Apaixonada pela desigualdade social, a elite brasileira sempre defendeu uma noção muito curiosa de "progresso": queria ser europeia nas artes e costumes, mas servida eternamente por escravos negros, domesticados e evangelizados.
Esta semana completou um mês que Kayllane Campos, 11, foi apedrejada na cabeça ao sair de uma festa de candomblé na Vila da Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Completará um mês nesta sexta (17) que nove pessoas foram assassinadas a tiros numa igreja afro-americana por Dylan Roof, homem branco e declaradamente defensor de ideias racistas, em Chalerston, sul dos Estados Unidos. Além das poucas horas de diferença, os dois acontecimentos têm raízes históricas em comum.
A história deixa suas marcas no presente. Relatório da Equal Justice Initiative afirma que ocorreram cerca de 4.000 linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos entre 1877 e 1950. Em 1963, a Ku Klux Klan –organização racista de ultradireita– explodiu uma bomba durante culto de uma igreja no Alabama, matando quatro meninas negras. O massacre foi marcado pela composição de Nina Simone, "Mississipi Goddam", escrita momentos após a notícia.
A profunda segregação sociorracial entre brancos e negros, legalizada durante séculos nos Estados Unidos e mantida mesmo após a conquista de direitos cívicos com décadas de luta e enfrentamento popular, não é "privilégio" dos norte-americanos.
Por aqui a história foi igualmente perversa e, hoje, o véu da hipocrisia é cada vez mais incapaz de ocultar as expressões do racismo. Último país da América a abolir a escravidão, o Brasil manteve o fosso social entre negros e brancos.
Apesar do fato de mais da metade da população brasileira (97 milhões de pessoas) ter se declarado como preto ou pardo no último censo, o IBGE afirma que a renda média mensal dos brancos é R$ 1.538, quase o dobro do valor relativo ao grupo de pretos e pardos (R$ 834 e R$ 845, respectivamente).
Apaixonada pela desigualdade social, a elite brasileira sempre defendeu uma noção muito curiosa de "progresso": queria ser europeia nas artes e costumes, mas servida eternamente por escravos negros, domesticados e evangelizados. E, mesmo depois da abolição tardia, seguiu criminalizando atividades como a capoeira (proibida por lei até 1937), o samba e as práticas religiosas de matriz africana. O batuque sempre amedrontou a elite branca do Brasil.
O caso da menina Kayllane, em 14 de junho, representa o quanto a formação racista do nosso país permanece viva e a força que ganha –inclusive entre as camadas populares– em momentos de intolerância como o atual. E nos lembra que a tão falada segregação racial norte-americana –expressa no massacre de Charleston– está mais perto do que estamos dispostos a admitir.
Por trás do aumento da intolerância às religiões africanas está a tentativa de apagar a memória e a resistência dos mais de três milhões de negros aqui escravizados. Tentativa alimentada por setores ultraconservadores que dizem falar em nome de Jesus.
Em tempos como esse, pode não ser demais relembrar que –pelo que nos diz a própria Bíblia– Jesus certamente estaria entre aqueles que defenderam Kayllane das pedradas.
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