que o mais perigoso do fascismo era a forma como as pessoas – sejam elas juízes, políticos, jornalistas, professores ou de qualquer outro tipo de profissão – aceitam passivamente a escalada de ódio, até que começam a participar dos seus mecanismos, como se não houvesse alternativas entre silenciar ou aderir.

O fascismo se manifesta no cotidiano de formas muito mais tênues, que não precisam de homens vestindo uniformes e marchando pelas ruas, e não é dirigido apenas contra judeus. Ele é a implosão da capacidade de dialogar sobre os problemas da sociedade e da capacidade de conviver com as diferenças. Em seu lugar entram o que Zaffaroni chamou de discursos justificadores, que justificam e preparam o ambiente para as manifestações de ódio e extermínio contra os “inimigos”.

O pior resultado da atual crise política, é que o Brasil vive, mais uma vez, uma clara escalada do sentimento fascista. As pessoas sentem ódio, crescem os linchamentos públicos e aumenta o apoio a atitudes de “justiçamento” e tortura praticadas pelo aparato público.

Todas as forças democráticas têm responsabilidade sobre isso.

O PT e o Governo Dilma têm responsabilidade por ter interrompido as políticas públicas de prevenção a violência que estavam em curso e no seu lugar não ter colocado nenhum programa de grande escala ao longo de cinco anos. Com isso, as forças autoritárias passaram a se apresentar como alternativa para a redução da violência do Brasil.

FHC, os tucanos e o alto empresariado têm responsabilidade ao aceitarem partilhar a oposição ao PT com segmentos assumidamente fascistas e autoritários.

Ambos têm responsabilidade por não denunciarem o perigoso crescimento dos setores que misturam discursos religiosos fundamentalistas com ocupação de espaços políticos.

A grande mídia tem responsabilidade por não denunciar claramente o discurso do ódio e muitas vezes o difundir nos seus programas sensacionalistas e na falta de qualidade no debate sobre Segurança Pública.

A discussão sobre o fascismo não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita. Em ser liberal ou socialista. Em ser petista ou tucano. Em ser cristão ou ateu. Todas as linhas ideológicas e religiosas já serviram, num lugar ou outro, de justificativa para a barbárie. Trata-se de demarcar claramente a defesa dos princípios do estado democrático de direito e denunciar todos os discursos que justificam sua violação.

É absolutamente incerto o futuro político do Brasil. Nessa incerteza, os comportamentos de ódio ocorrem livremente no cotidiano, com cada vez mais apoio e aplauso. Quem demonstra contrariedade com as diversas manifestações de barbárie é chamado de fraco, de defensor de bandidos e passa a ser ameaçado.

Não é preciso que algum facínora suba a rampa do Palácio do Planalto, pelo voto ou pelas armas, para que o fascismo chegue no Brasil.


O fascismo não chegará. Ele já está.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

No acordo com o PCC, o tabu da grande chacina de maio



Luis Nassif

O Estadão de hoje publica uma bela reportagem de Alexandre Hisayasu sobre o acordo celebrado em 2006, entre o estado de São Paulo e o PCC. Não foi acordo: foi rendição.

A reportagem faz um balanço das vítimas do PCC: 23 PMs, 7 policiais civis, 3 guardas, 8 agentes penitenciários, 4 civis e 107 supostos criminosos. Faltaram mais de 600 inocentes nessa conta.

Descreve os encontros entre os dois secretários do governo paulista - Saulo de Castro Abreu, da Segurança, Nagashi Furukawa, da Administração Penitenciária - com Marcola e como, depois do encontro, cessaram os ataques.

Antes disso, Marcola tinha dois pedidos: autorizar visitas no Dia das Mães e permitir que os detentos pudessem falar com seus advogados. Saulo preferiu partir para o enfrentamento. Terminou rendendo-se aos fatos e aceitando o acordo.

A reportagem para por aí, para não entrar no terreno minado do maior massacre da história de São Paulo, que ocorreria nos dias seguintes por determinação expressa do Secretário Saulo de Castro Abreu.

O então governador Cláudio Lembo certamente irá se lembrar de um encontro que tivemos no Palácio dos Bandeirantes. Ele havia demitido Nagashi e reforçado o poder de Saulo. Fui até o Palácio e alertei que Saulo estava fora de si. O alucinado Saulo invadira a Assembleia Legislativa acompanhado de dezenas de PMs; ameaçara de prisão o dono de um restaurante, meramente por não conseguir estacionar seu carro.

Contei-lhe das conversas que tivera com Nagashi e o Secretário de Justiça Alexandre Morais. Ambos relataram que reuniam-se com Alckmin para traçar a política de segurança. E as reuniões foram interrompidas pela radicalização de Saulo, transformando as discussões em questões pessoais. Em vez de enquadrar Saulo, Alckmin optou por interromper as reuniões e, com isso, esfacelou o sistema de segurança do estado. Os criminosos eram presos, ficavam sob a guarda da Secretaria de Administração Penitenciária, mas as investigações tinham que ser conduzidas pela Secretaria de Segurança. E Saulo considerava-se rompido com Nagashi e nada fazia.

Foi em vão. Lembo não estava a par. Disse-me que a informação que recebera era a de que Saulo era eficiente e Nagashi muito mole. Naqueles dias trágicos, Saulo tornou-se seu principal interlocutor.

Foi o período em que PM saiu às ruas das periferias de São Paulo e da Baixada Santista com os rádios desligados para não serem acessados por jornalistas, com a missão de matar qualquer vulto que se movesse. Foram mais de 600 assassinatos em poucos dias. A raiva não foi despejada em membros do PCC, mas - na maioria absoluta dos casos - em jovens inocentes de periferia, estudantes indo para as escolas. Assassinaram a sangue frio até uma jovem cujo parto estava marcado para o dia seguinte.

Foi um espetáculo dantesco, mil vezes pior que o massacre de Carajás.

Homens encapuçados, em motos, alvejavam as pessoas. Em seguida, apareciam viaturas da polícia para destruir as provas. Os corpos eram encaminhados ao IML (Instituto Médico Legal) para as provas finais serem destruídas em laudos inconclusivos.

A matança só cessou quando bravos procuradores federais e médicos do Conselho Regional de Medicina correram para o IML para acompanhar os laudos. A experiência com os mortos da ditadura demonstrava que o laudo era a peça central para a abertura de inquéritos. Ao chegarem no IML, os médicos se depararam com dezenas de cadáveres com tiros na nuca, nas costas, em clara comprovação de execução. Assim que assumiram a vigília o número diário de corpos caiu de uma centena para menos de dez.

Aqui, o Blog criado pelas mães de maio para denunciar o massacre: http://maesdemaio.blogspot.com.br/2011/11/mestrado-denuncia-massacre-de-maio-de.html

Nada foi apurado pelo Ministério Público Estadual, pela Justiça de São Paulo, pela imprensa paulista. Uma brava procuradora federal levantou o caso enviou para Brasilia, para federalizar a apuração. O Procurador Geral Rodrigo Janot sentou em cima do caso, que não anda.

Restaram apenas os lamentos e as denúncias das mães de maio.





Datena candidato? É a barbárie!


Na semana passada, a Folha tucana especulou com a possibilidade de José Luiz Datena, apresentador do programa “Brasil Urgente”, da Band, ser candidato à prefeitura de São Paulo em 2016. Segundo o jornal da famiglia Frias, que não dá ponto sem nó, três legendas já teriam procurado o jornalista, que se tornou celebridade com as suas atrações policialescas e sensacionalistas. Sua candidatura também teria a simpatia do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que fará de tudo para desalojar o petista Fernando Haddad da prefeitura da mais importante capital do país. Vale conferir alguns trechos da matéria de encomenda, publicada nesta quarta-feira (22) e assinada por Daniela Lima, que evidencia como será pesada a disputa eleitoral do próximo ano:

*****

Três dos maiores partidos do país tentam fazer com que José Luiz Datena troque a apresentação do programa Brasil Urgente, da Band, pelo horário eleitoral. Líderes do PSDB, PSB e PP disputam nos bastidores a filiação do âncora, para fazer dele candidato à Prefeitura de São Paulo. Nas últimas semanas, Datena teve um jantar com o vice-governador Márcio França, que é presidente estadual do PSB. Em outra frente, foi convidado para duas reuniões no Palácio dos Bandeirantes, uma delas com o governador Geraldo Alckmin. Na primeira ocasião, conversou com dois secretários do tucano sobre o cenário político. Depois, voltou à sede do governo para uma reunião privada com Alckmin, que há meses diz nos bastidores que gostaria de lançar "um nome novo" na capital.

*****

Ainda de acordo com a reportagem, o apresentador admitiu estar “propenso a aceitar” a candidatura. “Realmente fui sondado e passei a analisar se vale a pena. Quem sabe não posso ajudar? Eu sou honesto. Não sou vagabundo e não roubo, ao contrário do que existe por aí. E mesmo que eu decida sair, só vou me filiar no tempo certo. Dois ou três dias antes de esgotar o prazo”, afirmou. No seu jogo de especulação, a Folha tucana ainda testa as hipóteses. “A ida do apresentador para o PSB poderia liquidar as chances de a senadora Marta Suplicy (sem partido) se filiar à sigla para concorrer à Prefeitura. O partido passou a procurar opções depois que a ex-petista adiou sua filiação por duas vezes e fez acenos ao PMDB”.

A própria especulação sobre a candidatura de José Luiz Datena confirma a onda conservadora que assola o Brasil. Nas eleições do ano passado, vários nomes ligados aos programas policialescos de rádio e televisão foram eleitos para a Câmara Federal. Eles ganharam projeção midiática explorando o preconceito e o ódio, estimulando os piores instintos. Nos primeiros seis meses de legislatura, eles se uniram aos fundamentalistas e aos barões do agronegócio, compondo a famosa “bancada do BBB” – Bala, Bíblia e Boi. No parlamento mais reacionário desde o fim da ditadura militar, esta turma da pesada tem pregado posições ultradireitistas, que beiram o fascismo. José Luiz Datena é um expoente desta regressão civilizatória, desta barbárie.

Bolsonaro e a onda conservadora

Esta ameaça atemoriza até mesmo um colunista da própria Folha. Em texto publicado na quinta-feira, Bernardo Mello Franco comparou o âncora da Band ao bilionário Donald Trump, que recentemente anunciou sua candidatura à presidência dos EUA. “Sem serem políticos tradicionais, eles investem no carisma pessoal, no discurso conservador e na imagem de que podem resolver tudo sozinhos, acima dos partidos e das instituições. Datena, o locutor policial, apela ao medo da violência e do caos urbano. É capaz de narrar um roubo de galinha como o crime do século, ou um engavetamento na Marginal como o novo 11 de Setembro. Com estilo agressivo, os dois encarnam o populismo de direita que prolifera na tevê aberta e nas redes sociais. Parecem estar sempre indignados, mas só atacam os elos mais fracos da sociedade, nunca a elite ou o sistema. São revoltados a favor”.

Talvez embalado por esta onda conservadora, o deputado fascista Jair Bolsonaro (PP-RJ) anunciou neste final de semana que exigirá que o seu nome seja incluído nas próximas pesquisas de opinião pública sobre as eleições presidenciais de 2018. “Peço que contatem os institutos de pesquisa e solicitem manter (e incluir) meu nome nas próximas pesquisas. Estamos no G-4”, afirmou o patético parlamentar ao jornalista Ilimar Franco, do jornal O Globo. Ainda segundo o repórter, o agressivo deputado disse já contar com o apoio à sua candidatura de vários grupelhos direitistas, como o “Movimento Brasil Livre”, o “Revoltados Online” e o “S.O.S. Forças Armadas”, que organizaram as recentes marchas golpistas pelo impeachment de Dilma e pela volta dos militares ao poder. É pura barbárie!

Pasquim veja bate recorde histórico





Quero parabenizar a revista Veja. Depois de ter um número colossal de suas "reportagens" desmentidas apenas alguns dias depois de publicadas, este esgoto em forma de madeira prensada e tinta conseguiu bater um novo recorde e já chegou às bancas com sua matéria de capa desmontada pelo personagem PRINCIPAL: um executivo da OAS que, segundo a revista, havia denunciado Lula através de delação premiada. Antes mesmo de a revista começar a ser vendida, porém, o tal executivo e seus advogados informaram que jamais conversaram com o Ministério Público sobre qualquer tipo de delação, envolvendo ou não Lula.

Como se não bastasse, a revista trouxe uma matéria sobre Romário que o ex-jogador e agora senador também se encarregou de desmentir em nota publicada aqui no Facebook.

Aliás, se quiserem ver mais vários exemplos de matérias desmentidas da Veja, é só clicar no link a seguir e conferir a compilação feita por leitores em um comentário desta página

E ainda há quem defenda e leia VEJA. Não muitos, claro, pois senão ela não estaria cada vez mais dependente das assinaturas compradas pelo governo tucano de SP para sobreviver.

Mas que ainda tenha um único leitor VOLUNTÁRIO é um testamento inequívoco da magnitude da estupidez humana.


sábado, 25 de julho de 2015

Lula sobre os golpistas: "Parece os nazistas criminalizando o povo judeu"




Ex-presidente criticou os setores conservadores que não aceitam o resultado da eleição da presidenta Dilma Rousseff na cerimônia de posse da diretoria do Sindicato dos Bancários do ABC




O ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem (24) que a esquerda brasileira está sendo perseguida como os judeus foram pelos nazistas e os cristãos pelos romanos, e criticou setores conservadores do país que não aceitaram a vitória nas urnas da presidenta da República, Dilma Rousseff.

“Quero dizer para vocês que estou cansado de mentiras e safadezas, estou cansado de agressões à primeira mulher que hoje governa esse país. Estou cansado com o tipo de perseguição e criminalização que tentam fazer à esquerda desse país. Parece os nazistas criminalizando o povo judeu e romanos criminalizando os cristãos”, disse, em discurso na posse da diretoria do Sindicato dos Bancários do ABC, em Santo André.

O ex-presidente Lula afirmou estar cansado do "tipo de perseguição e criminalização que fazem às esquerdas desse país". “Eu nunca tinha visto na vida pessoas que se diziam democráticas e não aceitam uma eleição que elegeu uma mulher presidente da República”, acrescentou.

O ex-presidente lembrou de realizações de seus governos, como o ingresso de milhares de estudantes no ensino superior e a ascensão econômica de milhões de pessoas. “Eles não suportam que um metalúrgico quase analfabeto tenha colocado mais gente na faculdade do que eles, não suportam que a gente não deixou privatizar o Banco do Brasil e comprou a Nossa Caixa e o Banco Votorantim”, disse Lula.

“Eu, sinceramente ando de saco cheio. Profundamente irritado. Pobre ir de avião começa a incomodar; fazer faculdade começa incomodar; tudo que é conquista social incomoda uma elite perversa”, acrescentou o ex-presidente.

Lula disse ainda estar otimista com o futuro do país e compreender a apreensão de parte da população com o desemprego e com a inflação, mas ressaltou que o cenário já esteve pior.

"O cenário hoje não é o ideal e nós sabemos. Eu me preocupo com a inflação, com o desemprego. Mas é importante lembrar que a crise que afeta o Brasil hoje é a mesma que afeta chineses e americanos. Nossa inflação hoje é de 9%, com perspectiva de queda. É importante lembrar que, quando assumimos o governo, ela já estava a 12%, que o desemprego era de 12,5%."

O ex-presidente fez questão de deixar claro seu otimismo. "Não tenho medo de ser otimista. Somos um país grande, com uma enorme capacidade de recuperação e um mercado interno de 204 milhões de consumidores. Quem apostar no fracasso deste país vai quebrar a cara".

Lula falou depois de Belmiro Moreira, que acabava de assumir a presidência do Sindicato dos Bancários do ABC. Emocionado, Belmiro lembrou a história de lutas da categoria e da região. Aos 14 anos, enquanto trabalhava como patrulheiro-mirim em uma indústria metalúrgica, acompanhou de perto as conquistas sindicais que mudaram o país. "É uma responsabilidade ter hoje aqui presente o presidente que mais mudou este país. Lula criou o Partido dos Trabalhadores e ajudou a fundar a CUT para que a gente tivesse mais representação nas esferas do poder."


* Com Agência Brasil e Instituto Lula

A crise é gravíssima





sexta-feira, 24 de julho de 2015

Como Pulitzer avaliaria a imprensa brasileira?





Por Paulo Nogueira

“Acima do conhecimento, acima das notícias, acima da inteligência, o coração e a alma de um jornal residem em seu senso moral, sua coragem, sua integridade, sua humanidade, sua simpatia pelos oprimidos, sua independência, sua devoção ao bem estar público, sua disposição em servir à sociedade.”

A frase acima tem mais de cem anos, e é de autoria de um dos maiores jornalistas da história, Joseph Pulitzer.

Reencontrei-a ao reler A Vida e a Morte dos Barões da Imprensa, de Piers Brendon.

E refleti sobre ela.

Me ocorreu o seguinte: como Pulitzer, uma colossal referência em jornalismo ético, avaliaria a imprensa brasileira, de acordo com os valores estampados na sentença inicial deste artigo?

Numa escala de zero a dez, ele daria à mídia nacional provavelmente uma nota próxima de zero.

Defender os desvalidos, os oprimidos? Ora, esqueça. Num caso antológico, o Globo, pouco antes do Golpe, definiu o 13.o estabelecido por João Goulart como uma “calamidade”.

O mesmo Globo, agora, se bateu pela terceirização e, consequentemente, pela subtração de direitos trabalhistas.

Mesmo antes de se tornar o panfleto canalha que é, a Veja defendeu por determinação de Roberto Civita estridentemente, durante anos, a redução desses mesmos direitos. Eles eram o amaldiçoado “Custo Brasil”.

A Folha leva à prática a supressão desses direitos. Boa parte de seus jornalistas mais caros são PJ, uma forma de sonegar.

É algo que a Globo também faz.

As empresas contam, para essa transgressão, com a tradicional impunidade dada a elas por um Estado Babá. (Babá delas, naturalmente.)

E a humanidade de que falava Pulitzer? Pausa para gargalhar. As corporações jornalísticas exalam ódio, sobretudo contra quem, de alguma forma, defende os desvalidos.

Bem, podemos dispensar uma análise sobre a “devoção ao bem estar público”, já que o único bem estar que interessa aos donos da imprensa brasileira é o deles próprios e o de seus amigos e aliados.

Quando você viu ao menos uma campanha em jornais e revistas contra a desigualdade social?

Nunca. E jamais verá, não com as pessoas que estão no comando das empresas de jornalismo.

Tudo considerado, não há um único item em que a imprensa brasileira vá bem no conjunto de qualidades jornalísticas tão bem armado por Pulitzer.

Em compensação, ela se encaixa à perfeição em outra sentença de Pulitzer.

Ei-la.

“Uma imprensa cínica, mercenária, demagógica vai formar, com o tempo, leitores tão baixos quanto ela própria.”

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Virando Anedota



A oposição entre corpo e alma não existia em tempos bíblicos, ou pelo menos na linguagem bíblica. Mas a versão em latim antigo das Escrituras que Santo Agostinho lia usava “anima” para traduzir “nefesh”, que em hebraico não quer dizer alma mas algo como sopro vital, ser, uma forma exaltada do “eu”. E foi nesse engano que tudo começou.

A alma e o corpo se separaram e nunca mais se encontraram. E nunca mais se pode ler o Velho Testamento a não ser como Agostinho o lia, não como um relato da aventura do corpo humano no mundo como Deus o fez, cheio de som, fúria, sangue e sacanagem, mas como uma alegoria espiritual, em que até os cantares eróticos de Salomão queriam dizer outra coisa: a luta da alma para transcender o corpo, que para Agostinho significava a sexualidade.

Tudo culpa de um mau tradutor.

Freud tentou, de certa maneira, retransformar “anima” em “nefesh”, mas como muito do que ele escreveu em alemão também foi mal traduzido em outras línguas, a confusão só aumentou. No fim a grande danação sob a qual vive a Humanidade não é a da História nem da carne, é a insanável danação de Babel.

Deus disse “que haja muitas línguas, e que cada língua tenha muito dialetos”. E depois, para ter certeza que os homens nunca mais se entenderiam, completou: “E que haja tradutores.”

Um estudo, mesmo superficial como o meu, da etimologia e das transformações que as palavras sofrem através do tempo e das más traduções revela coisas fascinantes.

“Escândalo” — uma palavra que nos diz muito respeito — está indiretamente ligado, na sua origem, aos pés. Sua raiz indo-europeia é “skand”, pular ou subir, de onde também vem escalada. Quem pula ou sobe precisa cuidar onde põe os pés e o grego “skandalon” significa um obstáculo ou uma armadilha.

“Scandalum“ em latim tanto pode significar tentação como armadilha. No francês antigo “scandal“ era um comportamento antirreligioso que agredia a Igreja todo-poderosa e, da mesma origem, existia a palavra “sclaudre”, de onde vem o inglês “slander”, ou difamação.

Alguns escândalos não investigados, como acontece muito no Brasil, acabam virando anedotas. “Anedota” vem, através do francês “anecdote”, do grego “anekdotos”, história não publicada, presumivelmente tanto no sentido de inédita quanto no sentido de versão não oficial, secreta, clandestina, enfim, tipo “em Brasília não se fala em outra coisa”.

Em francês queria dizer pequeno relato ilustrativo à margem de um relato maior. No seu sentido brasileiro continua sendo uma história marginal, só que engraçada, ou se esforçando para ser.

Sobrevive, na anedota, a tradição homérica da literatura oral, passada de geração a geração sem necessidade de escrita. Se for escrita, deixa de ser anedota. Muitos contadores anotam o fim da anedota para não esquecê-la, mas se sentiriam heréticos se a escrevessem toda. E assim correm o risco de esquecerem o resto e ficarem com uma coleção de últimas frases sem sentido.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Coxinha da veja passa Vergonha

Safatle sobre Cunha: basta ser antigovernista para ser poupado pela imprensa

Diário do Centro do Mundo

Da sua coluna na Folha:


Na semana passada, o país assistiu, estarrecido, o presidente da Câmara dos Deputados atacar os outros poderes da República por ter sido denunciado em casos de corrupção da Operação Lava Jato. Não, o senhor Cunha não procurou dar explicações a respeito das graves acusações encaminhadas pelo procurador-geral. Ele resolveu chantagear explicitamente o poder Executivo e acusar o Ministério Público de um complô contra a sua distinta pessoa.

Tratando o povo brasileiro como uma banca de idiotas, o senhor Cunha saiu-se com a história de uma ação conjunta entre o governo e o Judiciário para prejudicá-lo. Ou seja, o juiz Sergio Moro, o mesmo que denunciou membros do governo e parlamentares governistas, estaria agora agindo juntamente com o governo para derrubar Cunha. Esta é melhor do que aquela história do policial que, vendo um morto cujo corpo estava dentro de um saco amarrado e a arma do lado de fora, afirmou que se tratava de suicídio.

Em qualquer outra situação, um deputado indiciado em um dos maiores escândalos de corrupção da história recente do país nunca poderia assumir o terceiro cargo da República. A razão para tanto foi mostrada na semana passada: ele fará tudo o que estiver a seu alcance para constranger as investigações, até mesmo tentar transformar seu problema pessoal em problema nacional.

(…)

Infelizmente, atualmente, basta o distinto deputado ser antigovernista para ser poupado por certo setor da imprensa nacional com sua indignação moral seletiva. Pois pergunte-se quantas vezes você leu algum artigo sobre o histórico completo do senhor Cunha.

(…)

Comentário do blog: tendo parte dos rendimentos pagos pela Folha de S. Paulo parece que o Safatle ficou meio constrangido em escrever apenas MÍDIA e preferiu essa tolice covarde de certo setor da imprensa nacional . Como se houvessem outros setores...

segunda-feira, 20 de julho de 2015

My name is Cunha



Você conhece. Você confia. Please allow me to introduce myself. My name is Cunha, mas pode me chamar de Cramunhão, de Sete-Pele, Coisa-Ruim, Cão-Tinhoso, Cabrunco, Gota-Serena, Caralho-de-Asa, Sinteco Gelado. Escrevo porque tem uma garotada por aí que está achando que eu vou cair. Mua-ha-há (difícil digitar risada malévola). Meninada, vamos ter uma a aula de história? Eba. Vamos!

Sou muito, mas muito mais antigo do que vocês pensam. Cheguei aqui há uns 500 anos, na primeira chacina de índios batizada de descobrimento. Lembra dos navios negreiros? My bad. Guerra do Paraguai? Sorry about that. Tiradentes? Eu que esquartejei aquele comuna safado. Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Canudos, eu que abafei a badernagem toda. Mua-ha-há.

Aí você me pergunta: "Como saber que você é você, príncipe das trevas?". Dica: não procurem por um rabo pontudo, chifres, pele vermelha. Esse look é muito século 12. Dica: a-do-ro um terno cinzão. Com uma gravata azul-bebê.

Também não tenho partido, muito menos ideologia. Cuidava da polícia política do Vargas ao mesmo tempo em que tocava fogo na favela em nome do Lacerda. 1964? Check. Benário, Herzog, Paiva, Angel, Chico Mendes, Amarildo? Check, check, check. Carandiru? My fucking idea. Candelária? Me, good old me. Meu nome é Legião. Mas não adianta procurar legião no Face. No momento, atendo por outro nome.

Cansado de ser Sarney, saí do Maranhão com a sensação de dever cumprido. Vim para o Rio porque tenho muitos correligionários (PMDB rules, hehe). Assumi o nome de Cunha –abreviação de Cramunhão, quem pegar pegou– e não planejo sair deste corpo tão cedo. A-mo um implante malfeito e uma boca babada.

Uma dica: estou só começando neste corpo. Falta fazer muita coisa. Falta reduzir a maioridade penal para oito anos, falta intervenção militar, falta poder para as igrejas (sim, sou neopentecostal, ób-vio).
Acho fo-fo quem acha que vou cair. O homem que me nomeou presidente da Telerj, meu muso Fernando Collor, caiu . E eu, nada. Meu compadre PC Farias, que me trouxe para a política, caiu. Tomou teco. E eu, nada.

Filhão, é como diz o outro: "Mil cairão ao meu lado, 10 mil à minha direita, mas eu não serei atingido".

Já protagonizei 20 escândalos de corrupção e não caí. Se vocês acham mesmo que é uma miserinha de US$ 5 milhões que vai me derrubar... Vocês definitivamente não me conhecem.

sábado, 18 de julho de 2015

Alexis Tsipras é um traidor?



Posso estar enganado, mas sigo achando profundamente errado se falar em traição por parte de Alexis Tsipras e do Syriza, mesmo diante da aprovação parlamentar – por larga maioria e com apoio da direita – do acordo firmado no final de semana entre a Grécia e a Comissão Europeia.

Não tenho todos os dados à disposição, mas me parece que Tsipras fez uma aposta e perdeu. A aposta é que haveria algum tipo de solidariedade internacional, após o referendo, o que lhe daria condições de enfrentar a maré montante que se armava contra o país.

Não houve.

A solidariedade internacional implica – neste caso – enfrentar o sistema financeiro internacional todo. No atacado.

Significa enfrentar o fato de os EUA terem uma enorme base aeronaval em Creta, na beira do Oriente Médio. É um complexo estratégico, através do qual se pode atingir em vinte minutos a Líbia, o Egito, a Síria e o Iraque.

Nem mesmo a Rússia ou a China aventuraram-se a tocar nesse vespeiro. Uma coisa é intervir na Ucrânia. Outra, bem diversa, é intervir na geopolítica europeia.

Alexis Tsipiras ficou só, o Syriza viu-se só e a Grécia colheu um isolamento assustador.

Frente à possibilidade de uma formidável fuga de capitais – diante da qual o governo grego nada pode fazer – da carência de papel moeda para fazer pagamentos e da quebradeira do sistema bancário nacional em três dias, o primeiro-ministro se viu sem cartas na manga. Não havia sequer como trucar.

É boa a situação?

Nada. É péssima. Péssima é a humilhação a que o país está sendo submetido.

A sessão do Parlamento grego foi deplorável, na noite de quarta (15). A direita, em bloco, votou pelo acordo.

A pergunta não é se o Tsipras traiu ou não. A pergunta é por que o isolamento foi tão grande.

Essa é a resposta a ser buscada.

Para que os arautos do bom-senso não venham com a velha história de que “There is no alternative” e que o ajuste é inescapável.

No prefácio de “Crítica da economia política”, há quase 160 anos, Marx escreveu uma de suas frases memoráveis: “A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver”.

Nenhum messianismo nisso.

O problema da Grécia pode ser resolvido.

Depende de luta política e força. Coisas muito, muito humanas.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Tempos de racismo e intolerância

Apaixonada pela desigualdade social, a elite brasileira sempre defendeu uma noção muito curiosa de "progresso": queria ser europeia nas artes e costumes, mas servida eternamente por escravos negros, domesticados e evangelizados.


Esta semana completou um mês que Kayllane Campos, 11, foi apedrejada na cabeça ao sair de uma festa de candomblé na Vila da Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Completará um mês nesta sexta (17) que nove pessoas foram assassinadas a tiros numa igreja afro-americana por Dylan Roof, homem branco e declaradamente defensor de ideias racistas, em Chalerston, sul dos Estados Unidos. Além das poucas horas de diferença, os dois acontecimentos têm raízes históricas em comum.

A história deixa suas marcas no presente. Relatório da Equal Justice Initiative afirma que ocorreram cerca de 4.000 linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos entre 1877 e 1950. Em 1963, a Ku Klux Klan –organização racista de ultradireita– explodiu uma bomba durante culto de uma igreja no Alabama, matando quatro meninas negras. O massacre foi marcado pela composição de Nina Simone, "Mississipi Goddam", escrita momentos após a notícia.

A profunda segregação sociorracial entre brancos e negros, legalizada durante séculos nos Estados Unidos e mantida mesmo após a conquista de direitos cívicos com décadas de luta e enfrentamento popular, não é "privilégio" dos norte-americanos.

Por aqui a história foi igualmente perversa e, hoje, o véu da hipocrisia é cada vez mais incapaz de ocultar as expressões do racismo. Último país da América a abolir a escravidão, o Brasil manteve o fosso social entre negros e brancos.

Apesar do fato de mais da metade da população brasileira (97 milhões de pessoas) ter se declarado como preto ou pardo no último censo, o IBGE afirma que a renda média mensal dos brancos é R$ 1.538, quase o dobro do valor relativo ao grupo de pretos e pardos (R$ 834 e R$ 845, respectivamente).

Apaixonada pela desigualdade social, a elite brasileira sempre defendeu uma noção muito curiosa de "progresso": queria ser europeia nas artes e costumes, mas servida eternamente por escravos negros, domesticados e evangelizados. E, mesmo depois da abolição tardia, seguiu criminalizando atividades como a capoeira (proibida por lei até 1937), o samba e as práticas religiosas de matriz africana. O batuque sempre amedrontou a elite branca do Brasil.

O caso da menina Kayllane, em 14 de junho, representa o quanto a formação racista do nosso país permanece viva e a força que ganha –inclusive entre as camadas populares– em momentos de intolerância como o atual. E nos lembra que a tão falada segregação racial norte-americana –expressa no massacre de Charleston– está mais perto do que estamos dispostos a admitir.

Por trás do aumento da intolerância às religiões africanas está a tentativa de apagar a memória e a resistência dos mais de três milhões de negros aqui escravizados. Tentativa alimentada por setores ultraconservadores que dizem falar em nome de Jesus.

Em tempos como esse, pode não ser demais relembrar que –pelo que nos diz a própria Bíblia– Jesus certamente estaria entre aqueles que defenderam Kayllane das pedradas.

Até o papa percebe





A Igreja Católica nunca foi propriamente uma entidade transformadora. Pelo contrário. Tem um currículo de alianças com o nazismo, com ditaduras pelo mundo afora e de apoio a toda a sorte de obscurantismos —a Inquisição e Galileu, por exemplo, que o digam.

O Vaticano, de resto, sempre trabalhou como instrumento servil dos poderosos de ocasião. Impossível esquecer as ligações perigosas entre Pio 12 e Mussolini e o papel central de João Paulo 2º na derrubada do Muro de Berlim. Tarefa facilitada, neste último caso, pela traição e destruição dos ideais igualitários operadas pela burocracia stalinista.

É por tudo isso que ganha importância o discurso do papa Francisco sobre os dilemas da época atual. As críticas à exclusão social e a referência ao capitalismo como "ditadura sutil" permitem, no mínimo, uma dupla leitura.

A primeira atesta mais um sintoma da sangria de fiéis diante do crescimento exponencial das seitas evangélicas e do islamismo. O discurso católico apostólico romano há muito tempo deixou de seduzir simpatizantes. Não só pela assimetria entre o fausto da elite do Vaticano e a pobreza espalhada pelo planeta. Há mais: os escândalos de pedofilia e o desprezo absoluto por valores éticos e morais que a Igreja diz defender vêm tendo um efeito devastador na autoridade do pessoal de batina.

Ao mesmo tempo, o sistema social ao qual o Vaticano rende homenagem secular exibe repetidos sinais de esgotamento. A perversidade de crises econômicas seguidas, a voracidade do capital financeiro, o sacrifício imposto a povos inteiros em favor de rendimentos parasitários soterram a reputação de ideais lastreados na resignação à espera de uma eternidade próspera.

São mazelas renovadas a cada dia. O cerco da banca internacional à Grécia e o receituário imperativo de austeridade econômica não deixam mentir; junto a isso, a alternativa militar contra migrantes vítimas da fome e da opressão na África compõem um cenário do retrocesso civilizatório em curso.

A cúpula da Igreja Católica conhece o ofício. Num período como esse, nada melhor que alguém com a biografia do papa Francisco e sua imagem despojada (embora motivo de polêmica na Argentina). "Quando o capital se converte em ídolo, arruína a sociedade, destrói a fraternidade, povos enfrentam povos." Foi mais longe ainda em seu discurso na Bolívia: "Ações de concentração monopolista dos meios de comunicação social, que pretendem impor pautas alienantes de consumo e uniformidade cultural, são uma forma de novo colonialismo, de colonialismo ideológico".

No Brasil de hoje, se dependesse da oposição, o pontífice provavelmente estaria sujeito a um processo de impeachment ou coisa parecida. Isso se alguém não pedisse a recontagem dos votos dos cardeais que o elegeram.

Inútil esperar de Roma qualquer solução terrena. Religiões não existem para tanto; quando muito, atuam como paliativos. O importante na fala do papa Francisco é o diagnóstico cortante. Nem precisa ser bom entendedor.

domingo, 12 de julho de 2015

Hipócritas



Luis Fernando Veríssimo

O que a Alemanha desmemoriada não admite é que façam como ela fez, e não como ela manda

O economista francês Thomas Piketty deu uma entrevista à revista alemã “Die Zeit” em que disse, entre outras coisas, que antes de exigir o pagamento a qualquer custo da dívida grega os alemães deveriam lembrar seu passado de devedores.

Segundo Piketty, a Alemanha nunca pagou suas dívidas. Cobrou, com a mesma intransigência de agora, a dívida de outros, como a reparação paga pela França com muito sacrifício depois da guerra franco-prussiana de 1870, mas não pagou sua própria reparação depois da Primeira Guerra Mundial.

Esta dívida foi perdoada em 1934, o que desmente a tese de que foram as exigências dos vencedores da guerra que levaram a Alemanha, ressentida, a seguir Hitler. Em 34 a Alemanha não foi humilhada, como diz a tese. Foi perdoada.

Em 1953, depois da Segunda Guerra Mundial, numa conferência realizada em Londres, decidiu-se perdoar 60% da dívida alemã, uma generosidade muito maior do que a que os gregos estão pedindo agora.

Foi este presente que possibilitou à Alemanha derrotada na guerra iniciar o “milagre” que a transformou na potência econômica que é hoje, na posição de mandar na economia de toda a Europa e pregar a austeridade e a “responsabilidade” que ela mesmo exemplifica. Uma superioridade moral conquistada de calote em calote.

Na entrevista, Piketty faz um histórico de dívidas nacionais através dos tempos, mostrando como há várias maneiras de cobrá-las ou equacioná-las além da ortodoxia assassina receitada por Angela Merkel, mais preocupada com a saúde dos bancos credores do que com a saúde de populações inteiras privadas de assistência social pela tal austeridade.

O que a Alemanha desmemoriada não admite é que façam como ela fez, e não como ela manda.

O primeiro-ministro da Grécia não tem idade suficiente para conhecer um bolero chamado“Hipocrita”, do tempo em que havia boleros. Se soubesse, poderia serenar a sra. Merkel com ele, na próxima vez em que se encontrassem. O bolero começa assim:
“Hipocrita... Secilamente hipocrita...”

E termina assim:

“Escuchame e comprendeme,
no puedo ya vivir
como hiendra del mal
tu me enredaste
y como no me queires
me voy a morir”.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

A bala e a Bíblia



A onda de reacionarismo é resultado de um trabalho de décadas construído em cada residência brasileira

Diante dos seguidos disparates ocorridos na Câmara dos Deputados, um leitor da Folha escreveu outro dia que o país está finalmente pagando o preço por um descaso antigo.

A saber, o dos péssimos padrões da educação pública. Não seria outra a razão, sugeriu, para tamanho festival de estupidez e intolerância com relação aos direitos dos homossexuais, à questão da maioridade penal, à da liberação das drogas e a outros pontos correlatos, que por vezes nem chegam a conhecer grande destaque nos foros sociais de discussão.

Foi de deixar os cabelos em pé, por exemplo, uma sessão a que assisti na TV Câmara, na qual um vasto coral de lideranças partidárias defendia a aplicação de penas mais severas para os casos de lesão corporal em que a vítima fosse da polícia.

Traduzindo: imagine que um assaltante em fuga acerta com um tiro, ou atropela, uma pessoa qualquer. Essa pessoa não morre, mas fica condenada a uma cadeira de rodas para o resto da vida. Naturalmente, deve-se punir quem for o responsável por isso.

Deputados de vários partidos defendiam, entretanto, que a pena aumentasse se o atingido pelo tiro ou pelo carro em fuga, em vez de ser você ou eu, fosse um policial.

Ai de quem, naquela sessão, tivesse a coragem de dizer que o crime é igualmente grave, seja quando vitima um cidadão qualquer, seja quando atinge um membro "da corporação". Estaria se arriscando a passar por "amigo dos bandidos" e "inimigo da polícia".

O caso terminou ficando para deliberação posterior, mas a lógica é sempre a mesma. Quem fala em direitos humanos, no Brasil de hoje, não precisa esperar muito para que lhe encostem --metaforicamente-- uma faca no pescoço: "Ah, então você é a favor dos bandidos?".

O radicalismo retórico se multiplica em muitas áreas. Um parlamentar, outro dia, criticou a Marcha da Maconha. Defender a liberação de seu consumo seria o mesmo, em seu raciocínio, do que apoiar a descriminalização da pedofilia.

Do mesmo modo, apoiar o casamento dos homossexuais é querer destruir o casamento heterossexual. 

E por aí vamos.

Qualquer posição moderada ou sensata se torna complicada demais, e portanto ambígua, para esse tipo de debatedores. O extremista só vê posições extremas à sua frente; a simplificação aumenta sua força de ataque, e nada mais forte, mais agressivo, mais cego, mais estúpido do que um rinoceronte quando desembesta em linha reta.

Será que a onda obscurantista, a violência da direita burra e o crescimento do orgulho reacionário têm sua principal origem na falta de instrução generalizada, na falência do sistema educacional, como aventado no "Painel do Leitor"?

Acho importante lembrar outras causas para o fenômeno. Não é a menor delas, sem dúvida, a brutal desmoralização que a esquerda alegremente infligiu a si mesma, quando se associou, antes mesmo da posse de Lula, à direita religiosa que hoje lhe dá tanto trabalho.

Mas não é por acaso que, atualmente, sejam os evangélicos e a bancada da bala os principais personagens da maré conservadora.

O Brasil colhe os frutos de um processo que, diariamente, e ao longo de décadas, foi fácil de verificar a olho nu. Basta ligar a TV aberta. No horário da tarde, vemos programas que exploram ao máximo o tema da violência urbana. De noite, temos o bombardeio de todo tipo de pregadores evangélicos.

Não poderia ser outro o resultado: deputados pastores e deputados policiais se aliam na Câmara.
Enquanto nós, os iluministas, esquerdistas, frankfurtianos, criticávamos a Rede Globo e suas novelas alienantes, a brutalidade dos Ratinhos e Datenas não dava sequer para começo de conversa.

Enquanto isso, os modernizadores, os privatizantes, os liberais de direita, encantavam-se com a perspectiva de um protestantismo simpático ao capital e à eficiência da mão de obra, em oposição às tendências socializantes do catolicismo.

Construiu-se, na verdade, uma caricatura de Weber, tão distorcida quanto as caricaturas de Marx. A utopia de uma modernidade protestante americana, ao estilo de Benjamin Franklin e da Declaração dos Direitos do Homem, transformou-se num pesadelo de gangsterismo, fisiologia e caça às bruxas.

O obscurantismo atual não é, em resumo, apenas sinal de um vazio, de uma falta de conhecimento. Foi construído, pacientemente, em cada casa brasileira, sob o signo da insegurança, do medo e da raiva, à luz de um tubo de TV.


coelhofsp@uol.com.br

terça-feira, 7 de julho de 2015

os desafios da educação: gestão – nosso maior desafio?

"IMPEACHMENT É POUCO"





Você na rua, de novo. Que interessante. Fazia tempo que não aparecia com toda a sua família. Se me lembro bem, a última vez foi em 1964, naquela "Marcha da família, com Deus, pela liberdade". É engraçado, mas não sabia que você tinha guardado até mesmo os cartazes daquela época: "Vai para Cuba", "Pela intervenção militar", "Pelo fim do comunismo". Acho que você deveria ao menos ter tentado modernizar um pouco e inventar algumas frases novas. Sei lá, algo do tipo: "Pela privatização do ar", "Menos leis trabalhistas para a empresa do meu pai".

Vi que seus amigos falaram que sua manifestação foi uma grande "festa da democracia", muito ordeira e sem polícia jogando bomba de gás lacrimogêneo. E eu que achava que festas da democracia normalmente não tinham cartazes pedindo golpe militar, ou seja, regimes que torturam, assassinam opositores, censuram e praticam terrorismo de Estado. Houve um tempo em que as pessoas acreditavam que lugar de gente que sai pedindo golpe militar não é na rua recebendo confete da imprensa, mas na cadeia por incitação ao crime. Mas é verdade que os tempos são outros.

Por sinal, eu queria aproveitar e parabenizar o pessoal que cuida da sua assessoria de imprensa. Realmente, trabalho profissional. Nunca vi uma manifestação tão anunciada com antecedência, um acontecimento tão preparado. Uma verdadeira notícia antes do fato. Depois de todo este trabalho, não tinha como dar errado.

Agora, se não se importar, tenho uma pequena sugestão. Você diz que sua manifestação é apartidária e contra a corrupção. Daí os pedidos de impeachment contra Dilma. Mas em uma manifestação com tanta gente contra a corrupção, fiquei procurando um cartazete sobre, por exemplo, a corrupção no metrô de São Paulo, com seus processos milionários correndo em tribunais europeus, ou uma mera citação aos partidos de oposição, todos eles envolvidos até a medula nos escândalos atuais, do mensalão à Petrobras, um "Fora, Alckmin", grande timoneiro de nosso "estresse hídrico", um "Fora, Eduardo Cunha" ou "Fora, Renan", pessoas da mais alta reputação. Nada.

Se você não colocar ao menos um cartaz, vai dar na cara de que seu "apartidarismo" é muito farsesco, que esta história de impeachment é o velho golpe de tirar o sujeito que está na frente para deixar os operadores que estão nos bastidores intactos fazendo os negócios de sempre. Impeachment é pouco, é cortina de fumaça para um país que precisa da refundação radical de sua República. Mas isto eu sei que você nunca quis. Vai que o povo resolve governar por conta própria.

Como preparar a resistência a um golpe

Professor Thomas de Toledo

Tenho visto pessoas aflitas com a possibilidade de um golpe reacionário ser praticado no Brasil, mas quero ao mesmo tempo dar a esperança de que este golpe não ocorrerá, também alertar para que todos estejam prontos para uma reação imediata caso ocorra uma ruptura institucional.


Primeiro entendamos qual é a estratégia golpista e como ela tem procurado instalar o clima do golpe. Em segundo lugar, compreendamos como agir a fim de não deixar o golpe acontecer e caso aconteça, como revertê-lo. Por fim, que fique claro que não existe nada na história que é dado até que aconteça e mesmo o que acontece pode ser um fator aglutinador de resistência.

As forças interessadas no golpe atualmente são exatamente as mesmas que o fizeram em 1954 e 1964. São os meios comunicações hegemônicos (Globo, Veja, Folha, Estadão, etc), as grandes empresas multinacionais (em especial as petrolíferas concorrentes da Petrobrás), o imperialismo dos Estados Unidos (que não aceita a integração latino-americana e o BRICS) e a direita golpista (fascistas, ultraliberais e fundamentalistas religiosos). Este consórcio perdeu as eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014 e está disposto a ir às útlimas consequências com o golpe para barrar o projeto de desenvolvimento autônomo com distribuição de renda que, aos trancos e barrancos, ainda é o que de melhor o cenário político nacional é capaz de oferecer.

A estratégia golpista tem sido experimentada de várias formas. A tentativa de invalidar as eleições, a rejeição das contas do governo pelo TCU ou da campanha de Dilma pelo TSE, alguma delação "premiada" que mesmo virtualmente associe a operação "Lava Jato" ao governo ou qualquer outro tipo de pretexto. Tudo isto está fácil com o Congresso controlado pelo PMDB de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, que ainda têm o vice-presidente Michel Temer (os três na linha de sucessão). Muito provavelmente eles tentarão o golpe da mesma forma usada em Honduras ou no Paraguai, via legislativo ou judiciário. Vale lembrar que a mesma embaixadora dos Estados Unidos em Assunção na ocasião da deposição de Lugo, está hoje alocada em Brasília.

Mas um golpe sem apoio de parcelas significativas da população não se sustenta. Por isto vem o bombardeio dos meios de comunicação. Neste fim de semana, estava uma chuva tremenda, a estrada cheia de lama e o ônibus largou todos os passageiros no meio do caminho. Todos ficaram indignados, mas um senhor surpreendeu-me dizendo: "culpa dessa Dilma que essa estrada está deste jeito". Por sorte recordei-o de que quem deveria cumprir este papel era o prefeito e, depois de um certo conflito mental, parece que o senhor aceitou que nem todos os problemas políticos do mundo são culpas do bode expiatório fabricado pela mídia: a presidente e seu partido (Hoje, o bode espiatório chama-se Dilma. Ontem chamou Jango e anteontem seu nome era Getúlio). Este é um típico exemplo da desinformação propagada pela mídia.

E assim funciona a onda da ignorância: espalham por todos os meios que a culpa é de uma pessoa e de um partido. Enquanto só falam deles, todos os outros roubam à vontade, tocam o terror nos poderes legislativos e judiciários, fazem os piores crimes de descaso com a população no nível municipal e estadual, mas sempre nos fazem lembrar que a culpa é do bode expiatório. Os outros partidos, em especial o PSDB e o PMDB, podem roubar à vontade que ficam blindados pela mídia. E é exatamente por isso que interessa a eles o golpe.

Depois das manifestações "contra a corrupção com a camisa da CBF", a direita golpista mostrou sua cara. Mas seu intento de seguir mobilizada fracassou com o discurso do ódio prevalecendo na pauta. No entanto, várias ações fascistas isoladas têm proliferado como agressões a membros do partido da presidente e mesmo ataques à suas sedes. Isto, infelizmente, não tem sido enfrentado por parte do governo, que parece inerte perante tantas agressões. Além de ter uma péssima política de comunicação social, o governo tem agido de forma burocrática com despachos de gabinete sem travar o debate na sociedade, o que dificulta a resistência. Mas mesmo assim, é preciso lutar para que o golpe não ocorra e caso ocorra, ele precisa ser revertido, denunciado seus autores punindo-os devidamente.

É preciso construir uma frente ampla em defesa da democracia com partidos, movimentos sociais e a sociedade civil organizada. Também deve-se avançar na luta antifascista e na formação ideológica das forças populares e democráticas. Este caldo é fundamental para resistir a uma eventual quebra da institucionalidade democrática. Vale lembrar que existem muitos exemplos de contragolpes que foram não apenas bem sucedidos, mas principalmente reverteram as limitações do governo anterior e repactuaram as forças políticas do país num sentido mais progressista.

De fato, é preciso ter claro que este golpe não visa melhorar o país, tampouco salvá-lo de qualquer coisa. Ele simplesmente pretende barrar os avanços sociais da última década que foram importantes, mas pequenos. Porém, foram o suficiente para despertarem o ódio das elites que sempre entregaram nossos recursos naturais ao imperialismo e sempre tiveram por projeto a submissão do Brasil ao grande capital estrangeiro. Ou seja, trata-se de um golpe para mudar tudo, desde que tudo fique como está.

Portanto, transformemos a crise em oportunidade. Ao invés de cairmos num pessimismo ou autoflagelo da esquerda, estejamos com a certeza de que vale a pena lutar e resistir. Não esperemos uma reação do governo. Tomemos as ruas e as redes com palavras de ordens consequentes. Derrotar o fascismo, o golpismo e o entreguismo é dever e honra desta geração. Lutemos de cabeça erguida para que fique registrado nos anais da história não apenas que esta geração não fugiu à luta, mas que ela foi vitoriosa em garantir a democracia.

Os sentidos de Junho

[Faixa erguida na manifestação do dia 15 de março de 2015 na Avenida Paulista em São Paulo, reivindica oimpeachment de Dilma e o sentido das Jornadas de Junho.]




Por Ruy Braga.

As massivas manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em março e abril deste ano confirmaram, ao menos aparentemente, as análises tanto de direitistas quanto de governistas a respeito das Jornadas de Junho de 2013. Para certos jornalistas ligados ao Instituto Liberal, Junho foi um levante de classe média galvanizado pelo MPL contra a corrupção do governo federal. Segundo esta perspectiva, a população teria abandonado as ruas logo que percebeu a presença ultra-esquerdista do PSOL e do PSTU por trás da exigência de revogação do aumento das tarifas do transporte público.1

Por outro lado, para alguns petistas, Junho foi uma onda de insatisfação manipulada pela grande mídia e protagonizada pelas classes médias tradicionais contra as políticas sociais do governo federal.2 Em consequência, a mudança na conjuntura política e a queda na popularidade da presidente teriam pavimentado o caminho para o avanço da direita, facilitando a eleição de um Congresso ainda mais conservador que o anterior.

A despeito da diversidade ideológica das análises, a conclusão é convergente, pois afirma uma continuidade essencial entre as manifestações de 2013 e de 2015. Afinal, as massas foram às ruas contra o governo federal, retornando quase dois anos depois para completar o trabalho que haviam iniciado. Resultado: as Jornadas de Junho não apenas se transformaram na campanha pelo impeachment de Dilma, como também asseguraram a vitória do PL 4330, da redução da maioridade penal, etc.

Gostaria de examinar estas alegações a partir de dois parâmetros: a base social dos protestos e sua direção política. Finalmente, pretendo elaborar uma hipótese alternativa apoiada na centralidade da fadiga do atual modelo de desenvolvimento para compreender o ciclo de polarização social que açambarcou a sociedade brasileira. Sem recorrermos à análise histórica das metamorfoses das classes, fatalmente cairemos no anacronismo, ou seja, a imposição de sentidos recolhidos no tempo presente ao passado.

Em primeiro lugar, como bem destacou Marcelo Badaró, não parece haver muita dúvida sobre as diferenças sociológicas existentes entre os manifestantes.3 Em Junho de 2013, na contracorrente de uma intensa campanha midiática, uma massa formada por jovens trabalhadores periféricos usuários do transporte público e vivendo em famílias com renda de até 3 salários mínimos tomou as ruas de várias capitais em reação à brutal repressão da PM ao protesto organizado pelo MPL no dia 13 em São Paulo. Àquela altura, os setores médios tradicionais fizeram-se presentes na ordem de aproximadamente 25% dos que participaram dos protestos.

Em março e abril de 2015, ao contrário, houve uma flagrante predominância da população adulta, concentrada entre 30 e 50 anos, esmagadoramente branca e recebendo mais de 5 salários mínimos. Este ano, os manifestantes populares, isto é, aqueles vivendo em famílias que ganham até 3 salários mínimos, não passaram de 20%. Em resumo, estamos diante de uma acentuada reviravolta social e não de uma anacrônica continuidade linear.

Se adicionarmos as diferenças relativas ao conteúdo político dos dois ciclos de protestos, entenderemos com mais clareza a distância entre 2013 e 2015. Há exatos dois anos, as demandas levadas às ruas, apesar da natural diversidade existente em um protesto espontâneo de massas, decantaram-se em uma pauta popular a favor de mais investimentos públicos em transporte, saúde e educação. Os institutos de pesquisa foram unânimes em identificar esta tendência em todo o país. Nada espantoso, considerando…

  1. Transporte. A atual onda de segregação espacial que acompanhou a financeirização das terras urbanas e o deslocamento forçado de trabalhadores em condições precárias de vida e de trabalho para as periferias mais distantes das cidades.
  2. Saúde. O aumento do adoecimento derivado da intensificação dos ritmos do trabalho e do incremento da rotatividade laboral que têm levado cada vez mais trabalhadores precarizados ao SUS.
  3. Educação. A intensificação da busca destes trabalhadores por qualificações decorrente do aumento da competição laboral que faz com que eles recorram à educação como única via de progresso ocupacional.

Por outro lado, as manifestações de direita, além do apoio midiático, foram dirigidas e financiadas por organizações com claros vínculos classistas – algumas delas, ligadas a think tanks estadunidenses –, cujo foco foi o impeachment de Dilma. Em suma, a ampla luta redistributivista subjacente a Junho com sua demanda por mais investimentos estatais chocando-se com os gastos com juros e amortizações da dívida pública foi substituída por ataques estreitos contra o governo federal.

No entanto, é inegável que existe uma relação entre as duas ondas de protestos. Afinal, Junho abriu uma nova conjuntura política marcada pelo fim da pacificação social característica dos governos de Lula da Silva. O ano de 2013 anunciou a chegada de uma nova era de luta de classes no país e, consequentemente, da crise do lulismo como modo de regulação apoiado na combinação do consentimento popular com o consentimento das direções dos movimentos sociais ao projeto do PT. Em grande medida, arrisco-me a afirmar que esta crise advém basicamente da fadiga do atual modelo de desenvolvimento que por dez anos proporcionou certa margem para pequenas concessões populares, como o aumento dos gastos sociais e a valorização do salário mínimo.

A atual crise econômica aprofundou o ressentimento das classes médias tradicionais com o governo petista. As razões são variadas. O ciclo de formalização do emprego associado à valorização do salário mínimo aumentou os preços dos serviços, em especial, o valor do trabalho doméstico. A relativa desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho somada ao crédito popular fez com que massas de trabalhadores invadissem os shoppings e aeroportos, antes espaços exclusivos das classes altas e médias. E, por fim, o aumento de vagas em universidades particulares e públicas fez com que a competição por empregos de classe média aumentasse entre os jovens. Tudo somado, a natureza anti-popular e conservadora da reação dos estratos intermediários da pirâmide social era bastante previsível.

E do lado das massas populares, as políticas recessivas adotadas pelo governo liquidaram o que ainda restava de apoio popular a Dilma Rousseff. Os trabalhadores perceberam que a presidente está empenhada em implementar políticas anti-trabalhistas, como as MPs 664 e 665, a fim de rebaixar o preço da força de trabalho. O aumento do desemprego, em especial, entre os jovens, espreme o orçamento de famílias trabalhadoras cada dia mais endividadas. Trata-se de uma tríade infernal para os trabalhadores: precarização, endividamento, desemprego. Em resumo, o ressentimento popular com o governo federal tende a aumentar, pulverizando a popularidade da presidente.

Evidentemente, Lula da Silva já percebeu o naufrágio iminente e tem investido numa tentativa um tanto ou quanto patética de se afastar de Dilma e fortalecer uma frente de esquerda que viabilize sua campanha em 2018. Alimentado pelo escândalo do Petrolão, a superposição do ressentimento das classes médias com o ressentimento popular pode ameaçar a continuidade do governo petista. E, de quebra, levar de roldão a esquerda anti-governista rumo a uma profunda crise de legitimidade. Para evitar que isso aconteça, devemos tirar as lições corretas de Junho.

As forças progressistas que vêem uma continuidade linear entre os dois ciclos de protestos estão fazendo uma leitura fundamentalmente errada do que acontece no país e irão naufragar junto com o governo federal. Mais do que nunca, é urgente nos afastarmos do governismo para disputarmos os sentidos de Junho, reinventando uma esquerda à altura das tarefas impostas pelo atual ciclo de luta de classes. Para tanto, devemos fortalecer nossa análise estratégica e apostar em novas coalizões entre o sindicalismo rebelde e os movimentos sociais urbanos. Para os que afirmam que as manifestações de 2013 prepararam a redução da maioridade penal em 2015, é necessário responder que Junho ainda pulsa no atual ciclo grevista, assim como na insurgência dos trabalhadores sem-teto. Os verdadeiros herdeiros de Junho são os trabalhadores precarizados e não a direita.

NOTAS
1 Ver: Flavio Morgenstern. Por trás da máscara: Do Passe Livre aos Black Blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Record, 2015.
2 Ver: Marcelo Barbosa e Kadu Machado. “A segunda onda”, Agência PT, 16 de março de 2015.
3 Ver: Marcelo Badaró. “Junho e nós: das jornadas de 2013 ao quadro atual”.Blog Junho, 2 de julho de 2015.

***

Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro,A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

domingo, 5 de julho de 2015

Sobre intolerâncias




Guido Mantega

A muito custo o Brasil conseguiu construir uma democracia sólida, com instituições fortes e ampla participação popular. Na democracia convivem análises, percepções e posições diferentes. Essa é uma disputa entre forças que tonifica a política e engrandece a sociedade.

Manifestações e protestos são partes integrantes do regime democrático. O contraditório é sempre necessário e muito bem-vindo, estimula o debate e constitui um avanço para o país. A democracia criou mecanismos e instituições que permitem esse debate e garantem a pluralidade de ideias, um pilar que vem sendo erguido há 30 anos.

O Brasil, no entanto, parece caminhar em terreno perigoso. Há algo diferente no ar. Algo que ameaça essa pluralidade. Trata-se do fantasma do autoritarismo, raiz de golpes, que, infelizmente, se manifesta de forma corriqueira, sempre pronto a agir no dia a dia das pessoas.

Atitudes autoritárias podem ocorrer no trânsito, na porta de uma escola, num museu, num hospital ou num restaurante. Não é porque a democracia está consolidada que devemos descuidar dela. Nós, cidadãos, temos que regar essa planta frágil todos os dias --o que nem sempre tem acontecido.

O aumento da intolerância tem provocado atitudes antidemocráticas praticadas por cidadãos que se acham acima do bem e do mal. Alguém escreveu esses dias que o brasileiro está deixando de ser cordial. No Rio, uma pedra foi atirada na cabeça de uma menina de apenas 11 anos por intolerância religiosa.

Eu mesmo, em episódios que nem de longe têm a mesma gravidade, tenho sido alvo de uma intolerância que extrapola o limite da convivência e o direito à liberdade.

Quem é a principal vítima? A menina? O ex-ministro? Não. A vítima é a democracia. Não podemos permitir que essa intolerância se instaure na sociedade brasileira, sob pena de estarmos nos descuidando do mais precioso dos bens.

É oportuna a advertência do teólogo protestante alemão Martin Niemöller diante da escalada do autoritarismo. "Primeiro perseguiram os socialistas, e não protestei porque não era socialista. Então perseguiram os sindicalistas, e não protestei porque não era sindicalista. Então perseguiram os judeus, e não protestei porque não era judeu. Então vieram atrás de mim, e não tinha sobrado ninguém para falar por mim."

Não podemos nos permitir acordar tarde demais para essa realidade. Na França, o ataque ao jornal satírico "Charlie Hebdo" fez com que as pessoas adotassem prontamente, em repúdio à intolerância, o lema "Je suis Charlie". Nos EUA, o presidente Barack Obama se engajou no repúdio ao massacre racista em um templo religioso.

Se deixarmos nos apedrejar, física ou moralmente, daqui a pouco estaremos diante de um Estado fascista. O fascismo, como bem definiu Hannah Arendt, nasceu muito antes de sua existência formal.
Não podemos permitir que se instaure entre nós esse espírito autoritário. Atitudes como essas são perniciosas para o convívio democrático na sociedade brasileira.

Qualquer cidadão tem o direito de discordar do que fiz como ministro da Fazenda, mas no terreno das ideias, do debate. A agressão, a injúria, a difamação são inaceitáveis e devem ser respondidas dentro da lei.

Em nove anos à frente do Ministério da Fazenda, esforcei-me para aumentar o emprego e expandir a produção do país, mesmo num cenário de grave crise internacional, que aliás ainda não acabou.
O resultado foi que o PIB cresceu, a renda subiu e a situação dos brasileiros, ricos ou pobres, melhorou. Apesar dos problemas que nós e outros países enfrentamos, o Brasil deu um salto de qualidade e nos tornamos a sétima economia do mundo.

O Brasil passa hoje por problemas conjunturais que podem perfeitamente ser superados com determinação do governo e da classe política. O país continua sólido para enfrentar qualquer turbulência internacional, como a que pode ser provocada pela Grécia.

Temos US$ 370 bilhões em reservas, somos credores do FMI, nossa dívida externa é pequena, nosso sistema financeiro é saudável e temos um dos maiores mercados consumidores do mundo, que continua atraindo investimento.

Ninguém é obrigado a concordar com essas análises e perspectivas, mas temos que nos manifestar de acordo com as regras democráticas, além de dizer não ao autoritarismo.



GUIDO MANTEGA, 66, economista, é professor da Escola de Economia de São Paulo, da FGV. Foi ministro da Fazenda (governos Lula e Dilma) e ministro do Planejamento (governo Lula)