[Faixa erguida na manifestação do dia 15 de março de 2015 na Avenida Paulista em São Paulo, reivindica oimpeachment de Dilma e o sentido das Jornadas de Junho.]
Por Ruy Braga.
As massivas manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em março e abril deste ano confirmaram, ao menos aparentemente, as análises tanto de direitistas quanto de governistas a respeito das Jornadas de Junho de 2013. Para certos jornalistas ligados ao Instituto Liberal, Junho foi um levante de classe média galvanizado pelo MPL contra a corrupção do governo federal. Segundo esta perspectiva, a população teria abandonado as ruas logo que percebeu a presença ultra-esquerdista do PSOL e do PSTU por trás da exigência de revogação do aumento das tarifas do transporte público.1
Por outro lado, para alguns petistas, Junho foi uma onda de insatisfação manipulada pela grande mídia e protagonizada pelas classes médias tradicionais contra as políticas sociais do governo federal.2 Em consequência, a mudança na conjuntura política e a queda na popularidade da presidente teriam pavimentado o caminho para o avanço da direita, facilitando a eleição de um Congresso ainda mais conservador que o anterior.
A despeito da diversidade ideológica das análises, a conclusão é convergente, pois afirma uma continuidade essencial entre as manifestações de 2013 e de 2015. Afinal, as massas foram às ruas contra o governo federal, retornando quase dois anos depois para completar o trabalho que haviam iniciado. Resultado: as Jornadas de Junho não apenas se transformaram na campanha pelo impeachment de Dilma, como também asseguraram a vitória do PL 4330, da redução da maioridade penal, etc.
Gostaria de examinar estas alegações a partir de dois parâmetros: a base social dos protestos e sua direção política. Finalmente, pretendo elaborar uma hipótese alternativa apoiada na centralidade da fadiga do atual modelo de desenvolvimento para compreender o ciclo de polarização social que açambarcou a sociedade brasileira. Sem recorrermos à análise histórica das metamorfoses das classes, fatalmente cairemos no anacronismo, ou seja, a imposição de sentidos recolhidos no tempo presente ao passado.
Em primeiro lugar, como bem destacou Marcelo Badaró, não parece haver muita dúvida sobre as diferenças sociológicas existentes entre os manifestantes.3 Em Junho de 2013, na contracorrente de uma intensa campanha midiática, uma massa formada por jovens trabalhadores periféricos usuários do transporte público e vivendo em famílias com renda de até 3 salários mínimos tomou as ruas de várias capitais em reação à brutal repressão da PM ao protesto organizado pelo MPL no dia 13 em São Paulo. Àquela altura, os setores médios tradicionais fizeram-se presentes na ordem de aproximadamente 25% dos que participaram dos protestos.
Em março e abril de 2015, ao contrário, houve uma flagrante predominância da população adulta, concentrada entre 30 e 50 anos, esmagadoramente branca e recebendo mais de 5 salários mínimos. Este ano, os manifestantes populares, isto é, aqueles vivendo em famílias que ganham até 3 salários mínimos, não passaram de 20%. Em resumo, estamos diante de uma acentuada reviravolta social e não de uma anacrônica continuidade linear.
Se adicionarmos as diferenças relativas ao conteúdo político dos dois ciclos de protestos, entenderemos com mais clareza a distância entre 2013 e 2015. Há exatos dois anos, as demandas levadas às ruas, apesar da natural diversidade existente em um protesto espontâneo de massas, decantaram-se em uma pauta popular a favor de mais investimentos públicos em transporte, saúde e educação. Os institutos de pesquisa foram unânimes em identificar esta tendência em todo o país. Nada espantoso, considerando…
- Transporte. A atual onda de segregação espacial que acompanhou a financeirização das terras urbanas e o deslocamento forçado de trabalhadores em condições precárias de vida e de trabalho para as periferias mais distantes das cidades.
- Saúde. O aumento do adoecimento derivado da intensificação dos ritmos do trabalho e do incremento da rotatividade laboral que têm levado cada vez mais trabalhadores precarizados ao SUS.
- Educação. A intensificação da busca destes trabalhadores por qualificações decorrente do aumento da competição laboral que faz com que eles recorram à educação como única via de progresso ocupacional.
Por outro lado, as manifestações de direita, além do apoio midiático, foram dirigidas e financiadas por organizações com claros vínculos classistas – algumas delas, ligadas a think tanks estadunidenses –, cujo foco foi o impeachment de Dilma. Em suma, a ampla luta redistributivista subjacente a Junho com sua demanda por mais investimentos estatais chocando-se com os gastos com juros e amortizações da dívida pública foi substituída por ataques estreitos contra o governo federal.
No entanto, é inegável que existe uma relação entre as duas ondas de protestos. Afinal, Junho abriu uma nova conjuntura política marcada pelo fim da pacificação social característica dos governos de Lula da Silva. O ano de 2013 anunciou a chegada de uma nova era de luta de classes no país e, consequentemente, da crise do lulismo como modo de regulação apoiado na combinação do consentimento popular com o consentimento das direções dos movimentos sociais ao projeto do PT. Em grande medida, arrisco-me a afirmar que esta crise advém basicamente da fadiga do atual modelo de desenvolvimento que por dez anos proporcionou certa margem para pequenas concessões populares, como o aumento dos gastos sociais e a valorização do salário mínimo.
A atual crise econômica aprofundou o ressentimento das classes médias tradicionais com o governo petista. As razões são variadas. O ciclo de formalização do emprego associado à valorização do salário mínimo aumentou os preços dos serviços, em especial, o valor do trabalho doméstico. A relativa desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho somada ao crédito popular fez com que massas de trabalhadores invadissem os shoppings e aeroportos, antes espaços exclusivos das classes altas e médias. E, por fim, o aumento de vagas em universidades particulares e públicas fez com que a competição por empregos de classe média aumentasse entre os jovens. Tudo somado, a natureza anti-popular e conservadora da reação dos estratos intermediários da pirâmide social era bastante previsível.
E do lado das massas populares, as políticas recessivas adotadas pelo governo liquidaram o que ainda restava de apoio popular a Dilma Rousseff. Os trabalhadores perceberam que a presidente está empenhada em implementar políticas anti-trabalhistas, como as MPs 664 e 665, a fim de rebaixar o preço da força de trabalho. O aumento do desemprego, em especial, entre os jovens, espreme o orçamento de famílias trabalhadoras cada dia mais endividadas. Trata-se de uma tríade infernal para os trabalhadores: precarização, endividamento, desemprego. Em resumo, o ressentimento popular com o governo federal tende a aumentar, pulverizando a popularidade da presidente.
Evidentemente, Lula da Silva já percebeu o naufrágio iminente e tem investido numa tentativa um tanto ou quanto patética de se afastar de Dilma e fortalecer uma frente de esquerda que viabilize sua campanha em 2018. Alimentado pelo escândalo do Petrolão, a superposição do ressentimento das classes médias com o ressentimento popular pode ameaçar a continuidade do governo petista. E, de quebra, levar de roldão a esquerda anti-governista rumo a uma profunda crise de legitimidade. Para evitar que isso aconteça, devemos tirar as lições corretas de Junho.
As forças progressistas que vêem uma continuidade linear entre os dois ciclos de protestos estão fazendo uma leitura fundamentalmente errada do que acontece no país e irão naufragar junto com o governo federal. Mais do que nunca, é urgente nos afastarmos do governismo para disputarmos os sentidos de Junho, reinventando uma esquerda à altura das tarefas impostas pelo atual ciclo de luta de classes. Para tanto, devemos fortalecer nossa análise estratégica e apostar em novas coalizões entre o sindicalismo rebelde e os movimentos sociais urbanos. Para os que afirmam que as manifestações de 2013 prepararam a redução da maioridade penal em 2015, é necessário responder que Junho ainda pulsa no atual ciclo grevista, assim como na insurgência dos trabalhadores sem-teto. Os verdadeiros herdeiros de Junho são os trabalhadores precarizados e não a direita.
NOTAS
1 Ver: Flavio Morgenstern. Por trás da máscara: Do Passe Livre aos Black Blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Record, 2015.
2 Ver: Marcelo Barbosa e Kadu Machado. “A segunda onda”, Agência PT, 16 de março de 2015.
3 Ver: Marcelo Badaró. “Junho e nós: das jornadas de 2013 ao quadro atual”.Blog Junho, 2 de julho de 2015.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro,A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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